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Processo n.º 974/04
1.ª Secção Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. apresentou a seguinte reclamação contra o despacho que, no Supremo Tribunal de Justiça, lhe não admitiu o recurso que pretendia interpor para o Tribunal Constitucional:
“Notificado do douto despacho de 19/10/2004, a fls. 2257, que não admite o recurso para o Tribunal Constitucional, dele vem reclamar nos seguintes termos:
1° Nos autos consta o seguinte: (...)
2º Ao convite para esclarecer qual a peça onde suscitara a inconstitucionalidade, respondeu com o requerimento donde consta atrás transcrito.
3º Após esse requerimento foi proferido douto despacho não admitindo os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional (folhas 2257).
4º Relativamente ao acórdão sobre o mérito da causa de 27/05/2004, admite o reclamante que não suscitou durante o processo a inconstitucionalidade das normas invocadas no requerimento de recurso para o TC.
5º O mesmo não sucede quanto ao recurso que se refere à nulidade: a) isso decorre do requerimento para esclarecer onde foi invocada a inconstitucionalidade e que atrás foi transcrito; b) onde se esclarece que princípios constitucionais foram violados; c) que se dá integrado, incluindo a jurisprudência do Tribunal Europeu aí mencionada. d) Até se transcreveu o requerimento que arguiu a nulidade processual.
6º Antes de proferido o acórdão a indeferir a arguição de nulidades, de 14/07/2004, não podia ser suscitada, de outra forma, a inconstitucionalidade das normas invocadas nesse acórdão, pois o recorrente não pode adivinhar que as normas iriam ser aplicadas e interpretadas. Só aí foram interpretadas e aplicadas.
7º Outra interpretação não está de acordo com a letra ou espírito da lei.
8º Seria muito formalismo, incompatível com o princípio da proporcionalidade, exigir algo de diferente de quem quer que seja.
9º A presente questão de inconstitucionalidade levantada não poderia ter sido suscitada antes da decisão, porque as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada só foram aplicadas no acórdão proferido pelo STJ; até então aquelas normas não haviam sido aplicadas nem interpretadas, em desconformidade com a Constituição. A garantia da protecção jurídica, incluindo nesta a da constitucionalidade das normas, estende-se a todos os momentos do processo. Os cidadãos têm direito à tutela judicial efectiva da conformidade de todas as decisões com as normas constitucionais. Quando o legislador da norma do art.º 70º, n.º 1, al. b), da LTC fez depender o recurso para o TC do pressuposto de que a inconstitucionalidade deverá ser suscitada durante o processo não quis dizer que essa questão deveria ter sido suscitada antes de proferida a sentença; o pressuposto da inconstitucionalidade previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC significa que o recorrente tem que, previamente ao recurso para este Tribunal, suscitar a questão no juiz a quo, seja pela via de eventuais recursos extraordinários seja pela via da arguição da nulidade por violação da Constituição.
10º
“O Tribunal Constitucional tem efectivamente admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica – ou de uma sua interpretação normativa – seja suscitada já depois de proferida a decisão, em hipóteses, excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, designadamente por a aplicação dessa norma pela decisão recorrida ser de todo em todo imprevisível, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse.”
11º
É esta a hipótese factual que o recorrente entende que se encontra retractada nos autos.
Conclusões:
1. O recurso deve ser admitido.
2. O recorrente não podia suscitar a inconstitucionalidade de normas da CRP antes de terem sido aplicadas e interpretadas no acórdão.
3. Outra interpretação não seria aplicável a seres humanos.
4. Por cautela, o recorrente invocou os princípios da Convenção Europeia violados que têm força constitucional: princípio do direito a um processo equitativo, direito de acesso a um tribunal, princípio do contraditório e igualdade de armas.
5. Tudo nos termos do artigo 16º, n.º 1, da CRP: “os Direitos fundamentais consagrados na constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional”.
6. Isto significa que os direitos fundamentais consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem têm o valor daqueles que constam na Constituição da República Portuguesa, ou seja, têm força constitucional;
7. Interpretação diferente viola o artigo 6º da referida Convenção, nomeadamente os princípios nele consagrados e referidos no ponto 4 destas conclusões, bem como o princípio da proporcionalidade aí consagrado. Requerimento: Sendo a questão nova, não sendo uma questão simples, podendo a questão ser apreciada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e sendo o recorrente, nos termos do artigo 35º da Convenção, obrigado a esgotar todos os meios de recurso internos, requer ou sugere que a presente reclamação seja decidida em conferência, de forma a não admitir qualquer recurso ou reclamação, por quem quer que seja.”
O despacho reclamado é, no que interessa, do seguinte teor:
“O recorrente Dr. A. não deu cumprimento ao convite feito no despacho de fls.
2249, ao abrigo do n.º 5 do art. 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido de indicar as peças processuais em que suscitou as questões de inconstitucionalidade. Estranho comportamento para quem se alonga por muitas páginas a escrever considerações, por certo muito doutas a outro propósito, mas que passam ao lado da concreta determinação daquele despacho e daquele normativo. Nestes termos não admito os recursos interpostos para o Tribunal Constitucional.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal emitiu, sobre a reclamação, o seguinte parecer:
“A presente reclamação é manifestamente infundada. Na verdade, o recorrente não aproveitou a oportunidade processual que lhe foi facultada para completar o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, já que o arrazoado apresentado não satisfaz minimamente os requisitos impostos pelo artigo 75º-A da Lei n. 28/82.”
Importa decidir.
O recorrente pretendia, no Supremo Tribunal de Justiça, interpor dois recursos para o Tribunal Constitucional, ambos com invocação da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a impugnar o acórdão de 27 de Maio de 2004 (fls. 2247), e o acórdão de 14 de Julho de 2004 (fls. 2247). Por despacho proferido a fls. 2249 foi convidado, com expressa invocação do disposto no artigo 75º-A n. 5 da LTC, “a completar os requerimentos de interposição de recurso e, bem assim, a precisar a alegação de se tratar de decisão surpresa”, convite que o recorrente quis satisfazer através do requerimento de fls. 2251/2256. Foi então proferido o despacho ora reclamado a não admitir os aludidos recursos.
A primeira observação que ocorre fazer traduz-se na constatação de que o reclamante acata o despacho reclamado quanto ao recurso interposto do acórdão de
27 de Maio de 2004; pode assim concluir-se que nesta parte o despacho se fixou por ausência de impugnação.
Em causa fica, portanto, a parte do despacho que não admitiu o recurso do acórdão de 14 de Julho de 2004. E é quanto a esta matéria que o reclamante invoca essencialmente o seguinte argumento:
“A presente questão de inconstitucionalidade levantada não poderia ter sido suscitada antes da decisão, porque as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada só foram aplicadas no acórdão proferido pelo STJ; até então aquelas normas não haviam sido aplicadas nem interpretadas, em desconformidade com a Constituição. A garantia da protecção jurídica, incluindo nesta a da constitucionalidade das normas, estende-se a todos os momentos do processo. Os cidadãos têm direito à tutela judicial efectiva da conformidade de todas as decisões com as normas constitucionais. Quando o legislador da norma do art.º 70º, n.º 1, al. b), da LTC fez depender o recurso para o TC do pressuposto de que a inconstitucionalidade deverá ser suscitada durante o processo não quis dizer que essa questão deveria ter sido suscitada antes de proferida a sentença; o pressuposto da inconstitucionalidade previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 70º da LTC significa que o recorrente tem que, previamente ao recurso para este Tribunal, suscitar a questão no juiz a quo, seja pela via de eventuais recursos extraordinários seja pela via da arguição da nulidade por violação da Constituição.”
Vejamos.
É certo que o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC tem como pressuposto a efectiva suscitação prévia da questão de constitucionalidade por forma a que o tribunal recorrido haja tido oportunidade de a conhecer, mas é também certo que o Tribunal tem reconhecido a ocorrência de casos excepcionais e anómalos em que é permitido o recurso sem a suscitação prévia da questão, desde que o recorrente, objectivamente, não tenha tido tal possibilidade.
Impõe-se, no entanto, que o recorrente identifique a interpretação normativa que considera inconstitucional, de forma clara e inequívoca, a fim de que o Tribunal possa concluir que no caso não foi dada oportunidade processual ao interessado para suscitar a questão da inconstitucionalidade daquela norma.
É o que se afirma, por exemplo, no Acórdão 213/04 de 30 de Março:
“É, no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada. A já aludida deficiência agrava-se irremediavelmente quando o recorrente não concretiza, como ocorre no caso presente, qual a interpretação da norma acusada de inconstitucional que o tribunal recorrido terá usado. Neste caso, não é fornecido ao Tribunal qualquer elemento do qual possa sequer extrair a conclusão de que uma determinada norma foi aplicada na decisão sob recurso, antes de poder concluir que essa interpretação constitui objectivamente um dado processual inesperado e surpreendente.”
Também no Acórdão nº 178/95 se relaciona a oportunidade da suscitação prévia da questão de constitucionalidade com a definição ou indicação da norma impugnada, nos seguintes termos:
“Tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
No seu recurso visa o recorrente impugnar os artigos 201º n. 1, 679º e 732º-A ns. 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, com o argumento de “a interpretação e aplicação que as instâncias e o STJ delas fizeram” serem ofensivas da Constituição. Verifica-se, assim, que nem no requerimento de interposição do recurso nem no requerimento de aperfeiçoamento o recorrente identifica a exacta dimensão ou interpretação normativa dos preceitos do Código de Processo Civil cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, limitando-se a referir que tais preceitos são inconstitucionais na interpretação que lhes é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça e pela instâncias. Ora, efectivamente, dizer que se pretende ver apreciada a inconstitucionalidade de um preceito na interpretação normativa que lhe é dada por uma decisão judicial não é identificar essa interpretação normativa; ao limitar-se a remeter para a interpretação que aos preceitos é dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente mais não está do que a transferir para o Tribunal Constitucional o
ónus, que sobre ele impende, de identificar o objecto do recurso.
A não indicação das exactas interpretações normativas dos preceitos cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada coloca, portanto, o Tribunal numa situação de verdadeira impossibilidade de verificar se se encontram preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade do recurso que pretendeu interpor, designadamente, saber se o recorrente suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade dessa dimensão normativa e se a decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, a dimensão normativa cuja inconstitucionalidade foi suscitada.
Não pode, em suma, conhecer-se do objecto do recurso interposto pelo recorrente, por falta dos pressupostos legais de admissibilidade.
Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante. Taxa de justiça: 20 UC.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050030.html ]