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Processo n.º 383/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Por sentença de 9 de Dezembro de 2002 do Tribunal
Judicial da Comarca de Avis foi o arguido A. condenado, pela prática de dois
crimes de exploração ilícita de jogo, previstos e puníveis pelo artigo 108.º,
n.ºs 1 e 2, com referência aos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, todos do Decreto‑Lei
n.º 422/89, de 2 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei
n.º 10/95, de 19 de Janeiro, na pena única de 11 meses de prisão, suspensa na
sua execução pelo período de 2 anos, e de 280 dias de multa à taxa diária de €
4,00.
Em 11 de Dezembro de 2002, o mandatário do arguido
requereu, “ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo
Penal”, que fosse ordenada “a transcrição da acta da audiência e concretamente
do depoimento das testemunhas por ser fundamental para a motivação do recurso
que de seguida intentará” (requerimento de fls. 283).
Por despacho judicial de 18 de Dezembro de 2002, foi
determinado que se solicitasse “a empresa especializada a transcrição da prova
produzida em sede de audiência de discussão e julgamento” (fls. 286).
Por cartas expedidas em 26 de Março de 2003, foi o
mandatário do referido arguido notificado de que fora “recebida neste Tribunal
a transcrição dos depoimentos gravados em audiência, a fim de V. Ex.a motivar
o recurso, podendo consultá‑la nesta secretaria” (fls. 289), tendo os
mandatários dos restantes arguidos sido notificados de que fora “recebida neste
Tribunal a transcrição dos depoimentos gravados em audiência, podendo V. Ex.a
consultá‑la nesta secretaria” (fls. 288 e 290).
Em 8 de Abril de 2003, o aludido arguido apresentou
requerimento de interposição de recurso da sentença de 9 de Dezembro de 2002
para o Tribunal da Relação de Évora, acompanhado da correspondente motivação
(fls. 296 a 326).
Tal recurso foi admitido por despacho judicial de 11 de
Abril de 2003, “por versar sobre decisão recorrível, ter sido tempestivamente
interposto e por quem para tal tem legitimidade” (fls. 364).
O representante do Ministério Público na comarca de Avis
apresentou resposta ao recurso do arguido, propugnando o seu improvimento, não
suscitando qualquer questão prévia, designadamente quanto à sua tempestividade
(fls. 381 a 402).
No Tribunal da Relação de Évora, o representante do
Ministério Público, no visto inicial (fls. 454 a 458), suscitou a questão prévia
da rejeição do recurso, por extemporaneidade, por entender que a formulação de
pedido de entrega das transcrições das gravações dos depoimentos prestados em
audiência não suspende o prazo de interposição e motivação do recurso, podendo
o arguido solicitar uma cópia da gravação magnetofónica.
Notificado, o recorrente apresentou resposta (fls. 460 a
466), sustentando que o prazo de interposição se conta a partir da comunicação
da disponibilização da transcrição das gravações, e logo aduzindo que
interpretação e aplicação diversas das normas dos artigos 4.º, 411.º, n.º 1, e
412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal (CPP) e do artigo 698.º, n.º 6,
do Código de Processo Civil (CPC) redundaria em violação das garantias
constitucionais do recorrente contempladas no artigo 32.º da Constituição da
República Portuguesa (CRP).
Por acórdão de 3 de Fevereiro de 2004, o Tribunal da
Relação de Évora decidiu não conhecer do recurso, por o mesmo ser intempestivo,
desenvolvendo, para tanto, a seguinte fundamentação:
“5 – A questão prévia suscitada e a decidir consiste em saber quando
é que se inicia a contagem do prazo para os sujeitos processuais poderem
recorrer de sentença, nos casos de haver que proceder à transcrição dos
depoimentos produzidos oralmente em audiência, sendo que o Ministério Público
nesta instância, assim como o relator, entendem que tal prazo se inicia a
partir do depósito da sentença na secretaria, enquanto que o recorrente
considera que tal prazo só se inicia a partir da notificação de que aquela
transcrição se mostra efectuada.
Os factos constantes dos autos e a ter em conta para dilucidar tal
questão são os seguintes:
a) Estando presentes todas as pessoas convocadas, à excepção do
ilustre advogado do arguido, a douta sentença recorrida foi lida em 9 de
Dezembro de 2002 (cf. fls. 279);
b) Por carta registada de 10 de Dezembro de 2002 foi a mesma
notificada ao ilustre advogado do arguido (cf. fls. 282);
c) Em 11 de Dezembro de 2002, o arguido, invocando o disposto no
artigo 101.º, n.º 2, do CPP, requereu a transcrição da acta da audiência e
concretamente do depoimento das testemunhas (cf. fls. 283);
d) Em 13 de Dezembro de 2002, procedeu‑se ao registo da sentença,
consignando‑se que a mesma transitava em 7 de Janeiro de 2003 (cf. fls. 285);
e) Em 18 de Dezembro de 2002, a Sr.ª Juiz ordenou se procedesse à
transcrição da prova produzida oralmente em sede de audiência de discussão e
julgamento (cf. fls. 286);
f) Em 25 de Março de 2003, é remetida carta registada ao mandatário
do arguido, notificando‑o do recebimento da transcrição dos depoimentos,
podendo consultá‑los na secretaria do tribunal (cf. fls. 289);
g) Em 8 de Abril de 2003, o arguido interpôs recurso daquela
sentença (cf. fls. 291), tendo então requerido a emissão de guias, nos termos do
artigo 145.º, n.º 5, do CPC (cf. fls. 292), e também solicitou o benefício de
apoio judiciário na modalidade de dispensa de preparos e custas, benefício este
que lhe veio a ser indeferido (cf. fls. 439 e 440);
h) O recurso foi admitido na 1.ª instância, por douto despacho de 11
de Abril de 2003 (cf. fls. 364).
Perante estes factos e salvo o devido respeito por aquele
entendimento do recorrente, adiante‑se, desde já, que não o podemos sufragar.
Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 411.º, n.º 1, do CPP,
o prazo para a interposição do recurso é de quinze dias e conta‑se a partir da
notificação da decisão ou, tratando‑se de sentença, do respectivo depósito na
secretaria.
Assim, como o presente recurso é relativo a uma sentença, o prazo
para dela recorrer iniciou‑se a partir do seu depósito na secretaria, início
esse que também se aplica nos casos em que venha a ser necessário proceder à
transcrição da prova produzida oralmente em audiência.
O facto de a Sr.ª Juiz ter ordenado se procedesse à transcrição não
dispensou o arguido de apresentar o recurso no prazo legal.
Com efeito, como se dispõe no invocado artigo 101.º, n.º 2, do CPP,
«quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros
diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido, ou, na
sua impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição no prazo mais
curto possível. Antes da assinatura, a entidade que presidiu ao acto
certifica‑se da conformidade da transcrição».
E, por seu lado, preceitua‑se no artigo 412.º do CPP:
«1. A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e
termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o
recorrente resume as razões do pedido.
2. Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob
pena de rejeição:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal
recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela
devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma
jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o
recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações
previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem‑se por referência aos
suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.»
Analisando as disposições legais acabadas de transcrever,
verifica‑se que, ao contrário do que parece entender o recorrente, aquele artigo
101.º, n.º 2, do CPP não impõe, quer numa interpretação literal, quer numa
interpretação teleológica, que a transcrição, nos casos de gravação
magnetofónica, deva ser feita antes da efectiva interposição de recurso relativo
à matéria de facto.
Com efeito, quanto à interpretação literal, desse preceito não
resulta que, nos casos de gravação magnetofónica, se deva proceder à transcrição
no prazo mais curto possível, pois o mesmo apenas prevê os casos de utilização
de «meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum».
E a «gravação em cassetes», utilizada para o registo da prova, não é
um meio de «escrita», mas sim um meio de gravação magnetofónica. E, quanto aos
outros meios, até se compreende essa urgência nas transcrições, pois, enquanto
que naquela as declarações ficam gravadas e, assim, conservadas e em condições
de posteriormente virem a ser utilizadas por qualquer pessoa, quando são
utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita
comum, porque são sistemas convencionais de escrita (designadamente por meio de
sinais e abreviaturas que permitem escrever com a mesma rapidez com que se fala)
que, para não se perder essa escrita abreviada e assim melhor compreensível por
quem a utilizou, necessitam, como é evidente, de ser convertidos, no prazo mais
curto possível, em escrita comum.
E, quanto à interpretação teleológica, convém ter presente que a
transcrição das gravações magnetofónicas, ao contrário do que também entende o
recorrente, não se destina à preparação da sua defesa (o que, como resulta
daquele transcrito artigo 412.º, n.º 4, deve ser feito através e «por
referência aos suportes técnicos») mas sim a facultar ao Tribunal de recurso
reexame da prova.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 363/2000, de 5 de Julho,
publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Novembro de 2000,
considerou que «constituindo a acta da audiência (em que se encontra registada
toda a prova aí produzida) o suporte fundamental da decisão que o tribunal de
recurso virá a tomar em matéria de facto, parece‑nos evidente que, só por isso,
ela constitui igualmente um elemento essencial para que o arguido (ou o seu
defensor) possam preparar a sua defesa» e que «o acesso à acta da audiência,
nestas hipóteses, num momento prévio à elaboração da alegação de recurso, não só
pode constituir um elemento essencial para que o arguido decida o sentido em que
deve orientar a sua defesa, como, fundamentalmente, permitirá sempre uma muito
mais rigorosa e completa preparação da alegação de recurso. Com o acesso à acta
a alegação de recurso pode certamente ganhar em rigor e consistência e, nessa
medida, qualidade».
Mas esse Acórdão não se referia à transcrição de declarações
prestadas oralmente em audiência e gravadas em cassetes, mas sim a um caso em
que as declarações prestadas oralmente em audiência haviam sido ditadas para
fazerem parte das actas e estas, quando foi requerida a sua consulta, ainda não
estavam disponíveis por os «apontamentos» na altura efectuados ainda não
haverem sido para elas transcritos.
Assim, se naquele caso em que não houve gravação e as declarações
oralmente prestadas em audiência foram ditadas para a acta se entendeu que
assistia ao recorrente o direito de, para organizar a sua defesa, ter acesso às
actas, o mesmo já não acontece no caso ora em questão, uma vez que, tendo as
provas oralmente prestadas em audiência sido gravadas em fita magnetofónica, o
recorrente ficou desde logo com a possibilidade de pedir cópia desses suportes
técnicos e, com estes ao seu dispor e como se exige no artigo 412.º, n.º 4, do
CPP, era com referência a eles, e não à transcrição, que devia indicar as provas
que, no seu entender, impunham decisão diversa da recorrida e as provas que
deviam ser renovadas, pelo que, para recorrer, não necessitava da por si
requerida prévia transcrição do que foi gravado.
A transcrição só deve ocorrer quando efectivamente haja sido
interposto recurso em que se impugne a matéria de facto, recurso este em que os
recorrentes devem indicar concretamente, com referência aos suportes técnicos,
aquelas provas que, segundo eles, impõem decisão diversa da recorrida, assim
como as provas que devem ser renovadas.
Se bastasse apresentar um requerimento, como fez o ora recorrente,
pedindo para o tribunal proceder de imediato a essa transcrição, tal modo de
proceder em nada contribuiria para a por todos desejada celeridade da justiça
e, inclusive, levaria à prática de muitos actos inúteis, actos estes que a lei
proíbe (cf. artigo 137.º do CPC), uma vez que, insiste‑se, só se justifica a
transcrição nos casos em que efectivamente já se recorreu e se impugnou matéria
de facto.
Como resulta daquele transcrito n.º 4 do artigo 412.º do CPP, só
após o recorrente haver indicado, com referência às gravações magnetofónicas,
aquelas provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, assim
como as provas que devem ser renovadas, é que o tribunal, verificados que se
mostrem os restantes pressupostos legais, deve admitir o recurso e, no caso de o
admitir, decidir quais as provas que deverão ser efectivamente transcritas,
designadamente se todas ou se apenas algumas.
Deste modo, é do recurso que for apresentado e do respectivo âmbito
– com eventual referência aos suportes técnicos que concretize – que se partirá
para a necessidade ou não da transcrição, em auto, do teor da gravação.
A transcrição, repete‑se, não tem por finalidade permitir aos
recorrentes o acesso à prova produzida (o qual deve ser feito através dos
suportes técnicos), mas a de facultar ao Tribunal de recurso o reexame das
provas.
Assim, tendo a sentença recorrida sido registada e depositada na
secretaria do tribunal a quo em 13 de Dezembro de 2002 e como o arguido dela
interpôs recurso apenas em 8 de Abril de 2003, nesta última data já há muito
que havia decorrido aquele prazo de 15 dias previsto no artigo 411.º, n.º 1, do
CPP (mesmo que acrescido de 10 dias, ao abrigo do disposto no artigo 698.º, n.º
6, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP), pelo que, sem necessidade de outras
considerações, deve o recurso ser rejeitado por extemporâneo (cf. artigos
420.º, n.º 1, 414.º, n.º 2, e 411.º, n.º 1, todos do CPP), sendo aqui de referir
ainda que a decisão que o admitiu na 1.ª instância não vincula este Tribunal de
recurso (cf. artigo 414.º, n.º 3, do CPP).”
É deste acórdão que vem interposto pelo recorrente, ao
abrigo ao artigo 70.º, n.º 1, alínea b) [por manifesto lapso, referiu alínea
c)], da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98,
de 26 de Fevereiro – doravante designada por LTC), o presente recurso, tendo
por objecto a apreciação da inconstitucionalidade – por violação das garantias
contempladas no artigo 32.º da CRP – da interpretação dada, pelo tribunal
recorrido, ao disposto nos artigos 4.º, 411.º, n.º 1, e 412.º, n.ºs 3 [por
manifesto lapso, referiu n.º 2] e 4, do CPP e 698.º, n.º 6, do CPC.
Neste Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou
alegações, concluindo:
“1. Por douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação
de Évora foi julgado intempestivo o recurso interposto pelo recorrente e, nessa
medida, não conheceu o Dig.mo Tribunal de 2.ª Instância do mérito do mesmo,
2. Considerando para o efeito apenas o elemento literal consignado
no artigo 411.º, n.º 1, do CPP, quando estipula que «o prazo para interposição
do recurso é de quinze dias e conta‑se a partir da notificação da decisão ou,
tratando‑se de sentença, do respectivo depósito na secretaria».
3. Na mira da interposição de um recurso com o objectivo de impugnar
a decisão proferida sobre a matéria de facto, estava o recorrente vinculado à
observância do preceituado no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, que impõe que
seja feita referência aos suportes técnicos quando as provas tenham sido
gravadas.
4. Para a questão em apreço, importa saudar e aclamar a douta
jurisprudência fixada pelo insigne Supremo Tribunal de Justiça, no Assento n.º
2/2003, onde não se questiona que a transcrição compete ao Tribunal: «Sempre que
o recorrente impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, em
conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de
Processo Penal, a transcrição ali referida incumbe ao Tribunal».
5. Incumbindo a transcrição ao Tribunal, não desfrutava o
recorrente, no momento em que se iniciaria a contagem do prazo, nos termos do
artigo 411.º, n.º 1, do CPP, dos elementos (nem sequer as cassetes áudio)
necessários à efectiva e correcta fundamentação do seu recurso, em consonância e
para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma legal.
6. A nossa Lei Fundamental reconhece, no seu artigo 32.º, n.º 1,
como elemento das garantias fundamentais de defesa, o direito ao recurso.
7. Ao assegurar este direito, pretendeu também o legislador garantir
que os interessados, ab initio do prazo para o recurso e respectiva motivação,
tenham na sua disponibilidade todos os elementos da decisão recorrida e
respectivos fundamentos, para que possam preparar convenientemente a sua
motivação, suportando a sua defesa nos registos de prova, referenciando onde e
como se encontra a mesma gravada.
8. O recurso dos autos foi apresentado tempestivamente, no prazo de
10 dias posteriores à notificação da transcrição constante dos autos (ainda que
apresentado no 1.º dia útil subsequente ao termo do prazo, cumprido o disposto
no artigo 145.º, n.º 5, do CPC), atendendo‑se à aplicabilidade dos artigos
411.º, n.º 1, do CPP e n.º 6 do artigo 698.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP,
visto que o acréscimo de 10 dias justifica‑se para que o recorrente impugne a
decisão sobre a matéria de facto com base nas declarações prestadas em
audiência que foram gravadas.
9. De modo que o requerimento do recorrente solicitando a
transcrição das gravações poderá eventualmente não ter a virtualidade de alterar
o início da contagem do prazo do recurso, mas o seu deferimento já o terá, pois
sempre revelará que efectivamente a transcrição era um elemento essencial à
correcta e completa fundamentação do recurso.
10. Pois, não fosse a transcrição efectuada dos actos de audiência
de julgamento, o recorrente apresentaria a sua motivação de recurso de modo
incompleto, impreciso, ambíguo, indirecto, influindo negativamente na sua
defesa, por se mostrar prejudicada uma correcta referência aos suportes
técnicos que registam a prova produzida.
11. O Venerando Tribunal da Relação de Évora, consignando que «a
transcrição só deve ocorrer quando efectivamente haja sido interposto recurso em
que se impugne a matéria de facto, recurso este em que os recorrentes devem
indicar concretamente, com referência aos suportes técnicos, aquelas provas que,
segundo eles, impõem decisão diversa da recorrida, assim como as provas que
devem ser renovadas», coarcta e limita, de modo ilegal e inconstitucional, as
garantias de defesa asseguradas ao arguido.
12. Assim sendo, as normas dos artigos 411.º, n.º 1, e 412.º, n.ºs 3
e 4, do CPP e artigo 698.º do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP, na interpretação que
lhes foi dada pelo Tribunal da Relação de Évora, no douto Acórdão recorrido, são
inconstitucionais, por violarem o disposto no artigo 32.º da CRP.
13. Especificadamente, coarctando ao arguido o seu direito ao
recurso, quando rejeita o mesmo por extemporâneo, no entendimento de que o
recorrente não se deve valer da transcrição dos actos de audiência para
fundamentar o seu recurso, porque esta não tem a finalidade de permitir o acesso
ao recorrente da prova produzida, mas apenas facultar ao tribunal de recurso o
reexame das provas.
14. Entendimento que poderá igualmente desembocar, salvo melhor
opinião, numa violação dos princípios da segurança processual, da certeza
jurídica e da legalidade, consagrados constitucionalmente.
15. Devendo tal inconstitucionalidade ser doutamente declarada por
esse egrégio Tribunal Constitucional.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto
suprimento de V. Ex.as, deve ser concedido provimento ao presente recurso e,
por via disso, declarar‑se a inconstitucionalidade das normas dos artigos 411.º,
n.º 1, e 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP e artigo 698.º do CPC, ex vi artigo 4.º do
CPP, por violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, na
interpretação de que deve ser rejeitado por extemporâneo o recurso interposto
após a notificação ao recorrente da transcrição dos actos de audiência por se
entender que para efeitos de recurso o recorrente não se deve valer da
transcrição para motivar o mesmo, porque esta não tem a finalidade de permitir o
seu acesso à prova produzida, mas apenas facultar ao tribunal de recurso o
reexame das provas; determinando‑se, assim, a reformulação do acórdão recorrido
em conformidade, fazendo V. Ex.as inteira e sã Justiça.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional apresentou contra‑alegações, concluindo:
“1.º – Não é inconstitucional a interpretação normativa dos artigos
411.º, n.º 1, e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual não
constitui impedimento à interposição do recurso da decisão final condenatória a
indisponibilidade da transcrição da prova gravada no julgamento, dispondo o
arguido de pleno acesso e imediato aos suportes materiais da gravação.
2.º – Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
O Tribunal Constitucional já foi, por diversas vezes,
chamado a pronunciar‑se sobre a constitucionalidade de normas relativas ao
início do prazo para apresentação do requerimento de interposição de recurso em
processo penal, que deve, por regra, conter a respectiva motivação (ou ao início
do prazo para apresentação da motivação do recurso, no único caso em que esta
pode ser posterior à interposição: interposição, por simples declaração na acta,
de recurso de decisão proferida em audiência – artigo 411.º, n.º 3, do CPP),
O critério seguido nessa jurisprudência tem sido o de
que tal prazo só se pode iniciar quando o arguido (assistido pelo seu defensor),
actuando com a diligência devida, ficou em condições de ter acesso ao teor,
completo e inteligível, da decisão impugnanda, e, nos casos em que pretenda
recorrer também da decisão da matéria de facto e tenha havido registo da prova
produzida em audiência, a partir do momento em que teve (ou podia ter tido,
actuando diligentemente) acesso aos respectivos suportes, consoante o método de
registo utilizado (escrita comum, meios estenográficos ou estenotípicos,
gravação magnetofónica ou audio‑visual).
Nessa linha jurisprudencial se inserem:
– o Acórdão n.º 75/99, que não julgou inconstitucional a
norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretado no sentido de que o prazo de
interposição de recurso se conta a partir da data em que a sentença foi
proferida na presença do arguido e do seu defensor, tendo nesse mesmo dia sido
depositada na secretaria, e não apenas da data em que posteriormente foi
notificada por via postal, pois desde aquela primeira data o arguido ficou em
posição de conhecer integralmente a sentença;
– o Acórdão n.º 363/2000, que julgou inconstitucionais
as normas dos artigos 107.º, n.º 2, do CPP e 146.º, n.º 1, do CPC, interpretados
no sentido de a impossibilidade de consulta das actas de julgamento (quando
tenha sido requerida a documentação em acta das declarações orais prestadas em
audiência), por as mesmas não estarem ainda disponíveis, não constitui justo
impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em
processo penal, juízo de inconstitucionalidade que se fundou no entendimento de
que o acesso a essas actas constitui “um elemento importante para a preparação
da defesa do arguido, concretamente para a elaboração da alegação do recurso”;
– os Acórdãos n.ºs 148/2001 e 202/2001, que julgaram
inconstitucional a norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, quando interpretado no
sentido de determinar a contagem do prazo de interposição do recurso da data do
depósito na secretaria da sentença manuscrita de modo ilegível, e não da data
em que o defensor do arguido é notificado da cópia da sentença dactilografada,
tempestivamente requerida, juízos de inconstitucionalidade que se fundaram no
entendimento de que “o direito ao recurso implica, naturalmente, que o
recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da
decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz do seu
direito”, o que “pressupõe a plena estabilidade e inteligibilidade da decisão
recorrida”;
– o Acórdão n.º 87/2003, que julgou inconstitucional a
norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, na interpretação segundo a qual o prazo
para interpor recurso de acórdão de Tribunal da Relação, proferido em
conferência, nos termos do artigo 419.º, n.º 4, do CPP, e não em audiência (com
prévia convocação, para além de outros intervenientes, do defensor, de acordo
com o artigo 421.º, n.º 2, do mesmo Código), se conta a partir do depósito do
acórdão na secretaria, e não da respectiva notificação, tendo o Tribunal
Constitucional sublinhado que, uma vez que “nem o recorrente nem o seu defensor
tinham sequer conhecimento da data de realização da conferência, que não lhes
foi comunicada”, não lhes era exigível uma diligência que se traduziria no
“controlo cego do hipotético dia da tomada de decisão por parte do Tribunal da
Relação”;
– o Acórdão n.º 186/2004, que julgou inconstitucional a
norma do artigo 411.º, n.º 1, do CPP, interpretado no sentido de que o prazo
para apresentação da motivação de recurso interposto por declaração na acta da
audiência onde foi proferida a sentença se conta a partir da data dessa
interposição, mesmo que a sentença só posteriormente haja sido depositada na
secretaria, tendo o Tribunal Constitucional considerado que “há que reconhecer
que «a mera leitura da sentença na presença do arguido e do seu defensor
oficioso no mínimo pode não permitir uma completa apreensão do teor da sentença
para efeito de motivação do recurso», pois «a interposição de um recurso
pressupõe uma análise minuciosa da decisão que se pretende impugnar, análise
essa que não é de todo possível realizar por mero apelo à memória da leitura do
texto da sentença», antes exige o acesso ao texto da sentença, o que apenas se
torna possível com o seu depósito na secretaria”.
Versando hipótese idêntica à ora em causa, o Acórdão n.º
433/2002 decidiu não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 107.º,
n.º 2, do CPP, segundo a qual, havendo possibilidade de acesso ao suporte
material da prova gravada, a impossibilidade de acesso às transcrições das
declarações prestadas em audiência (quando tenha sido requerida a respectiva
gravação), por as mesmas ainda não estarem disponíveis, não constitui justo
impedimento para a interposição do recurso da decisão final condenatória em
processo penal. Esse acórdão salientou a diferença da situação então em apreço
com aquela sobre que incidiu o Acórdão n.º 363/2000 (em que o único suporte de
registo das declarações prestadas em audiência eram as actas escritas, que
ainda não estavam elaboradas), pois agora, em que existia gravação
magnetofónica, embora ainda não transcrita, “a impugnação do julgamento da
matéria de facto pode perfeitamente basear‑se no próprio suporte material da
prova gravada (que é, afinal, o registo originário da prova), à disposição do
arguido desde o início do prazo para a interposição do competente recurso”, pelo
que “não tem razão o recorrente quando alega (...) que, não lhe sendo facultada
a transcrição da prova gravada em tempo útil, lhe é cerceada a possibilidade de
interpor recurso, resultando violada a norma do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição”.
Foi também numa situação em que não se questionava a
possibilidade de acesso efectivo, por banda do arguido, às cassetes de gravação
de prova desde o dies a quo do cômputo do prazo para a apresentação da motivação
de recurso interposto por declaração para a acta feita na audiência onde foi
proferido o acórdão condenatório, recurso que versava também a decisão da
matéria de facto, que o Acórdão n.º 542/2004 decidiu que o não acréscimo, ao
prazo de 15 dias fixado no artigo 411.º, n.º 1, do CPP, do prazo de 10 dias
estabelecido no artigo 698.º, n.º 6, do CPC, não violava o direito de recurso
(artigo 32.º, n.º 1, da CRP), por se entender que aquele prazo de 15 dias para
apresentação da motivação não se mostrava desrazoável ou inadequado, “mesmo
tendo em conta que o asseguramento efectivo dessas possibilidades de defesa
passará pela audição das cassetes e pela preparação, estudo e elaboração da
alegação de recurso, com as referidas especificações [as exigidas no artigo
412.º, n.ºs 3, alíneas b) e c), e 4, do CPP]”, nem ofendia o princípio da
igualdade (artigo 13.º da CRP), face ao regime processual civil, por a
celeridade processual ter, no processo penal (o artigo 32.º, n.º 2, da CRP
inclui entre as garantias do arguido a de “ser julgado no mais curto prazo
compatível com as garantias de defesa”), “uma fonte e intensidade
constitucional diferente da que concerne à defesa de outros direitos, à qual se
refere o n.º 4 do artigo 20.º da CRP”. Por isso, nesse Acórdão n.º 542/2004 se
decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 411.º, n.ºs 1 e
3, do CPP, na interpretação segundo a qual não acresce o prazo de 10 dias a que
se refere o artigo 698.º, n.º 6, do CPC, em caso de recurso que tenha por
objecto a reapreciação da prova gravada.
A este propósito assinale‑se que, no recente Acórdão n.º
9/2005, do plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 11
de Outubro de 2005 (Diário da República, I Série‑A, n.º 233, de 6 de Dezembro de
2005, p. 6936) foi fixada a seguinte jurisprudência: “Quando o recorrente
impugne a decisão em matéria de facto e as provas tenham sido gravadas, o
recurso deve ser interposto no prazo de quinze dias, fixado no artigo 411.º, n.º
1, do Código de Processo Penal, não sendo subsidiariamente aplicável em
processo penal o disposto no artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo Civil”.
Tal conclusão fundou‑se no entendimento de que o actual regime legal de recursos
em processo penal constitui um sistema autónomo, inexistindo lacuna que
justifique a aplicação da norma processual civil. A demonstração da
razoabilidade daquele regime, no que especificamente concerne à interposição e
motivação do recurso em que se questione a decisão da matéria de facto, assentou
essencialmente na explanação das finalidades específicas da motivação, por um
lado, e da gravação da prova e sua subsequente transcrição, por outro. Segundo
o aludido acórdão, “a motivação constitui (ou deveria constituir quando bem
compreendido o sistema) tão‑só a enunciação dos fundamentos do recurso com a
função de delimitar o respectivo objecto, podendo os recorrentes desenvolver a
fundamentação nas alegações, por regra a produzir oralmente na audiência no
tribunal de recurso – artigos 411.º¸ n.º 4, e 423.º do CPP”. Já quanto à
gravação e transcrição, ponderou‑se no mesmo aresto:
“7. No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente
deve especificar nas conclusões os pontos de facto que considera
incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e
as provas que devem ser renovadas – artigo 412.º¸ n.º 3¸ alíneas a)¸ b) e c), do
CPP.
Quando as provas tenham sido gravadas, dispõe o n.º 4 do artigo 412.º, as
especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem‑se por referência
aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Esta disposição, que descreve um iter procedimental para quando seja impugnada a
decisão sobre a matéria de facto, separa inteiramente dois momentos, partindo
do pressuposto e da função da gravação da prova e dos respectivos suportes
técnicos e da função e finalidade da transcrição das provas gravadas.
A gravação da prova, enquanto meio que permite a constituição de uma base para a
reapreciação da decisão em matéria de facto pelo tribunal de recurso, obedece a
modos regulamentados de execução constantes dos artigos 3.º a 9.º do Decreto-Lei
n.º 39/95, de 15 de Fevereiro.
Dos procedimentos regulados quanto ao modo como se efectua a gravação resulta
que os suportes técnicos (fitas magnéticas ou outros suportes contendo a
gravação) devem ser colocados pelo tribunal à disposição das partes no prazo
máximo de oito dias a contar da respectiva diligência.
Deste modo, é a tais suportes técnicos (fitas gravadas ou outros) que a lei se
refere no artigo 412.º, n.º 4, do CPP, e não a quaisquer transcrições da prova
gravada; a especificação das provas que no entender do recorrente impõem
decisão diversa e das provas que devem ser renovadas não é feita por referência
à transcrição, mas por referência aos suportes técnicos donde consta a gravação
das provas.
E como decorre da lógica imediata da sequência dos procedimentos, só após tal
identificação e na estrita medida da referência feita, é que se procederá à
transcrição do que for relevante – não transcrição de toda a prova, mas apenas
dos elementos que sejam previamente identificados e referidos pelo recorrente
no cumprimento do ónus de especificação que lhe impõe a referida norma do artigo
412.º, n.º 4, do CPP.
A transcrição é um acto posterior que incumbe ao tribunal efectuar (cf. Acórdão
de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003, de 16 de Janeiro de 2003¸ in Diário da
República, I Série‑A, de 30 de Janeiro de 2003) nos termos e na medida
delimitada previamente pelo recorrente, e destina‑se a permitir (rectius, a
facilitar) ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova
documentada.
Mas, sendo assim, a oneração ou tarefa complementar (e posterior) da transcrição
rigorosamente nada tem a ver com o prazo de recurso; é‑lhe posterior, e
pressupõe mesmo que esteja definido o objecto do recurso na motivação, e
consequentemente interposto o recurso em devido tempo.
Esta interpretação, que resulta da simples descrição das sequências
procedimentais, é inteiramente compatível com o respeito pelas exigências
impostas pelo respeito dos prazos do recurso.
Com efeito, como dispõe o artigo 7.º do Decreto‑Lei n.º 39/95, de 15 de
Fevereiro, o tribunal facultará cópia das gravações, devendo o mandatário, com a
solicitação da cópia, fornecer as fitas magnéticas necessárias; a resposta do
tribunal, no prazo máximo que a lei impõe (oito dias) harmoniza‑se por modo
adequado com o exercício do direito ao recurso nos prazos fixados, sendo que, em
caso de demora na disponibilidade das cópias, o interessado sempre disporá da
faculdade de invocar justo impedimento. No rigor das coisas, os elementos
necessários à impugnação da matéria de facto – suportes materiais da prova
gravada – podem estar à disposição do recorrente desde o início do prazo para a
interposição do recurso.
E semelhante interpretação tem caução de constitucionalidade (cf., por todos, o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 542/2004, de 15 de Julho de 2004 – proc.
n.º 609/04).
(...)
9. (...)
Como se referiu, o regime estabelecido em processo penal relativo
aos procedimentos de impugnação da decisão em matéria de facto, revela‑se
coerente, com inteira autonomia, e não apresenta qualquer espaço vazio; é um
sistema que, nos termos descritos, funciona completamente por si, na previsão,
nos procedimentos e nos resultados da sua execução.
Apresentando‑se como regime completo, que funciona com autonomia, e
que permite realizar, por inteiro, e de modo razoável e constitucionalmente
capaz, a função para que foi concebido, não há espaços não regulados que
necessitem de complemento; não deixando espaços de regulamentação em aberto que
importe preencher, não existe, pois, lacuna de regulamentação.
E na sua completude é diverso, em momentos essenciais, do regime
relativo à impugnação da matéria de facto em processo civil, e uma tal
diversidade remete para o plano do legislador e não da pauta valorativa da lei.
No processo civil, com efeito, e para além do diverso prazo de
interposição (artigo 685.°, n.° l, do Código de Processo Civil), e das
diferentes modalidades para a apresentação dos fundamentos, a indicação dos
concretos meios de prova em que se funda («passagens da gravação» – artigo
690.°‑A, n.° 2, do CPC) é feita por referência à transcrição.
Por outro lado, a motivação em processo penal, que tem de ser
apresentada no prazo de interposição, constitui, quando bem interpretada na sua
função e finalidade processual, apenas uma delimitação do objecto do recurso e a
enunciação dos fundamentos, sendo o desenvolvimento dos fundamentos do recurso
objecto de intervenções posteriores, seja nas alegações na audiência, seja,
quando o recorrente o requeira, em alegações escritas.
A sequência da evolução legislativa dos modelos de recurso no
processo civil e no processo penal revela que evoluíram de modo autónomo
relativamente à admissibilidade, natureza e modo de concretização do recurso
em matéria de facto.
O recurso em matéria de facto no regime do CPP/87 era admitido
mediante a reapreciação através da documentação das declarações prestadas em
audiência nos casos de julgamento perante tribunal singular, ou com a renovação
da prova.
No processo civil, foi apenas com a Reforma de 1995 (Decreto‑Lei n.º
329‑A/95, de 12 de Dezembro) que a lei admitiu o recurso em matéria de facto com
base em suportes gravados, mas sem aplicação, porque os regimes eram diversos,
ao processo penal.
A Reforma do processo penal de 1998, visando dar maior eficácia à
garantia do duplo grau de jurisdição em matéria penal (a revisão constitucional
de 1997 expressamente constitucionalizou o direito ao recurso como uma das
garantias de defesa – artigo 32.º, n.º 1, in fine), permitiu o recurso em
matéria de facto de decisões do tribunal colectivo, tendo por base o suporte das
provas gravadas, fixando‑lhe o respectivo regime de interposição – as
especificações da motivação referidas no artigo 412.º, n.º 3, do CPP. E, em
coerência de tempos, a lei aumentou o prazo de interposição de recurso de dez
para quinze dias.
Se nesse momento o legislador não unificou ou aproximou os regimes
no que respeita à identidade de prazos de interposição do recurso, limitando‑se
a alargar o prazo do recurso em processo penal, foi certamente porque,
atendendo às diferenças entre os modelos e aos diversos interesses em
confronto, não entendeu que fosse necessária, adequada ou justificada uma tal
identificação.”
Embora, em rigor, no presente recurso não esteja
directamente em causa a divergência interpretativa sobre que incidiu o Acórdão
de fixação de jurisprudência acabado de referir (isto é: a aplicabilidade aos
recursos penais da regra do acréscimo de 10 dias dos prazos para alegações
estabelecidos no artigo 698.º do CPC sempre que o recurso tenha por objecto a
reapreciação da prova gravada, mas antes a questão de saber se é
constitucionalmente imposto que o início do prazo de interposição e de motivação
de recurso penal visando (também) a matéria de facto, quando tenha havido
gravação da prova, se conte apenas a partir da data em que o tribunal
disponibiliza ao recorrente a transcrição dessa gravação), o certo é que as
considerações nele tecidas sobre a finalidade desta transcrição – facilitar ao
tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada, e
já não habilitar o recorrente a elaborar a sua motivação (que, bem compreendida,
deve constituir tão‑só a enunciação dos fundamentos do recurso, com a função de
delimitar o respectivo objecto, podendo o recorrente desenvolver a
fundamentação nas alegações, orais ou escritas, a produzir no tribunal ad quem –
artigos 411.º, n.º 4, e 423.º, n.º 3, do CPP), pois para tal lhe basta, para lá
da assistência e intervenção em toda a audiência de julgamento e do
conhecimento do teor integral da decisão condenatória, o acesso às gravações da
prova produzida (até porque é em relação a estes suportes técnicos, e não à sua
posterior transcrição, que devem ser feitas as especificações exigidas nas
alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP) – reforçam o juízo de
razoabilidade do regime estabelecido que, na sequência do Acórdão n.º 433/2002,
se entende não poder ser reputado como envolvendo uma limitação
constitucionalmente intolerável do direito de recurso em matéria penal.
Nem se diga, por último, que a presente situação, pela
circunstância de o pedido, formulado pelo recorrente, de transcrição das
gravações pelo tribunal ter sido deferido por despacho judicial, é equiparável
àquelas sobre que versaram os Acórdãos n.ºs 39/2004, 44/2004 e 722/2004 (o texto
integral destes Acórdãos, bem como de todos os anteriormente citados, está
disponível em www.tribunalconstitucional.pt), em que se entendeu que violaria os
princípios da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa,
consagrados, respectivamente, nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da CRP, a
“destruição”, pelo tribunal superior, de efeitos produzidos por decisões
expressas da 1.ª instância e não impugnadas, que, no primeiro caso, considerara
interrompido o prazo de interposição de recurso por motivo de pedido de escusa
do anterior patrono deduzido na pendência desse prazo; no segundo caso,
expressamente deferira pedido do arguido de prorrogação do prazo de
interposição de recurso por mais 10 dias, por “aplicação analógica” do artigo
698.º, n.º 6, do CPC; e, no terceiro caso, declarara interrompido o prazo para o
arguido recorrer desde a data em que fora pedida a duplicação das cassetes
contendo a gravação da prova até à data da efectiva disponibilização das cópias
das cassetes. É que, no presente caso, não foi proferido nenhum despacho de
alcance equivalente àqueles, não sendo lícito inferir do despacho de
deferimento do pedido de transcrição das gravações, transcrição que se entendeu
competir ao tribunal (solução cuja correcção viria a ser consagrada pelo Acórdão
de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2003), a conclusão de que, no entendimento do
tribunal, o prazo de interposição do recurso e apresentação da respectiva
motivação só começaria a correr quando o recorrente viesse a ser notificado de
que a transcrição fora concluída e de que ele a podia consultar. Actuando com a
diligência exigível, o recorrente devia ter, logo após a notificação da
sentença, em 9 de Dezembro de 2002, requerido que lhe fosse facultada uma cópia
da gravação, pretensão que o tribunal tinha de satisfazer no prazo máximo de 8
dias (artigo 7.º do Decreto‑Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro). Se o recorrente
tivesse adoptado esse comportamento, cuja iniciativa só a ele competia, poderia
questionar‑se se o prazo de interposição do recurso não deveria começar a
contar a partir da data da disponibilização das cópias das gravações, mas,
pelas razões atrás expostas, nunca tal prazo poderia contar‑se apenas a partir
da data da notificação da recepção da transcrição da gravação, efectuada em 26
de Março de 2003.
Conclui‑se, assim, que, não tendo o recorrente
solicitado, podendo tê‑lo feito, o acesso à gravação da prova logo após a
notificação da sentença, e considerando‑se que com a possibilidade desse acesso
o arguido ficava em condições de exercitar – consciente, fundada e eficazmente –
o seu direito de recurso, nenhuma censura merece o juízo de não
inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos
artigos 411.º, n.º 1, e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretados
no sentido de que o prazo de interposição de recurso penal em que se questione
a decisão da matéria de facto e em que se procedeu a gravação da prova
produzida em audiência se conta da data em que o arguido, agindo com a
diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da prova gravada, e não
da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa gravação; e,
consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos