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Processo n.º 943/05
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam em conferência na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca do Barreiro, de 21 de Abril de
2004, foi o ora recorrente, A., condenado, como autor material de um crime de
abuso de confiança fiscal, na forma continuada, a uma pena de 2 anos de prisão,
suspensa por um período de 2 anos sob a condição de o arguido pagar ao Estado,
no referido prazo, o imposto liquidado e não pago.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu dela para o Tribunal da
Relação de Lisboa, tendo, a concluir a sua alegação, formulado as seguintes
conclusões:
“1) Consumando-se o crime de abuso de confiança fiscal - com a formulação legal
vigente à data dos factos (art. 24° do DL n° 20-A/90 de 15/Janeiro, com a
redacção introduzida pelo DL n° 394/93 de 24/Novembro) - apenas com a
apropriação de verbas que tenham sido efectivamente recebidas a título de IVA e
não entregues à Administração Fiscal - não bastando a não entrega de verbas
liquidadas, tal como decorre actualmente do art. 105° da Lei n° 15/2001, de
5/Junho -, só é possível a condenação do arguido pelo cometimento de tal crime
perante provas inequívocas do recebimento por si de tais verbas, sob pena de se
violar aquele art. 24° do DL 20-A/90 e também os artigos 1° e 2° do Código
Penal, na medida em que tal corresponde a aplicar retroactivamente o regime do
actual artigo 106º da Lei n° 15/2001;
2) A prova do recebimento não pode ser feita apenas pelo exame das contas
correntes junto das firmas clientes do arguido - donde conste a mera liquidação
de verbas do IVA - desacompanhado da verificação da existência de efectivos
pagamentos, mais a mais tendo presente a definição legal de conta corrente e sua
exigibilidade, constante dos artigos 344° e 350° do Código Comercial. Deve-se
pois concluir pela verificação de uma insuficiência para a decisão da matéria de
facto provada;
3) Só a prova documental é bastante (artigos 364° e 786º e 787° do Código Civil)
para provar a entrega dos correspondentes valores ao arguido e a consequente
apropriação, sendo certo que o arguido até juntou prova documental contrária, ou
seja, de que não recebeu verbas liquidadas a título de IVA (cfr. alínea I)
supra), prova essa que não foi analisada nem sopesada. Verifica-se assim outra
vez um erro notório na apreciação da prova;
4) Há uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando se dá
como não provado que o arguido tivesse emitido o total de 1282 facturas e
simultaneamente se dê por assente que as facturas emitidas pelo arguido aos seus
clientes foram por este pagas, sendo certo que os técnicos tributários, na
liquidação oficiosa a que procederam, consideraram justamente o total dessas
alegadas 1282 facturas cuja emissão o tribunal não considerou provada.
5) Verifica-se outra insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
quando o arguido é confrontado com um cálculo, a granel, por trimestre, de
montantes facturados e IVA não pago, sem qualquer discriminação das facturas,
com as respectivas datas de emissão, o cliente em nome de quem tivessem sido
emitidas e o respectivo montante, para se apurar, factura a factura, o eventual
IVA cobrado e não entregue;
6) O arguido deve assim ser absolvido do crime de abuso de confiança fiscal uma
vez que as provas impõem uma decisão diversa da recorrida ou, no mínimo,
sugerem, pela incerteza, a aplicação do princípio “in dubio, pro reo”;
7) Esgotado que estava o poder jurisdicional com a prolação do primeiro Acórdão
proferido pelo Tribunal “a quo” - só alterável por via da correcção da sentença
(artigo 380º do CPP) - e considerando que nenhuma outra prova foi produzida
quando da reabertura da audiência, para além da prova documental oferecida pelo
arguido, pode-se concluir que a sentença, com a substancial reformulação
introduzida na fundamentação do crime de abuso de confiança fiscal, conheceu de
questões cuja apreciação lhe estava vedada, inquinando-a desta feita, e de novo,
com o vicio da nulidade (art. 379°, n° 1, al. c) do CPP).
8) De harmonia com o art. 15° do RJIFNA (DL n° 20-A/90 de 15/Jan, alterado pelo
DL n° 394/93, de 24/Nov.), o presente procedimento acha-se extinto, por
prescrição, uma vez que sobre a prática do mesmo decorreram mais de cinco anos e
até mais de sete anos e meio.”
3. Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26 de Janeiro de 2005, foi o
recurso julgado totalmente improcedente.
4. Novamente inconformado o arguido pretendeu recorrer desta decisão para o
Supremo Tribunal de Justiça - já depois de, entretanto (acórdão de 27 de Abril
de 2005), ter sido negado provimento a um requerimento em que arguía a nulidade
daquele acórdão - não tendo o recurso sido admitido, por decisão do relator do
processo ainda no Tribunal da Relação de Lisboa, de 8 de Julho de 2005.
5. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, apresentando
para o efeito um requerimento com o seguinte teor: “[...], nos autos em tópico,
inconformado com os acórdãos proferidos (em 26/01/05 e em 27/04/05), vem deles
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70º da Lei nº
28/82 de 15 Nov. Assim, por estar em tempo e ter legitimidade, requer a admissão
do presente recurso com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo”.
6. Por despacho do Relator do processo no Tribunal da Relação de Lisboa foi o
recorrente convidado a “dar integral cumprimento ao disposto no art. 75º-A da
Lei do Tribunal Constitucional”.
7. Em resposta a esta solicitação o recorrente apresentou o seguinte
requerimento:
“[...], nos autos em tópico, notificado para o efeito, vem esclarecer que,
inconformado com os Acórdãos proferidos (em 26/01/05 e em 27/04/05), vem deles
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
1- Ao abrigo do art. 70°, n. 1, al. b) e i) da Lei n° 28/82 de 15/Nov.
a) tendo o recorrente suscitado, em sede de recurso, a excepção da prescrição do
procedimento penal, alicerçado no art. 15° do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro
(RJIFNA), que estabelecia um regime especial em matéria de prescrição, não
contemplando actos interruptivos, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa
(TRL) não só considerou, ao arrepio desse regime legal sem lacunas,
subsidiariamente aplicável o regime geral do instituto estabelecido nos arts.
118° a 121° do Código Penal (CP), como aplicou, retroactivamente a factos
ocorridos até 1995, a redacção introduzida aos preceitos desse instituto por uma
lei posterior aos factos (a Lei 65/98), manifestamente mais desfavorável - já
que no teor do primitivo art. 120° do CP (a que corresponde actualmente, por
força daquela Lei, art. 121°), ainda que fosse aplicável, a interrupção e a
suspensão da prescrição só se verificava com a notificação do despacho de
pronúncia (dada a inexistência, à data dos factos, de instrução preparatória),
sendo certo que esse hipotético acto interruptivo só teria ocorrido mais de 5
anos após a prática do último acto alegadamente infractor.
Ao não interpretar assim, o Venerando TRL não só violou garantias de defesa e do
processo criminal, como outrossim violou os princípios da legalidade, da
confiança e ainda o da irretroactividade da lei penal mais favorável.
Tal inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento em que se arguiu a
nulidade do Acórdão do TRL, além de está em desconformidade com o anteriormente
decidido sobre a questão da irretroactividade da lei penal menos favorável pelo
Tribunal Constitucional (vide, entre outros, os Ac. 4121 de 15.07.93; 4268 de
28.10.93 e 4290 e 4292 de 03.11.93), constituindo no mínimo uma
inconstitucionalidade implícita.
Consideram-se violados os arts. 2°, 20°, 29°, 32°, 204° e 205° da CRepP.
b) O ora recorrente suscitou, igualmente em sede de recurso, a ilegalidade
(nulidade) do Acórdão proferido pelo Tribunal de 1 a Instância, na medida em
que, depois de primeiramente anulada, em parte, pelo TRL, quando procedeu à
sanação do vício imputado, aproveitou, sem prévia notificação ao arguido, para
reformular e acrescentar fundamentos à parte da sentença não viciada e em
relação à qual estava esgotado o poder jurisdicional. Entende o recorrente que
tal procedimento viola o princípio da confiança e as suas garantias de defesa.
Tal ilegalidade foi suscitada na motivação de recurso e também no requerimento
em que arguiu a nulidade do Acórdão do TRL.
c} Outra ilegalidade suscitada em sede de recurso e na arguição de nulidade do
Acórdão do TRL, resulta, em nosso entender, da interpretação dada ao art. 127°
do Código de Processo Penal (CPP}, em violação do disposto nos arts. 364°, 786°
e 787º do Código Civil (CC), quanto entende que o princípio da livre apreciação
da prova é pleno e não está vinculado aos requisitos do art. 364°, n. 1 do CC
para o qual a primeira parte daquele art. 127° do CPP remete. Afigura-se ao ora
Rcte. que do mesmo modo se violou assim o princípio da confiança, o da tutela
efectiva de direitos e as garantias de defesa ínsitos nos arts. 2°, 20°, 29° e
32° do CRepP .
II - Ao abrigo do art. 70°, n. 1, al. g) da Lei n° 28/82 de 15/Nov.
Conforme se pode ver do ponto 7 do Acórdão do Venerando TRL, ao fixar a
delimitação do recurso, este Tribunal entendeu que o Rcte. não deu cumprimento
ao disposto nos n.s 3 e 4 do art. 412° do CPP. E adianta: “... se o tivesse
feito teria, por certo, terminado a motivação pedindo que determinados factos,
considerados ou não provados pelo tribunal de 1ª instância, fossem julgados de
forma diferente por esta Relação...”. E acrescenta: '...Nesse caso, poderia este
tribunal, no uso dos poderes que lhe são conferidos. . . modificar a decisão
proferida sobre a matéria de facto. Porém, o recorrente, certamente por ter
confundido a impugnação da decisão de facto com a mera invocação dos vícios da
sentença, optou por esta última via...” Postas assim as coisas, verifica-se que
aquele tribunal, em lugar de facultar a oportunidade de suprir tal deficiência,
acabou por não conhecer da impugnação sobre a matéria de facto - e isto apesar
de o Rcte. ter concretamente impugnado, nas alíneas e) a k), m) e n) da
motivação, a matéria de facto.
Violou assim aquele tribunal o decidido nesta matéria pelo Tribunal
Constitucional no seu Ac. n. 529/03 de 31/10/03, dessa forma pondo em causa a
garantia de acesso aos tribunais e de uma efectiva tutela dos direitos do
arguido, fulminando uma imperfeição formal com o não conhecimento da substância
e material idade do processo, violando do mesmo modo, além do mais, as garantias
de defesa do arguido e o seu direito a um julgamento justo.[...]”
8. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte relevante, o seu teor:
“[...] Admitido o recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, cumpre, antes de
mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que tal decisão não
vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional). Ora, como vai ver-se já de seguida, é manifesto que, por mais
do que uma razão, não pode conhecer-se do seu objecto.
9. O recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e i) do nº 1 do artigo 70º da
LTC.
Refere o recorrente, em primeiro lugar, que o presente recurso vem interposto ao
abrigo das alíneas b) e i) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional.
9.1. Ora, desde logo se verifica que a referência à alínea i) é, no contexto do
presente recurso, perfeitamente descabida, uma vez que é evidente que a decisão
recorrida não recusou aplicar qualquer “norma constante de acto legislativo, com
fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional”, nem aplicou
qualquer norma constante de acto legislativo “em desconformidade com o
anteriormente decidido sobre a questão pelo Tribunal Constitucional”, em relação
a qualquer suposta contrariedade com convenção internacional.
9.2. Mas também é evidente que não pode conhecer-se do objecto do recurso na
parte em que o mesmo vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do referido
artigo 70º.
Vejamos, sumariamente, porquê.
9.2.1. O recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC visa submeter
à apreciação do Tribunal Constitucional a constitucionalidade de normas
jurídicas aplicadas pela decisão recorrida. Ora, nos presentes autos, basta
atentar no teor do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal
para se poder concluir que, manifestamente, o recorrente não imputa aí a
inconstitucionalidade a uma norma jurídica -- ou a uma sua dimensão normativa
perfeitamente identificada - mas, quando muito, às decisões judiciais anteriores
proferidas em primeira e em segunda instância. Para o demonstrar é suficiente
recordar aqui a parte do requerimento de interposição do recurso em que o
recorrente procura formular a questão de constitucionalidade que pretende ver
apreciada, onde se afirma: “ a) [...] Ao não interpretar assim, o Venerando TRL
não só violou garantias de defesa e do processo criminal, como outrossim violou
os princípios da legalidade, da confiança e ainda o da irretroactividade da lei
penal mais favorável. Tal inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento em
que se arguiu a nulidade do Acórdão do TRL [...]” (negrito aditado).
Ora, constitui jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, estando
em causa a própria decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta
do disposto no artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82 e
assim tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na
verdade, ao contrário dos sistemas em que é admitido recurso de amparo,
nomeadamente na modalidade de amparo dirigido contra decisões jurisdicionais
que, alegadamente, violam directamente a Constituição, o recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade vigente em Portugal não se destina ao controlo
da decisão judicial recorrida, como tal considerada, como sucede quando a
discordância se dirige a esta última, mas, pelo contrário, ao controlo normativo
de constitucionalidade da norma aplicada.
Assim sendo, como efectivamente é, não estando colocada a este Tribunal uma
questão de constitucionalidade normativa, tanto basta para que não possa, nesta
parte, conhecer-se do objecto do recurso.
9.2.2. Acresce, ainda, que o recurso previsto na al. b) do n.º 1 do artigo 70º
da LTC só pode ser interposto pela parte que tenha “de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida”, suscitado a
questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada (n.º 2 do
artigo 72º da LTC). Ora, basta ler os textos apresentados pelo recorrente para
concluir que, ao contrário do que este afirma, nenhuma questão de
constitucionalidade normativa foi colocada ao tribunal que proferiu a decisão
recorrida, nem sequer no “requerimento em que se arguiu a nulidade do Acórdão do
TRL”, uma vez que, aí, apenas se refere - coerentemente, aliás, com a ideia de
que é a decisão judicial que viola a Constituição - que a não apreciação da
questão pelo Tribunal de Relação “retira ao Rcte a garantia constitucional de
uma tutela efectiva dos seus direitos e de acesso aos tribunais, designadamente
a uma efectiva instância de recurso, ínsita no artigo 20º da CRepP.”
Assim, também por este motivo, não é possível conhecer do objecto do recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
9.2.3. Finalmente, refira-se apenas que é igualmente descabida, num recurso
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC , a pretensão de
ver apreciada uma eventual ilegalidade, como parece decorrer das alíneas b) e c)
da parte I do requerimento acima transcrito, sendo certo, aliás, que nunca
estariam preenchidos, no caso concreto, quaisquer dos pressupostos que
permitiriam a este Tribunal conhecer, nos termos da alínea f) desse mesmo número
e artigo, de uma eventual ilegalidade normativa.
10. O recurso interposto ao abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
De acordo com o requerimento de interposição do recurso, já integrado com a
resposta ao convite para o seu aperfeiçoamento que foi formulado no Tribunal da
Relação de Lisboa, afirma o recorrente que o mesmo vem ainda interposto ao
abrigo da alínea g) do nº 1 do artigo 70º da LTC. No seu entendimento - tanto
quanto se consegue descortinar daquela peça processual - o disposto no artigo
412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal teria sido aplicado pela decisão
recorrida com o sentido já anteriormente julgado inconstitucional por este
Tribunal no Acórdão nº 529/03.
Mas, como se verá já de seguida, não é assim. Com efeito, a dimensão normativa
do artigo 412º, nº 3 do Código de Processo Penal que foi julgada
inconstitucional no Acórdão nº 529/03 não coincide exactamente com a que foi
aplicada nestes autos pela decisão recorrida. É que, nos autos que deram origem
ao acórdão nº 529/03, o tribunal recorrido, para poder concluir que o recorrente
não havia impugnado a matéria de facto nos termos exigidos pelo artigo 412º, n.º
s 3 do Código de Processo Penal, havia ponderado apenas o teor das conclusões do
recurso, não considerando a própria motivação, de onde constavam efectivamente
as indicações alegadamente em falta nas conclusões.
Ora, nos presentes autos, não é possível produzir idêntica afirmação. Em
primeiro lugar porque, diferentemente do que acontecia naqueles autos, nestes
não resulta do texto da decisão recorrida que, para poder concluir que a
recorrente não havia impugnado a matéria de facto nos termos exigidos pelo
artigo 412º, n.º s 3 do Código de Processo Penal, tenha sido ponderado apenas o
teor das conclusões do recurso. Em segundo lugar, porque lendo a motivação do
recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, dela resulta uma conclusão
contrária à que foi pressuposta pelo Acórdão n.º 529/03. Com efeito,
diferentemente do que foi possível afirmar partindo dos autos que deram origem a
este aresto, não pode agora igualmente concluir-se que na motivação (e não
apenas nas conclusões) de recurso apresentada perante o Tribunal da Relação de
Lisboa se encontram suficientemente indicados os elementos referidos nas várias
alíneas do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal. A situação presente
será, assim, próxima da julgada no acórdão n.º 140/2004, que decidiu “não julgar
inconstitucional a norma do artigo 412º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de
Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas
conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele
exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do
recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais
deficiências” e diversa da julgada no do Acórdão n.º 529/03.
Assim sendo, não havendo a perfeita coincidência que é exigida pela alínea g) do
nº 1 do art. 70º da LTC entre a dimensão normativa do artigo 412º, nº 3, do
Código de Processo Penal que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão nº 529/03
e a que foi efectivamente aplicada nestes autos, como ratio decidendi, pela
decisão recorrida, não pode, com fundamento nessa alínea, conhecer-se do objecto
do recurso.
11. Pelo exposto, há que concluir não poder este Tribunal conhecer do presente
recurso, por, manifestamente, não estarem presentes os seus pressupostos de
admissibilidade.[...]”
9. É desta decisão que vem interposta, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, n.º
3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, que o reclamante fundamenta
nos seguintes termos:
“I – Recurso com fundamento no art. 70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82 de 15/NOV.
Tendo o recorrente suscitado, em sede de recurso, a excepção da prescrição do
procedimento penal, alicerçado no art. 15° do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro
(RJIFNA), que estabelecia um regime especial em matéria de prescrição, não
contemplando actos interruptivo, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa (TRL)
não só considerou, ao arrepio desse regime legal sem lacunas, subsidiariamente
aplicável o regime geral do instituto estabelecido nos arts. 118º a 121 o do
Código Penal (CP), como aplicou, retroactivamente a factos ocorridos até 1995, a
redacção introduzida aos preceitos desse instituto por uma lei posterior aos
factos (a Lei 65/98), manifestamente mais desfavorável 'já que no teor do
primitivo art. 120º do CP (a que corresponde actualmente, por força daquela Lei,
o art. 121°), ainda que fosse aplicável, a interrupção e a suspensão da
prescrição só se verificava com a notificação do despacho de pronúncia (dada a
inexistência, à data dos factos, de instrução preparatória), sendo certo que
esse hipotético acto interruptivo só teria ocorrido mais de 5 anos após a
prática do último acto alegadamente infractor.
Tal matéria só foi conhecida na própria decisão proferida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa, não sendo exigível ao Rcte. que previsse que aquele Venerando
Tribunal aplicasse aquele art. 15° do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro RJIFNA em
termos desconformes com a Constituição e contra a jurisprudência do Tribunal
Constitucional, violando garantias de defesa e do processo criminal, como
outrossim violou os princípios da legalidade, da confiança e ainda o da
irretroactividade da lei penal mais favorável.
Tal inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento em que se arguiu a
nulidade do Acórdão do TRL. E se em termos formais já estava esgotado o poder
jurisdicional daquele tribunal, em termos funcionais, e porque a excepção da
prescrição pode e deve ser conhecida a todo o momento, por isso que se prende
directamente com as garantias de defesa do arguido, e porque a
inconstitucionalidade radica o próprio acórdão do Tribunal da Relação,
afigura-se ao Rcte. que é admissível o conhecimento da inconstitucionalidade
suscitada.
II - Recurso com fundamento no art. 70º, n. 1, al. g) da Lei nº 28/82 de 15/Nov.
Salvo o devido respeito, parece ao Rcte. que se mantêm válidas as razões que
fundamentaram o seu recurso para esse Venerando Tribunal, e que aqui se dão por
reproduzidas, uma vez que a decisão do Tribunal da Relação contraria a
jurisprudência desse Tribunal Constitucional.
O Rcte. impugnou concretamente, nas alíneas e) a k), m) e n) da motivação, a
matéria de facto. Fê-lo de forma imperfeita, mas incorporou na motivação toda a
materialidade da impugnação da matéria de facto. Além disso, as conclusões 2, 3
e 4, em substância, mais não são do que impugnação da matéria de facto.
A norma do art. 412°, n.s 3 e 4, quando interpretada no sentido de não facultar
ao recorrente a possibilidade de aperfeiçoar a motivação e conclusões do
recurso, põe em causa a garantia de acesso aos tribunais e de uma efectiva
tutela dos direitos do arguido, fulminando uma imperfeição formal com o não
conhecimento da substância e materialidade do processo, violando do mesmo modo,
além do mais, as garantias de defesa do arguido e o seu direito a um julgamento
justo.
Foi com este sentido que o Rcte. interpôs o recurso para esse Tribunal
Constitucional.[...]”
10. O Ministério Público, notificado da presente reclamação, disse o seguinte:
“1. A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2. Na verdade – e como é óbvio, o reclamante não suscitou, durante o processo –
podendo perfeitamente tê-lo feito, - qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, susceptível de integrar objecto idóneo de um recurso de fiscalização
concreta interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82.
3. Por outro lado - e no que se refere ao recurso fundado na alínea g) do mesmo
preceito legal, a inexistência de coincidência normativa entre o precedente
jurisprudencial invocado e a aplicação feita ao caso dos autos inviabiliza
naturalmente tal via impugnatória.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentação
11. Na decisão sumária reclamada concluiu-se no sentido da impossibilidade de
conhecer do objecto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por não ter sido colocada a este
Tribunal uma questão de constitucionalidade normativa, e por não ter o
recorrente suscitado, de modo processualmente adequado e perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, como exige o n.º 2 do art. 72º da Lei do Tribunal
Constitucional, qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de
integrar o recurso que pretendeu interpor.
O ora reclamante pretende contestar esta conclusão, limitando-se, porém, a
repetir o que afirmara no requerimento de resposta ao convite que lhe fora feito
pelo Desembargador Relator no Tribunal da Relação de Lisboa e a acrescentar que
“tal matéria só foi conhecida na própria decisão proferida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa, não sendo exigível ao Rcte. que previsse que aquele Venerando
Tribunal aplicasse aquele art. 15° do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro RJIFNA em
termos desconformes com a Constituição”.
Manifestamente, porém, sem qualquer razão. Na verdade, como já se demonstrou na
decisão sumária reclamada, em termos que não são minimamente abalados pela
presente reclamação, pelo que agora se reiteram, não só não foi colocada a este
Tribunal qualquer questão de constitucionalidade normativa, como também tal
questão não foi suscitada perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida,
podendo e devendo sê-lo, não havendo na decisão proferida pelo Tribunal da
Relação de Lisboa nada de insólito ou de imprevisível.
12. Considerou-se, ainda, naquela decisão, no que se refere ao recurso
interposto com fundamento na alínea g) do n.º 1 do artigo 70 da Lei do Tribunal
Constitucional, que, entre a dimensão normativa do artigo 412º, nº 3, do Código
de Processo Penal que foi julgada inconstitucional pelo Acórdão nº 529/03 e a
que foi efectivamente aplicada nestes autos, como ratio decidendi, pela decisão
recorrida, não havia a coincidência que é exigida pela referida alínea.
O ora reclamante, contesta tal decisão, mas nada acrescenta em relação ao que
afirmara no requerimento de resposta ao convite que lhe fora feito pelo
Desembargador Relator no Tribunal da Relação de Lisboa, e que foi já considerado
na decisão reclamada. Ora, nessa decisão foram claramente explicitadas as razões
pelas quais se entende que a dimensão normativa aplicada não coincide com a
julgada inconstitucional no acórdão n.º 529/03, as quais, por em nada terem sido
abaladas pela presente reclamação, agora se reiteram.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício