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Processo n.º 470/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do despacho proferido pelo Vice-Presidente da Relação de Lisboa, de 21 de Janeiro de 2004, que indeferiu a reclamação por ele deduzida contra o despacho do Tribunal Criminal de Lisboa (3º Juízo-2ª Secção) que não lhe admitiu, por extemporaneidade, o recurso interposto contra a sentença proferida pelo mesmo Tribunal, depositada em 4 de Julho de 2002 e rectificada em
9 de Dezembro de 2002.
2 – A decisão recorrida estribou-se nas seguintes considerações que se transcrevem:
«2. Com interesse para a decisão desta reclamação mostra-se assente a seguinte dinâmica processual:
- Em 29 de Novembro de 2002, o arguido foi notificado pessoalmente da sentença (fls. 52).
- Em 2 de Dezembro de 2002, requereu a substituição do defensor oficioso nomeado e a suspensão do prazo de interposição de recurso.
- Foi proferido despacho de rectificação à sentença e nomeado defensora oficiosa ao arguido a Sr.a Dr.ª B..
- Em 12 de Dezembro de 2002 o arguido foi notificado pessoalmente do despacho de rectificação à sentença e a defensora oficiosa foi-o também por fax
(fls. 65 e 67).
- Em 18 de Dezembro de 2002 foi nomeada defensora oficiosa do arguido a Sr.a Dr.ª C., em substituição da Sr.a Dr.ª B..
- Em 19 de Dezembro de 2002 foi expedida notificação da sentença à defensora oficiosa (fls. 73).
- Em 6 de Janeiro de 2003 a defensora oficiosa Sr.a Dr.ª C. requereu a dispensa de patrocínio oficioso (fls. 76).
- Em 30 de Janeiro de 2003 foi nomeado defensor oficioso ao arguido o Sr. Dr. D., em substituição, tendo nesta mesma data sido expedida a notificação da sentença (fls.83 e 85).
- Em 6 de Fevereiro de 2003 o defensor oficioso, Sr. Dr. D., requereu dispensa do patrocínio (fls. 86).
- Em 24 de Abril de 2003 foi nomeada nova defensora oficiosa ao arguido a Sr.a Dr.ª E., tendo nesta data sido expedida a notificação à mesma da sentença proferida nos autos.
- Em 12 de Maio de 2003 foi interposto recurso daquela sentença, invocando-se o disposto nos artigos 399º, 401º n.º 1, alínea b), e 427º do Código de Processo Penal.
- Por despacho de fls. 103 e 104 o recurso foi rejeitado por ser considerada extemporânea a sua interposição.
Cumpre apreciar e decidir.
Permita-se-nos, antes de entrarmos na análise da reclamação, dizer que estamos perante uma situação mais ou menos paradigmática como os vários incidentes podem contribuir para a lentidão da justiça. Numa decisão que já foi proferida há ano e meio ainda estamos a discutir se essa decisão é, nesta data, susceptível de recurso!!
3. O Ex.mo Magistrado da 1ª Instância não admitiu o recurso interposto pelo arguido por considerar que o prazo de interposição de recurso se conta a partir da notificação da sentença (19/12/2002) efectuada na pessoa da defensora oficiosa Sr.a Dr.ª C., nos termos da parte final do n.º 9 do artigo 113º do Código de Processo Penal e não a partir da data da notificação da sentença à defensora oficiosa Sr.a Dr.ª E. (28/04/2003). E tem toda a razão o M.mo Juiz da 1ª Instância. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 39º do Código de Processo Civil, aplicável ao caso por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, a revogação ou renúncia do mandato devem ser notificadas ao mandante, com a advertência do n.º 3 do mesmo artigo. E neste n.º 3 estabelece-se que nos casos em que é obrigatória a constituição de advogado, se a parte, depois de notificada da renúncia, não constituir novo mandatário no prazo de 20 dias,.... se a falta for do réu o processo segue os seus termos. No caso concreto vários defensores oficiosos foram sendo substituídos. Não sabemos as condições em que o arguido foi notificado dessa situação de renúncia ou outra qualquer forma de substituição. Mas expressamente se determina que o patrocínio inicial, enquanto não for alterado, mantém-se para todos os efeitos. Ora no caso dos autos, enquanto os sucessivos defensores oficiosos não eram substituídos estavam obrigados a garantir o patrocínio para que estavam nomeados, praticando os actos processuais indispensáveis aos andamento do processo. Não é de aceitar que o direito de recurso se mantenha numa situação em que um defensor oficioso foi notificado da sentença em 19 de Dezembro de 2002 e depois em 6 de Janeiro de 2003 tenha requerido dispensa desse patrocínio, vindo a 30 de Janeiro de 2003 a ser nomeado um outro defensor oficioso em substituição daquele. Entre o pedido de dispensa e a sua substituição o seu patrocínio mantém-se, devendo praticar todos os actos necessários. A não prática desses actos implica que os mesmos, quando estejam sujeitos a prazos peremptórios - como é o caso de interposição de recurso - não mais possam ser praticados. E esta interpretação não viola qualquer norma constitucional, designadamente a do artigo 32º Constituição da República Portuguesa. O arguido teve sempre a possibilidade de ser assistido por advogado que ele próprio tivesse escolhido. Mas mesmo aqueles que lhe foram nomeados foram-no a seu pedido e puderam exercer livremente o seu patrocínio judiciário garantindo a assistência jurídica ao arguido em todos os actos do processo, designadamente na possibilidade de poderem ter interposto o competente recurso da sentença condenatória.
4. Por todo o exposto, sem necessidade de mais considerações, indefere-se a presente reclamação.».
3 – Inconformado com o indeferimento da reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art.º 405º do CPP, o reclamante recorreu para o Tribunal Constitucional, “requerendo a fiscalização da constitucionalidade da aplicação concreta do disposto na norma do n.º 4 do art.º 66º do Código de Processo Penal”. Convidado, entretanto, pelo relator, no Tribunal Constitucional, a definir a precisa dimensão normativa cuja inconstitucionalidade o recorrente pretendia sindicar, veio o recorrente responder pelo modo constante do requerimento de fls. 130 dos autos, dizendo que “é a norma do disposto no n.º 4 do artigo 66º do Código de Processo Penal, conjugada com o disposto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa” (itálico acrescentado).
4 – Recorrente e recorrido alegaram sobre o objecto do recurso, defendendo o primeiro a inconstitucionalidade da norma sindicada e o segundo a sua conformidade com a Lei Fundamental.
5 – Após a apresentação dessas alegações proferiu o relator o despacho de fls. 165 e ss., suscitando a questão prévia do não conhecimento do recurso. Disse-se em tal despacho:
«3 – Ora decorre do despacho recorrido que a norma que este aplicou como fundamento normativo do indeferimento da reclamação e confirmação do despacho reclamado de não admissão do recurso por extemporaneidade do mesmo não foi aquela norma do Código de Processo Penal, que nem sequer foi mencionada, mas foi antes, de forma expressa, a norma constante do n.º 3 do art.º 39º do Código de Processo Civil, considerada aplicável ao processo penal por força do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal.
4 – Prefigura-se, deste modo, uma questão prévia consubstanciada na falta de um pressuposto específico do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que obsta ao conhecimento do recurso interposto.
5 – Deste modo e nos termos do n.º 1 do art.º 704º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art.º 69º da LTC, determina-se a audição de cada uma das partes por 10 dias.».
6 – Ouvidos sobre a questão prévia, o recorrente nada respondeu e o Ministério Público disse que «a aplicação da norma do n.º 4 do artigo 66º do Código de Processo Penal, afigura-se-me resultar, ainda que de forma não expressa, do teor da decisão recorrida e como fundamento [...]».
B – Fundamentação
7 – Como tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, a circunstância de o recurso ultrapassar a fase liminar prevista essencialmente para o conhecimento das questões que obstam ao seu conhecimento não impede que mais tarde, mesmo após a apresentação de alegações, o Tribunal venha a concluir, após um estudo mais reflectido, pela existência de qualquer dessas questões. E é o que se passa no caso sub judice. Na verdade, decorre do despacho recorrido que a decisão de indeferimento da reclamação apresentada nos termos do art.º 405º do CPP sobre o despacho do tribunal de 1ª instância que não admitiu por extemporaneidade o recurso para o Tribunal da Relação se fundamentou expressamente nas normas constantes dos n.ºs 1 e 3 do artigo 39º do Código de Processo Civil, “aplicável ao caso por força do artigo 4º do Código de Processo Penal”. Toda a argumentação da decisão recorrida assenta no entendimento - correcto ou incorrecto, não importa aqui analisar - de que a solução do caso decorre da sua subsunção às regras que regulam o mandato em processo civil, incluindo a definição dos efeitos da renúncia até à constituição do novo mandatário e os decorrentes da demora nessa constituição. Não pode assim ver-se na decisão recorrida qualquer aplicação, ainda que implícita, do disposto no nº
4 do art. 66º do C.P.Penal, até porque a situação regulada neste preceito é a de
“defensor nomeado para o acto”, o que não era o caso em apreço. E não se diga que o autor da decisão recorrida incorreu em qualquer lapso ou erro material de escrita na localização dos preceitos aplicados, que teria em mente o Código de Processo Penal e não o Código de Processo Civil. A circunstância de, em aclaração pedida pelo recorrente, ter expressamente afirmado que os preceitos em que o recorrente fundava a reclamação eram os “artigos 66º, n.º 4, 113º, n.º 9 e
333º, n.º 5, todos do Código de Processo Penal”, e não como por lapso manifesto escrevera no relatório da decisão recorrida “artigos 66º, n.º 4, 113º, n.º 9 e
333º, n.º 5, todos do Código de Processo Civil”, revela que, embora colocado sobre a hipótese da sua aplicação, a decisão recorrida não quis colher e não colheu a decisão do caso a partir das normas do processo penal que haviam sido invocadas como fundamento da reclamação, entre as quais se contava a do n.º 4 do art.º 66º do Código de Processo Penal, mas de outras – as regras do processo civil.
Assim sendo, verifica-se que o recorrente sindica constitucionalmente norma diversa daquela que constituiu a ratio decidendi da decisão, com o que falece um dos pressupostos do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade exigido pelos art.ºs 280º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70º, n.º 1, alínea b), da LTC, pressuposto esse demandado pela natureza instrumental do recurso de constitucionalidade adoptado pela nossa Lei Fundamental, da qual decorre que a decisão, em caso de provimento, há-de determinar a reforma do decidido.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 10 UC, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos