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Processo n.º 236/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 21 de Janeiro de 2002, A., Lda., melhor identificada nos autos, deduziu, no
Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, impugnação judicial, nos termos
do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, contra a
liquidação adicional de sisa, no valor de Esc. 937 600$00, resultante da
avaliação – promovida ao abrigo do disposto no artigo 57.º do Código de Imposto
Municipal de Sisa e do Imposto Sobre Sucessões e Doações (CIMSISD) – de uma
fracção de um prédio urbano sito na Av. Santos Graça, na Póvoa do Varzim, que
adquirira em 26 de Outubro de 2000.
Por sentença de 23 de Setembro de 2003, do 2.º Juízo daquele Tribunal, veio a
impugnação a ser julgada improcedente, escrevendo-se a propósito do artigo 19.º
do CIMSISD:
«Quanto à inaplicabilidade deste preceito legal por “contrária aos mais
elementares princípios constitucionais”, apenas se pode dizer não bastar uma tão
genérica invocação dos princípios constitucionais, constituindo ónus da parte a
concreta indicação de qual a norma tida por inconstitucional e, se tal vício
derivar de violação de princípios, também a concretização destes.»
Inconformada, a impugnante levou recurso para o Supremo Tribunal Administrativo,
invocando, entre o mais, que
“3 – A regra 19.ª, parágrafo 4.º, do artigo 19.° do CSISD, colide com os
princípios da igualdade, capacidade contributiva e tributação do rendimento
real.
4 – Assim, a Administração Tributária violou os artigos 13.º, n.º 2, e 104.º,
n.º 2, da CRP.
5 – Conclua-se, frisando que, ao ordenar uma avaliação correctiva do valor
declarado pela ora recorrente na escritura em causa, sem que se encontrem
preenchidos os pressupostos que a deviam determinar, a Administração Fiscal,
violou o artigo 103.º, n.º 2, da CRP.”
Por acórdão de 19 de Janeiro de 2005, aquele Alto Tribunal negou provimento ao
recurso, considerando, para o que ora importa, o seguinte:
«Conforme sustenta o EMMP a recorrente não fundamenta as ditas afirmações de
inconstitucionalidade.
O § 4.° do art.º 19.° do CSISD, impõe que, se for feita avaliação, o valor
resultante prevalecerá sobre o valor declarado.
Não descortinamos nem a recorrente alega e muito menos demonstra de que forma
tal norma conduz à violação do princípio da igualdade, da capacidade
contributiva ou da tributação do contribuinte pelo rendimento real.
Na verdade, continua a ser aplicável às presentes conclusões das alegações a
afirmação da recorrida de que não basta uma tão genérica invocação dos
princípios constitucionais.
Com efeito, deveria a recorrente alegar e demonstrar em que se traduzia a
violação daqueles princípios e nomeadamente quais as situações que mereciam
tratamento legal diferente e de que forma se mostram violados os ditos
princípios.
Com efeito, a norma em apreço apenas determina que nas circunstâncias em que a
lei permite a avaliação deverá o imposto incidir não sobre o valor declarado mas
antes sobre o valor resultante da avaliação.
Com tal disposição normativa até pretende o legislador tributar de acordo com a
capacidade contributiva e fazer com que o imposto incida sobre o rendimento
real, visando desta forma dar cumprimento aos mencionados princípios
constitucionais.
Daí que não ocorra a violação de tais normas constitucionais.»
2.Ainda insatisfeita, a impugnante trouxe recurso para o Tribunal Constitucional
pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do art.º 19.º,
parágrafo 4.º, do C.I.M.S.I.S.D., porquanto viola os princípios constitucionais
consagrados nos artigos 13.º, 103.º, n.º 2, e 104.º, n.º 2, da Constituição da
República Portuguesa.”
O recurso foi admitido e a impugnante concluiu assim as suas alegações:
«1 – A CRP aponta inequivocamente no sentido da tributação da matéria colectável
real.
2 – A regra prevista no § 4.° do artigo 19.° do CIMSISD viola o princípio da
capacidade contributiva consagrado na CRP.
3 – As Comissões da Avaliação não se podem considerar como uma verdadeira prova
pericial.
4 – O seu funcionamento, onde a Administração Fiscal está maioritariamente
representada, possibilita-lhe determinar, conforme entenda conveniente, o valor
dos imóveis avaliados.
5 – Desse modo, atendendo ao disposto no § 4.° do artigo 19.° do CIMSISD,
permite-se que a Administração Fiscal “crie” verdadeiros impostos, contendendo
com o determinado pelo princípio da legalidade previsto na CRP.
6 – Assim sendo, o § 4.° do artigo 19.° do CIMSISD viola os princípios
constitucionais consagrados nos artigos 13.º e 104.º, n.º 2, da Constituição da
República Portuguesa.
7 – O § 4.° do artigo 19.° do CIMSISD, quando cotejado com o funcionamento das
Comissões de Avaliação de Imóveis, ofende o princípio da legalidade regulado
pelo artigo 103.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
8 – Assim, salvo o devido respeito, estamos perante uma evidente situação de
inconstitucionalidade material.
9 – Deve, pois ser declarada a inconstitucionalidade da norma aqui suscitada,
com as consequências legais daí decorrentes.»
O Director-Geral das Contribuições e Impostos encerrou as suas contra-alegações
deste modo:
«- Conforme matéria de facto dada como provada nas instâncias, o chefe de
repartição de finanças competente determinou que se procedesse a averiguações
relativas ao preço do imóvel e, na posse de informações, solicitou autorização
para a avaliação a que alude o § único do artigo 57.º do CIMSISD, a qual veio a
ser concedida por se terem considerado suficientes os indícios colhidos de que o
preço real não coincidia com o preço declarado.
- Facto assente também que a recorrente, notificada dessa decisão, não reagiu
nem, notificada do resultado da avaliação, requereu uma segunda avaliação.
- Deste modo, a avaliação do bem teve por fundamento determinar qual o valor do
imóvel transaccionado, o qual é a base de incidência do imposto.
- Isto é, a avaliação visou, precisamente, apurar a capacidade contributiva do
respectivo sujeito passivo, capacidade que o contribuinte, por sua vez, não veio
pôr em causa ao não usar do meio legal de reacção ao seu dispor contra o
resultado da avaliação.
- Mostra-se cumprido o imperativo constitucional da tributação da matéria
colectável real, na estrita observância também do princípio da legalidade.
- O § 4.° do artigo 19.° do CIMSISD não ofende os princípios constitucionais da
legalidade e da capacidade contributiva.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
II. Fundamentos
3.Era a seguinte a redacção do § 4.º do artigo 19.º do CIMSISD que está em
causa:
“Se for feita avaliação, o valor resultante prevalece sobre qualquer dos valores
indicados nos §§ 2.º e 3.º, excepto sobre o preço convencionado, quando este for
superior.”
Note-se, marginalmente, que tal § 4.º, ao contrário do § 3.º, não tinha “regras”
(que não a referida), pelo que a menção à “regra 19.ª parágrafo 4.º do artigo
19.º CSISD” a que a recorrente fez referência no texto das suas alegações
dirigidas ao Supremo Tribunal Administrativo e na sua conclusão 3.ª se deve
explicar por lapso (houve uma regra 19.ª no § 3.º do artigo 19.º do CIMSISD, mas
foi revogada pela Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro – artigo 53.º, n.º 2).
Com alguma abstracção e síntese, os argumentos da recorrente para defender a
inconstitucionalidade da norma acima transcrita podem reconduzir-se a três: um
de concepção, outro de técnica e outro de método.
No plano de concepção, diríamos, porque entende a recorrente que, importando
tributar a capacidade contributiva, “o § 4.º do artigo 19.º do CIMSISD ofende,
manifestamente, este princípio constitucional, porquanto impede a recorrente de,
mesmo provando a veracidade dos valores declarados na escritura, ser tributada
pelo valor real do negócio realizado”.
No plano da técnica, porque constituiria, no seu entender, uma relação idêntica
a uma presunção inilidível de rendimento, o que o Tribunal Constitucional já
censurou no Acórdão n.º 348/97 (publicado em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 36.º vol., pp. 911-922).
No plano do método, porque a norma implica o recurso a Comissões de Avaliação em
que “a Administração Fiscal tem sempre a maioria, cabendo-lhe a decisão final
acerca do valor a atribuir ao bem.”
Nenhum dos argumentos é, porém, procedente no sentido da inconstitucionalidade
da norma em questão.
4.Começando pelo último, dir-se-á que tem de ser liminarmente afastado: se a
recorrente tinha algumas dúvidas quanto à conformidade constitucional da
constituição, modo de intervenção ou funcionamento das Comissões de Avaliação,
tinha o ónus de as ter suscitado a propósito das normas que as regem, e não a
propósito da norma que impugnou. Não o tendo feito, as reservas que formula em
relação a elas não têm cabimento para o objecto do recurso que trouxe a este
Tribunal.
5.Não há, também, nenhuma similitude essencial entre a técnica das presunções
inilidíveis de que o legislador fiscal lançou mão, em 1982, para tributar mútuos
e aberturas de crédito efectuadas pelas sociedades a favor dos sócios, e a
prevalência dos valores de avaliação sobre os declarados nas escrituras de
compra e venda de imóveis. Nos mútuos e aberturas de créditos pelas sociedades
aos seus sócios há transferências patrimoniais temporárias, como que “em
circuito fechado”, que podem ter diferentes significados económicos. O que o
Tribunal Constitucional censurou não foi a presunção de uma certa implicação
fiscal, mas sim a impossibilidade de comprovar que essa implicação fiscal não
devia ocorrer.
No caso dos autos, está-se apenas perante uma forma especial da regra geral
formulada no § 2.º do artigo 19.º do CIMSISD:
“o valor dos bens será o preço convencionado pelos contratantes ou o valor
patrimonial, se for maior.”
Quando a recorrente insiste em querer fazer prevalecer o preço declarado sobre a
avaliação esquece que, no sistema de tributação da transferência de propriedade
de imóveis adoptado no Código da Sisa, o preço de venda, mesmo sendo real (não
esteve em causa que não fosse), cedia perante outros índices quando estes fossem
mais elevados, nos termos do referido no § 2.º, de diversas das regras do § 3.º
e do § 4.º do referido artigo 19.º.
Ora, no contexto de um princípio geral de prevalência do valor mais alto, é
evidente que a aproximação da lógica da avaliação por uma Comissão ad hoc a uma
presunção inilidível não tem qualquer fundamento. Em tal lógica, a estar alguma
coisa mal na norma do § 4.º do artigo 19.º do CIMSISD, não seria a previsão de o
valor determinado pelas Comissões de Avaliação prevalecer sobre o preço
convencionado quando este fosse inferior, mas sim a própria regra da prevalência
do maior valor – de que tal § 4.º era apenas um caso especial.
6.O que se disse, em consequência, remete para o primeiro argumento da
recorrente, esse de âmbito mais alargado: em todos os casos em que se dê
prevalência a um valor mais alto, sendo inferior o preço pago – e, mais
especificamente, no caso dos autos –, não se estaria o imposto a desviar da
capacidade contributiva e da tributação pelo valor real?
É evidente, porém, que tal argumento assenta no pressuposto de uma equiparação
do valor real ao que é pago, quando o legislador, para efeitos de tributação de
transmissão de imóveis, preferiu equiparar o valor real ao mais alto dos índices
que o permitissem revelar, fosse ele o preço ou outro qualquer.
Ora, não só não é demonstrável que o preço tenha de reflectir sempre melhor do
que esses outros índices o valor real do bem que é transaccionado, como nem
sequer a tributação (da transmissão) do património está sujeita aos princípios
constitucionais da tributação do rendimento, que (e expressamente só prevista
para o caso das empresas) incide fundamentalmente sobre o rendimento real.
Naturalmente, não é pelo facto de a recorrente ser uma empresa que tal princípio
se estende às suas aquisições de imóveis.
Conclui-se, portanto, que não colhe o argumento que pretende desqualificar como
real a avaliação do imóvel (à margem das dúvidas que possam existir sobre a
forma como tal avaliação é apurada, e que aqui não relevam), nem o que pretende
que desse modo se desrespeitam os princípios constitucionais da tributação do
património, já que o n.º 3 do artigo 104.º da Constituição apenas vincula tal
tributação a “contribuir para a igualdade entre os cidadãos.”
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do § 4.º do artigo 19.º do Código de
Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre Sucessões e Doações;
b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso;
c) Condenar a recorrente em custas, fixando-se em 20 (vinte ) unidades de
conta a taxa de justiça.
Lisboa, 2 de Maio de 2006
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos