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Processo nº 637/04
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente a Herança aberta por óbito de A. e
mulher B. e são recorridos C. e D., foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 2004.
2. A recorrente intentou acção declarativa de reivindicação contra os
recorridos, pedindo a entrega de uma fracção autónoma de prédio urbano, com
fundamento na caducidade do contrato de arrendamento para habitação, face à
morte da inquilina. Sustentou que sobre a ré C., filha da arrendatária, recaía a
obrigação de entregar o locado e que o réu D., filho da empregada doméstica da
arrendatária e com esta residente, se mantinha a ocupar o andar em causa
desprovido de qualquer título, por não ter direito à transmissão do
arrendamento.
A acção foi julgada improcedente, por sentença de 9 de Outubro de 2002, que
reconheceu a transmissão do direito ao arrendamento a favor do réu D., por viver
em economia comum com a arrendatária. Inconformada, apelou a autora,
sustentando, nomeadamente, que:
“1 - A al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, interpretada em termos absolutos, não
podia deixar de violar gravemente o direito de propriedade dos senhorios.
2 - Na verdade, o Réu parece pretender que uma qualquer coabitação de uma pessoa
estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite a
transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este.
3 - Isto, daria azo a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária de certa
idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela partilhar as
refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo esta com o
direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, renegando os
direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão intolerável.
4 - Ora a Constituição da República, na al. c) do nº 2 do art. 65º, determina ao
Estado, no campo do à habilitação [direito à habitação] o seguinte:
«2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) .........
b) .........
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o
acesso à habitação própria ou arrendada;»
5 - E por sua vez, o nº 1 do art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode deixar
de ser violada pela al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa
que pretendem retirar da mesma os RR., estendendo o direito a puras coabitações.
6 - Portanto, a referida norma da al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção
que lhe foi dada pelo art. 6º da Lei nº 6/2001 de 11/05, não pode deixar de
violar os comandos do art. 18º, nº 1 do art. 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º
todos da Constituição da República (…).
n) E, pela sentença sub judice julgou-se improcedente a acção e declarou-se o
Réu D. com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de
convivência em economia comum.
o) Nesta decisão, fez-se errada interpretação dos comandos constantes daquela
al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, violando o nº 1 do art. 12º do Cód. Civil,
uma vez que a lei aplicável não podia deixar de ser a vigente à data do
arrendamento, por se estar perante uma relação contratual.
p) Mesmo que assim não se entendesse, uma lei publicada em 11/05/2001, sem que
nele se determine efeitos retroactivos, a qual veio acrescentar a al. f) do nº 1
do art. 85º do RAU, para haver direito à transmissão, exige não só a convivência
em economia comum, mas também que ele tenha existido há mais de dois anos, mas
estes factos não podem ser do passado.
q) Ao julgar-se improcedente a acção e atribuir-se o direito ao Réu D. ao
arrendamento, aplicando-se a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, com efeitos
retroactivos, uma vez que quando a E. faleceu a lei tinha sido publicada à
poucos dias (11/05/2001), pelo que se fez errada interpretação dos comandos do
nº 2 do art. 12º do Cód. Civil.
r) Finalmente, mesmo que assim não seja, os comandos constantes daquela al. f)
do nº 1 do art. 85º do RAU, pela redacção dada pelo artigo 6º da lei nº 6/2001,
de 11/05, que permite que um contrato de arrendamento se possa transmitir até ao
infinito, não deixa de ser inconstitucional.
s) Assim, o art. 6º da Lei nº 6/2001 a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, não
podem deixar de ofender o direito de propriedade e, além do mais, os artigos 18º
e 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da Constituição da república”.
3. O Tribunal da Relação de Coimbra decidiu julgar a apelação improcedente e
confirmar a sentença apelada. Interposto recurso de revista, alegou a
recorrente, para o que agora releva, o seguinte:
“III - A constitucionalidade da norma constante da al. f) do n.º1 do art. 85º do
RAU
Esta al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, interpretada em termos absolutos, não
podia deixar de violar gravemente o direito de propriedade dos senhorios,
previsto, além do mais, nos arts. 18º e 62º da Const. da Rep. e art. 17º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da Protecção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art. 8º e 16º
da Const. da Rep.
Na verdade, o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma
pessoa estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite
a transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou
seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário.
O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária
de certa idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela
partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo
esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida,
renegando os direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão
intolerável.
Pois não se pode esquecer que Constituição da República, na al. c) do nº 2 do
art. 65º, determina ao Estado, no campo do à habilitação [direito à habitação] o
seguinte:
«2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a) .........
b) .........
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o
acesso à habitação própria ou arrendada;»
E por sua vez, o nº 1 daquele art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode deixar
de ser violada pela al. f) do nº 1do art. 85º do RAU, na interpretação externa
que pretendem retirar da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras
coabitações.
Logo, a referida norma da al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção que lhe
foi dada pelo art. 6º da Lei nº 6/2001 de 11/05, não pode deixar de violar os
comandos do art. 18º, nº 1 do art. 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da
Constituição da República, assim como as normas referidas no primeiro parágrafo
(…).
l) E, pela sentença da 1ª Instancia julgou-se improcedente a acção e declarou-se
o Réu D. com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de uma
verdadeira convivência em economia comum, e pelo Acórdão sub judice confirmou-se
a mesma.
m) Em tais decisões, fez-se errada interpretação dos comandos constantes daquela
al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, violando o nº 1 do art. 12º do (Cód. Civil,
uma vez que a lei aplicável não podia deixar de ser a vigente à data do
arrendamento, por se estar perante uma relação jurídica contratual ou locatícia.
n) Mesmo que assim não se entendesse, uma lei publicada em 11/05/2001, sem que
nele se determine efeitos retroactivos, a qual veio acrescentar a al. f) do nº 1
do art. 85º do RAU, para haver direito à transmissão, exige não só uma
verdadeira convivência em economia comum, mas também que ele tenha existido há
mais de dois anos.
o) Os factos que ofereçam respaldo a esta previsão, não podem ser do passado,
ou seja os mesmos tinham de se consubstanciar na vigência da Lei nº 6/2001 de
11/05, sob pena de retroactividade desta norma.
p) Ao julgar-se improcedente a acção e confirmou-se a mesma pelo Acórdão sub
judice atribuindo-se o direito ao Recorrido D. ao arrendamento, por aplicação da
al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, declaram-se efeitos retroactivos a esta, uma
vez que quando a E. faleceu a lei tinha sido publicada à poucos dias
(11/05/2001), pelo que se fez incorrecta interpretação dos comandos do nº 2 do
art. 12º do Cód. Civil conjugados com aquela al. f).
q) Finalmente, mesmo que assim não seja, os comandos constantes daquela al. f)
do nº 1 do art. 85º do RAU, pela redacção dada pelo artigo 6º da Lei nº 6/2001,
de 11/05, que permite que um contrato de arrendamento se possa transmitir até ao
infinito, não deixa de ser inconstitucional.
r) Assim, o art. 6º da Lei nº 6/2001 a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, (não
podem deixar de ofender o direito de propriedade e, além do mais, os artigos 18º
e 62º e a al. c) do nº 2 do art, 65º todos da Constituição da República e art.
17º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da
Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art.
8º e 16º da Const. da Rep., pelo que deve ser julgada inconstitucional.
4. Em 22 de Abril de 2004, foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça o
acórdão que constitui a decisão recorrida nos presentes autos, o qual confirmou
as decisões das outras instâncias. Para além de se pronunciar no sentido da não
inconstitucionalidade da norma da alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU, o
acórdão recorrido argumentou, para o que agora releva, pela forma seguinte:
«Em correspondência parcial com o que se dispunha no art. 1109° do C.Civil, veio
o art. 76°, n° 1, al. a), do RAU estabelecer que podem residir no arrendado
todos os que vivam com o arrendatário em economia comum.
Por sua vez, o art. 90°, n° 1, al. a), do mesmo diploma, conferia às pessoas
naquela situação, quando convivessem com o arrendatário há mais de cinco anos, o
direito a novo arrendamento, no caso de caducidade do contrato por morte deste,
salvo se habitassem o local arrendado por força de negócio jurídico não
directamente respeitante à habitação.
Todavia, revogando parcial e tacitamente o disposto naquele art. 90°, n° 1, al.
a), veio o art. 85°, n° 1, al. f) (alínea aditada pela Lei n° 6/2001, de 11 de
Maio) conferir às pessoas que vivessem em economia comum com o arrendatário há
mais de dois anos, o direito à transmissão do arrendamento, que, nessa medida,
não caducaria por falecimento do inquilino (…).
Ora, as normas citadas apropriaram-se do conceito de economia comum que vinha do
antecedente, se bem que estabelecendo uma presunção juris et de jure de vivência
em economia comum com o arrendatário a favor dos seus parentes ou afins na linha
recta ou até ao 3° grau da linha colateral, ainda que pagassem alguma
retribuição, e bem assim a favor das pessoas relativamente às quais, por força
de lei ou negócio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja
obrigação de convivência ou de alimentos (Cfr. arts. 1109°, n° 2, do C.Civil e
76°, n° 2, do RAU).
Sem embargo de se haver consignado no art. 2° (daquela Lei n° 6/2201) que se
entende por “economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa
e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de
entreajuda ou partilha de recursos” (n° 1) e que “o disposto na presente lei é
aplicável a agregados constituídos por duas ou mais pessoas, desde que pelo
menos uma delas seja maior de idade” (nº 2).
Por isso, e no que respeita às restantes pessoas (que não gozam da presunção de
convivência em economia comum) só terão as mesmas direito à transmissão do
arrendamento, que não caducará por morte do arrendatário, se alegarem e provarem
que com o arrendatário viviam, há mais de dois anos, em situação de economia
comum (art. 6° da Lei n° 6/2001, de 11 de Maio, que introduziu no texto do n° 1
do art. 85° do RAU, a alínea f), abrangendo, com a intenção de proteger as
pessoas que vivem em economia comum – art. 1º, n° 1 - tal situação).
Já há muito se vem entendendo que “viver em economia comum será conviver com
interdependência de cómodos, de meios e interesses o que não exige seja um só a
suportar as despesas, pois todos podem contribuir para estas numa união de
interesses” (…).
Conviver “é, efectivamente, viver em intimidade com alguém, sob o mesmo tecto”
(…), embora o conceito de economia comum se não esgote nem deva ter-se como
demonstrado com esta simples definição (…).
Na verdade, “comungar da mesma economia comum implica uma ligação mais profunda
entre as pessoas”, traduzindo um estado de facto que supõe a existência de um
animus ou espírito de ligação à coisa e às pessoas affectio, e que determina, em
última análise, o desejo de ligação ou de abandono definitivo da casa onde se
habita (…).
A economia comum pressupõe, assim, “uma comunhão de vida, com base num lar em
sentido familiar e moral, uma vivência em conjunto com uma especial affectio ou
ligação entre as pessoas… com sujeição a uma economia doméstica, contribuindo
todos, ou só alguns para os gastos comuns” (…).
Dado o exposto, e atentos os factos provados, não pode deixar de concluir-se que
o réu D. vivia em economia comum com a falecida arrendatária (e isso apesar de
ser filho da empregada doméstica, se bem que num estado cultural e
civilizacional em que as “criadas” se integravam na família alargada dos
patrões): nasceu quando a E. era septuagenária e viúva, estando os seus filhos
casados e ausentes de casa, tendo esta aceitado ser madrinha dele e chamando a
si a tarefa de lhe ensinar as primeiras regras de comportamento; reside no
locado, com a falecida arrendatária, ininterruptamente, desde o seu nascimento,
há mais de 19 anos (juntamente com a sua mãe, empregada doméstica da falecida
E.) com ela partilhando o espaço habitacional daquela fracção, desfrutando do
seu enlevo e carinho, que se lhe afeiçoou como se de um neto consanguíneo se
tratasse; iniciado o ensino básico, era a sua madrinha, professora primária, que
o acompanhava nos trabalhos escolares, esclarecendo dúvidas e estabelecendo
horários e metas de estudo; era a E. que lhe pagava os livros e demais material
escolar de que carecia, encargo que assumiu durante toda a vida académica do réu
D. e até à sua morte; presenteava o afilhado nas épocas festivas de Natal,
Páscoa e nos aniversários; estavam ligados por um forte vínculo afectivo, que
levou o réu D., desde menino, a tratá-la como avó; terminada a escola, fazia
companhia à madrinha, acarinhando-a, animando-a, mormente nos momentos de
tristeza e abatimento de pessoa idosa; chegado à adolescência era o réu D. que,
a pedido da E., se ocupava da contabilidade doméstica e era ele que efectuava os
pagamentos com o dinheiro que a madrinha lhe dava; era frequente acompanhar a E.
em curtos passeios a pé pelas redondezas, sobretudo aos fins-de-semana; nos
períodos de doença da madrinha era o D. que passava horas à sua cabeceira, mesmo
durante a noite, dava-lhe os remédios, mimava-a e incutia-lhe ânimo; nos últimos
anos de vida, a nonagenária movimentava-se com dificuldade e já não saía de
casa, sendo o D. que levava a madrinha a fazer leves exercícios físicos para
impedir a paralisação dos membros; o réu (sua mãe) e a E. tomavam as refeições
em conjunto, à mesma mesa, desenvolvendo-se entre ambos uma relação de avó e
neto, cimentada pela vivência em comum e pela partilha de interesses, alegrias e
tristezas.
Parece, pois, indubitável, que entre a E. e o réu foi estabelecida (e manteve-se
durante 19 anos) uma relação de convivência quase familiar, uma espécie de
adopção de facto, que, sem qualquer dúvida, se integra no conceito de economia
comum, susceptível, agora, de justificar a transmissão, para o réu, do
arrendamento».
5. Foi então interposto recurso para este Tribunal, mediante requerimento do
qual se extrai o seguinte:
«(…) que[r] na al. D) das suas alegações de recurso de Apelação, dirigidas ao
Superior Tribunal da Relação de Coimbra, quer no item III, da al. b) sobre as
questões jurídicas da rubrica C) das alegações apresentadas neste Superior
Tribunal, dirigidas ao Supremo, a recorrente arguiu a inconstitucionalidade da
norma constante da al. f) do n° 1 do art. 85° do RAU, por ofender, além do mais
os artigos 18°, 62° e 65° todos da Constituição da República.
E no Acórdão subjudice foi esta questão analisada, tendo merecido a negação do
provimento, o qual não podem aceitar.
Face ao exposto, requer a V.Exa. que seja admitido o competente recurso para o
Tribunal Constitucional, seguindo-se os consabidos termos».
6. Notificada para alegar, a recorrente sustentou e concluiu, nomeadamente, que:
« (…) como já se demonstrou em anteriores alegações, não existia nenhuma norma
que permitisse aquela transmissão, naquelas condições, ou seja aplicar a quem
“vivesse em economia comum há mais de dois anos”. Pois aquela norma da al. e)
foi criada e publicada antes de perfazer um mês após o falecimento da
arrendatária, e por isso, não deixa de se estar a aplicar retroactivamente, sem
que a lei, sequer o determine, uma vez que levou em conta o espaço de tempo
decorrido sem que a norma estivesse em vigor.
Ora a aplicação da al. e) do nº 1 do artigo 85ºdo RAU, criada pela Lei nº
6/2001, não pode deixar de ser, não só ilegal, como também inconstitucional,
como aliás o declara o Dr. Pinto Furtado, quando sobre esta questão, diz:
«Convém, quanto à facti species da al. e) do art. 85-1 RAU, enfrentar o problema
da sua aplicação no tempo. Constituindo um alargamento do espaço vinculístico,
não deve aplicar-se, se bem nos parece, aos contratos existentes à data da sua
inovação legislativa, operada, aliás, quando não subsistiam já condições
excepcionais que requeressem a imposição assintáctica de um vínculo conjuntural
de interesse público. A nova providência legal estabeleceu-se, com efeito,
estritamente para atender a uma exigência de justiça distributiva no confronto
entre união legal e união de facto – devendo, por conseguinte, reger unicamente
para o futuro. Não se contempla aqui o conteúdo de uma relação,
independentemente do facto que lhe seu origem (2ª parte do nº 2 do art. 12 CC),
mas o efeito de um facto que é previsto de novo (1ª parte do mesmo número);
logo, não deve ter tal previsão eficácia retroactiva.
Acresce que a interpretação da lei no sentido da sua aplicação imediata aos
contratos existentes, além de liminarmente violar o princípio da lei do
contrato, seria ainda materialmente inconstitucional, à luz das ideias que a seu
tempo tivemos ensejo de enunciar acerca do vinculismo arrendatício …»
(Manual do Arrendamento Urbano, 3ª Edição, pág. 503)
Pois esta al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, interpretada em termos absolutos,
não podia deixar de violar gravemente o direito de propriedade dos senhorios,
previsto, além do mais, nos arts. 18º e 62º da Const. da Rep. e art. 17º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da Protecção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art. 8º e 16º
da Const. da Rep.
Na verdade, o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma
pessoa estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite
a transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou
seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário e até acontecido antes da
norma entrar em vigor.
O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária
de certa idade pudesse aliciar um jovem a com ela conviver ou até com ela
partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo
esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida,
renegando os direitos dos senhorios à propriedade, com uma compressão
intolerável.
Pois não se pode esquecer que Constituição da República, na al. c) do nº 2 do
art. 65º, determina ao Estado, no campo do à habilitação [direito à habitação] o
seguinte:
«2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a).........
b).........
c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o
acesso à habitação própria ou arrendada;»
Pelo que a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa que se
retirou da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras coabitações, não pode
deixar de violar o nº 1 do art. 62º daquela Lei Fundamental.
Logo, a referida norma da al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na redacção que lhe
foi dada pelo art. 6º da Lei nº 6/2001 de 11/05, não pode deixar de violar os
comandos do art. 18º, nº 1 do art. 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da
Constituição da República, assim como as normas referidas no primeiro parágrafo
(…).
E - CONCLUSÕES
a) Em tais decisões, fez-se errada interpretação dos comandos constantes daquela
al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, violando o nº 1 do art. 12º do Cód. Civil,
uma vez que a lei aplicável não podia deixar de ser a vigente à data do
arrendamento, por se estar perante uma relação jurídica contratual ou locatícia.
b) Mesmo que assim não se entendesse, uma lei publicada em 11/05/2001, sem que
nele se determine efeitos retroactivos, a qual veio acrescentar a al. f) do nº 1
do art. 85º do Rau, para haver direito à transmissão, exige não só uma
verdadeira convivência em economia comum, mas também que ele tenha existido há
mais de dois anos.
c) Os factos que ofereçam respaldo a esta previsão, não podem ser do passado, ou
seja os mesmos tinham de se consubstanciar na vigência da Lei nº 6/2001 de
11/05, sob pena de retroactividade desta norma.
d) Ao julgar-se improcedente a acção e confirmou-se a mesma pelo Acórdão sub
judice atribuindo-se o direito ao Recorrido D. ao arrendamento, por aplicação da
al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, declaram-se efeitos retroactivos a esta, uma
vez que quando a E. faleceu a lei tinha sido publicada à poucos dias
(11/05/2001), pelo que se fez incorrecta interpretação dos comandos do nº 2 do
art. 12º do Cód. Civil conjugados com aquela al. f), a qual nem sequer deve ser
considerado vigente.
e) Finalmente, mesmo que assim não seja, os comandos constantes daquela al. f)
do nº 1 do art. 85º do RAU, pela redacção dada pelo artigo 6º da Lei nº 6/2001,
de 11/05, que permite que um contrato de arrendamento se possa transmitir até ao
infinito, não deixa de ser inconstitucional.
f) Assim, o art. 6º da Lei nº 6/2001 a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, não
podem deixar de ofender o direito de propriedade e, além do mais, os artigos 18º
e 62º e a al. c) do nº 2 do art. 65º todos da Constituição da República e art.
17º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; art. 17º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e 1º do Protocolo, nº 1 Adicional à Convenção da
Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, por força do art.
8º e 16º da Const. da Rep., pelo que deve ser julgada inconstitucional».
7. Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida,
no que concerne ao juízo de não inconstitucionalidade aí formulado.
8. Em cumprimento do disposto no artigo 704º, nº 1, do Código de Processo Civil,
aplicável por força do artigo 69º da LTC, a recorrente e os recorridos foram
notificados da possibilidade de ser proferida decisão de não conhecimento do
objecto do recurso, por falta de um dos requisitos do recurso de
constitucionalidade previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 70º da LTC: a
aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja
constitucionalidade foi questionada pela recorrente.
A recorrente respondeu, nos seguintes termos:
“a) Se bem entendemos o Despacho acima referido, este Tribunal, como é habitual,
uma vez mais, quer deixar de julgar a questão de fundo.
b) Aliás o patrono da Herança já está habituado a tal comportamento deste
Superior Tribunal, que devia ser chamado um Conselho Constitucional e não um
Tribunal, face a tal comportamento.
c) Na verdade, como se pode ver pelo Despacho, o tribunal sabe qual é a
pretensão da Recorrente Herança, pois é nítido e expresso o que se desejava
saber, uma vez que esta tem direito a ser vencida, mas também convencida de que
a al. f) do art. 85° do RAU, introduzida pela Lei n° 6/2001 de 11/05 a este
artigo é ou não constitucional, ou seja se não viole o art. 62° da Const.
República.
d) Na verdade, nos autos sub judice verifica-se que a arrendatária faleceu em
05/06/2001, e com data de 11/05/2001 foi publicada a Lei n° 6/2001, a qual veio
introduzir a referida al. f) do art. 85° da RAU, que proclamou:
«f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.»
e) Ora, se tem de existir uma convivência em economia comum há mais de dois
anos, e a arrendatária faleceu em 05/06/2001 e a lei foi publicada em
11/05/2001, não deixa de se estar a aplicar retroactivamente uma Lei, não só
quanto à matéria do contrato de arrendamento, mas também levar à consideração um
espaço de tempo em que a lei não era vigente, violando-se, além do mais, o art.
62° da Constituição da República, pois aqueles dois anos só podiam ser contados
após a data de falecimento da arrendatária (11/05/2001).
f) A questão colocada é liminarmente explícita e compreensível e a Herança tinha
direito a saber se tal interpretação violava ou não os próprios comandos
apontados, ou os princípios constitucionais.
g) Aliás, o direito de propriedade encontra-se inserido no TÍTULO III que tem
por epígrafe “Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais”, e os Profs.
Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art. 62° da Constituição, referem:
«1°) O direito de propriedade é deslocado do elenco dos direitos, liberdades e
garantias para os direitos económicos, sociais e culturais – O que, sem bulir
com a sua estrutura essencial, tem assinaláveis repercussões sistemáticas.»
(Constituição Portuguesa Anotada - Tomo I, pág. 626)
Para depois concluírem:
«Há uma garantia institucional da propriedade no sentido de que seria
inconstitucional a lei ordinária reduzir os direitos das pessoas sobre as coisas
ao usufruto ou a outros direitos reais menores; a lei civil tem de conter um
direito de propriedade com o feixe de poderes de uso, fruição e disposição que
lhe são inerentes na tradição jurídica e cultural do nosso país (artigo 2167° do
Código Civil de 1867 e artigo 1305° do Código de 1966).»
(Ibidem, pág. 627)
h) Isto não deixaria de ser suficiente para que se julgasse a questão, mas nesta
república “terceiro-mundista”, que alguns já apelidam das “bananas”, cultiva-se
o sindroma de matar processos, sem se julgar o fundo das questões.
i) Aliás as reformas processuais têm apontado no sentido inverso, ou seja de que
é necessário acabar com as chamadas “incompetências”, para através destas não se
conhecerem o fundo das pretensões, mas ninguém leva esta ideia a preceito,
veja-se o que está a acontecer na Nova Ordem jurídica do processo
administrativo.
j) E este Superior Tribunal é um exemplo acabado desta ideia, como se pode
verificar pelo que aconteceu nos Processos n° 466/05, 2ª Secção e Processo n°
754/05 da 3ª Secção, etc. , etc.
i) Pelo que há que aceitar esta realidade, que nada tem a ver com a “justiça”
que se deve processar, pois o art. 204° da Constituição da República proclama:
«Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.»
m) Aliás desde há muito o Prof. Vital Moreira defende o que pedimos para
transcrever:
«... segundo o artigo 51°, n° 5, da Lei n° 28/82, o Tribunal Constitucional pode
declarar a inconstitucionalidade com fundamento “em normas ou princípios
constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada” estando portanto
obrigado a apreciar todos os fundamentos que eventualmente sejam invocados na
discussão no próprio Tribunal).»
Portanto estão criadas todas as condições para este tribunal julgar a questão de
fundo, mas contra factos não existem argumentos e não deixamos de estar perante
mais um não conhecimento do fundo da questão”.
Tendo havido mudança de relator, em consequência de alteração da composição do
Tribunal, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Atendendo ao conteúdo do requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, a recorrente pretende a apreciação da norma constante
da alínea f) do nº 1 do artigo 85º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), por
ofender, além do mais os artigos 18º, 62º e 65º da Constituição da República.
É o seguinte o teor deste artigo, na redacção introduzida pela Lei nº 6/2001, de
11 de Maio (que adopta medidas de protecção das pessoas que vivam em economia
comum):
“Artigo 85º
Transmissão por morte
1. O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário
ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto;
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de
um ano;
c) Pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o
arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens;
d) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano;
e) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e c);
f) Pessoas que com ele vivessem em economia comum há mais de dois anos.
2. (…).
3. (…).
4. A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do
cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o
direito ao arrendamento” (itálico aditado).
2. Das peças processuais indicadas no requerimento de interposição de recurso,
em cumprimento do disposto no artigo 75º-A, nº 2, da LTC, resulta que a
recorrente questionou a constitucionalidade da alínea f) do nº 1 do artigo 85º
do RAU, quando interpretada no sentido de o arrendamento para habitação não
caducar por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida
a sua posição contratual, se lhe sobreviver pessoa que com ele coabitasse há
mais de dois anos.
Nas alegações do recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, pode
ler-se que:
“(…) o Réu parece pretender que uma qualquer coabitação de uma pessoa estranha
ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite a transmissão,
em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este;
(…) Isto, daria azo a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária de certa
idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela partilhar as
refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo esta com o
direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida, renegando os
direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão intolerável;
(…) por sua vez, o nº 1 do art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode deixar de
ser violada pela al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa que
pretendem retirar da mesma os RR., estendendo o direito a puras coabitações; E,
pela sentença sub judice julgou-se improcedente a acção e declarou-se o Réu
D.com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de
convivência em economia comum” (itálico aditado).
Nas alegações do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, alega a
recorrente, de novo, que:
“(…) o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma pessoa
estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite a
transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou
seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário.
O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária
de certa idade pudesse aliciar uma jovem a com ela conviver ou até com ela
partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo
esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida,
renegando os direitos dos senhorios proprietários, com uma compressão
intolerável;
(…) por sua vez, o nº 1 daquele art. 62º da mesma Lei Fundamental não pode
deixar de ser violada pela al. f) do nº 1do art. 85º do RAU, na interpretação
externa que pretendem retirar da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras
coabitações (…).
E, pela sentença da 1ª Instancia julgou-se improcedente a acção e declarou-se o
Réu D. com direito à transmissão, sem que se tenha provado a existência de uma
verdadeira convivência em economia comum, e pelo Acórdão sub judice confirmou-se
a mesma”.
Abonam, ainda, no sentido de que a recorrente pretendeu questionar a
constitucionalidade da alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU, quando
interpretada no sentido apontado, as alegações produzidas neste Tribunal:
“Na verdade, o Recorrido parece pretender que uma qualquer coabitação de uma
pessoa estranha ao arrendatário com o mesmo, pelo período de dois anos, permite
a transmissão, em caso de morte daquele, do contrato de arrendamento a este, ou
seja sem qualquer manifestação pessoal do proprietário e até acontecido antes da
norma entrar em vigor.
O que não deixava de levar a que, por exemplo, uma qualquer anciã arrendatária
de certa idade pudesse aliciar um jovem a com ela conviver ou até com ela
partilhar as refeições a troco da sua companhia, durante dois anos, ficando logo
esta com o direito a vir a ser legal arrendatária pelo resto da sua vida,
renegando os direitos dos senhorios à propriedade, com uma compressão
intolerável (…).
Pelo que a al. f) do nº 1 do art. 85º do RAU, na interpretação externa que se
retirou da mesma o Recorrido, estendendo o direito a puras coabitações, não pode
deixar de violar o nº 1 do art. 62º daquela Lei Fundamental” (itálico aditado).
Ora, a decisão recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de
Abril de 2004 – interpretou a alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU no sentido
de o arrendamento para habitação não caducar por morte do primitivo arrendatário
ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver
pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de dois anos, aplicando-a
ao caso dos autos depois de dar como provada a situação de economia comum. É
demonstrativo desta mesma interpretação, o cuidado posto na definição do
conceito de “economia comum” e a consequente não sobreposição deste ao de
“coabitação” (cf. supra ponto 4. do Relatório).
Com efeito, resulta do teor da decisão recorrida que, para os efeitos previstos
na Lei nº 6/2001, “entende-se que vivem em economia comum as pessoas ‘que vivam
em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma
vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos’ (art. 2º, nº 1). Pode
tratar-se de familiares ou de estranhos, de pessoas de sexo diferente ou do
mesmo sexo, de duas ou de mais de duas pessoas, desde que pelo menos uma delas
seja maior (…). Por falta de uma ‘vivência em comum de entreajuda ou partilha de
recursos’ não há ‘vida em economia comum’ nas situações previstas,
designadamente, nas als. a) e b) do art. 3º Note-se que a ‘entreajuda’ e a
‘partilha de recursos’ estão postas em alternativa na definição da lei. Não se
exige pois que as pessoas ponham em comum os seus rendimentos e recursos; é
suficiente uma vivência em comum de ‘entreajuda’, em que as pessoas vivem em
comunhão de mesa e habitação contribuindo para os respectivos encargos” (Pereira
Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 2001, p. 117;
itálico aditado).
3. Assim sendo, na medida em que a decisão recorrida não interpretou e aplicou a
alínea f) do nº 1 do artigo 85º do RAU no sentido de o arrendamento para
habitação não caducar por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem
tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver pessoa que com ele
coabitasse há mais de dois anos, não se verifica um dos requisitos do recurso de
constitucionalidade que a recorrente pretendeu interpor, o que obsta ao
conhecimento do objecto do mesmo.
Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, um dos
requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do
artigo 70º da LTC é “a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi,
da norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente”. E bem se
compreende que assim seja, pois a “exigência, de que a norma aplicada constitua
o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão
da questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no processo.
Sendo a referência à norma questionada mero obter dictum, ou existindo na
decisão recorrida outro fundamento, por si só, bastante para essa decisão, a
intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade
constitucional da norma impugnada não se reflectirá utilmente no processo, uma
vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada
seja declarada inconstitucional” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº
497/99, não publicado, e, no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos nºs
367/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, 496/99, não
publicado, 674/99, Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000,
155/2000, Diário da República, II Série, de 9 de Outubro de 2000, e 418/01, não
publicado).
4. Destaque-se, ainda, que a recorrente não contraria o conteúdo do despacho
pelo qual foi notificada da possibilidade de ser proferida decisão de não
conhecimento do objecto do recurso, incidindo a resposta sobre matéria de
aplicação da lei no tempo. Nesta peça processual, a recorrente retomou o
problema da declaração de efeitos retroactivos à alínea f) do nº 1 do artigo 85º
do RAU a que as instâncias procederam ao julgar improcedente a acção, por si já
abordado, do ponto de vista jurídico-constitucional, nas alegações produzidas
neste Tribunal. Sucede, porém, que tal questão não integra o objecto do presente
recurso (artigos 70º, nº 1, alínea b), 71º, nº 1, e 72º, nº 2, da LTC), uma vez
que não foi enunciada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional (peça processual que fixa o objecto deste, impedindo que o
recurso de constitucionalidade seja posteriormente ampliado), nem de forma
directa nem por remissão para as alegações do recurso de apelação ou para as
alegações do recurso de revista.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se em 15 (quinze ) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2006
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício