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Processo n.º 392/05
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1. O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal, como
representante do Ministério Público, veio requerer, em 11 de Maio de 2005, nos
termos dos artigos 281º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 82º da
Lei do Tribunal Constitucional, a declaração da inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma constante dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento
da Contribuição Especial, anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na
interpretação segundo a qual sendo a licença de construção requerida antes da
entrada em vigor deste diploma seria devida a contribuição especial por este
instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre
1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento.
Mais refere que tal dimensão normativa foi julgada inconstitucional, por
violação do princípio da não retroactividade dos impostos, consagrado no artigo
103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, através dos Acórdãos n.ºs
81/05, de 16 de Fevereiro, da 1ª Secção, e 137/05 e 138/05, da 2ª Secção deste
Tribunal Constitucional, proferidos em 15 de Março.
2. As normas que constituem objecto do pedido dispõem como segue:
“Artigo 1º
[...]
2 – A contribuição especial incide ainda sobre o aumento de valor dos terrenos
para construção e das áreas resultantes da demolição de prédios urbanos já
existentes situados nas áreas referidas no número anterior.
[...].
Artigo 2º
1 – Constitui valor sujeito a contribuição a diferença entre o valor do prédio à
data em que for requerido o licenciamento de construção ou de obra e o seu valor
à data de 1 de Janeiro de 1994, corrigido por aplicação dos coeficientes de
desvalorização da moeda constantes da portaria a que se refere o artigo 43º do
Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, correspondendo,
para o efeito, à data de aquisição a data de 1 de Janeiro de 1994 e à de
realização a data da emissão do alvará de licença de construção ou de obra.
2 – Os valores que servem para determinar a diferença são determinados por
avaliação nos termos do presente Regulamento”.
O pedido formulado fundamenta-se na circunstância de a norma referida ter
sido julgada inconstitucional, pelo Tribunal, em três casos concretos –
respectivamente, pelo Acórdão n.º 81/05, de 16 de Fevereiro, da 1ª Secção, e
pelos Acórdãos n.ºs 137/05 e 138/05, ambos de 15 de Março, da 2ª Secção –, por
violação do princípio da não retroactividade dos impostos, consagrado no artigo
103º, n.º 3, da Constituição.
3. Admitido o pedido, foi notificado o Primeiro-Ministro para,
querendo, se pronunciar, no prazo de 30 dias, o que veio a fazer em 17 de Junho,
oferecendo o merecimento dos autos.
4. Discutido em Plenário o memorando apresentado pelo Presidente do
Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63º, n.º 1, da LTC, e fixada a
orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se
estabeleceu.
II
5. É inquestionável que se verificam os pressupostos do pedido,
previstos nos artigos 281º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 82º
da Lei do Tribunal Constitucional, pois é certo que naqueles três acórdãos se
julgaram “inconstitucionais, por violação do princípio da não retroactividade
dos impostos, consagrado no artigo 103º, n.º 3, da Constituição, as normas dos
artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98,
de 3 de Março, na interpretação segundo a qual sendo a licença de construção
requerida antes da entrada em vigor deste diploma seria devida a contribuição
especial por este instituída, que, assim, incidiria sobre a valorização do
terreno ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento”.
6. A fundamentação essencial para o aludido juízo de
inconstitucionalidade consta do Acórdão n.º 81/05, para a qual, mantendo-a,
remetem os Acórdãos n.ºs 137/05 e 138/05, e que é a seguinte:
“[…]
Como antes se assinalou, as normas dos preceitos transcritos serão analisadas
numa específica interpretação, que é aquela que constitui o objecto do presente
recurso: a de que a contribuição especial é devida nos casos em que a licença de
construção tenha sido requerida antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º
43/98, de 3 de Março, incidindo, como tal, sobre a valorização do terreno (no
qual se pretende construir) ocorrida entre 1 de Janeiro de 1994 e a data daquele
requerimento.
Não pode obviamente o Tribunal Constitucional controlar tal interpretação, sob o
prisma da sua obediência às regras da interpretação da lei: nomeadamente, não
pode o Tribunal Constitucional aferir se os citados preceitos legais deviam ter
sido interpretados pelo tribunal recorrido do modo por que o foram, isto é, como
sendo aplicáveis aos casos em que a licença de construção tenha sido requerida
antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março. Ao Tribunal
Constitucional compete apenas apreciar se a interpretação perfilhada (bem ou
mal) pelo tribunal recorrido contraria a Constituição, particularmente o
princípio da não retroactividade dos impostos.
9. A contribuição especial instituída pelas normas transcritas (na sua
modalidade de contribuição de melhoria), embora seja conceitualmente
diferenciada do imposto, está sujeita ao regime constitucional desta figura
(cfr. José Casalta Nabais, «Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria
fiscal», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 69,
1993, p. 387-434, p. 398).
E, de acordo com o n.º 3 do artigo 103º da Constituição, «ninguém pode ser
obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da
Constituição, que tenham natureza retroactiva ou cuja liquidação e cobrança se
não façam nos termos da lei» (itálico acrescentado).
O princípio da não retroactividade dos impostos – consagrado nesta disposição
com a quarta revisão da Constituição portuguesa, operada pela Lei Constitucional
n.º 1/97, de 20 de Setembro –, «é, em geral, reconduzido ao princípio da
protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, ou
mesmo ao princípio da capacidade contributiva» (cfr. José Casalta Nabais,
«Jurisprudência...», ob. cit., p. 404, nota 57). Assim, antes da quarta revisão
da Constituição, era já possível sustentar que «é [...] no princípio da
confiança jurídica, enquanto dimensão inarredável da ideia de Estado-de-direito
democrático, e não simplesmente no princípio da legalidade, que se encontrará
[...] um limite constitucional à admissibilidade de normas fiscais retroactivas»
(cfr. J. M. Cardoso da Costa, «O enquadramento constitucional do Direito dos
Impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional», in
Perspectivas Constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol. II,
Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 397-428, p. 417).
Não obstante a norma do n.º 3 do artigo 103º da Constituição não resolver todos
os problemas que, quanto à definição da lei fiscal retroactiva, se podem colocar
(neste sentido, J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, Lex,
1998, p. 63), parece certo que nenhuma questão de retroactividade se coloca (e,
portanto, nenhuma violação da pertinente proibição constitucional se verifica)
quando o facto tributário seja instantâneo e tenha ocorrido na vigência da lei
nova ou quando, sendo de formação sucessiva, tenha inteiramente ocorrido na
vigência da lei nova.
10. Ora, a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido não considerou
qualquer facto tributário de formação sucessiva.
Aliás, como salienta o Ministério Público nas suas alegações (fls. 144), as
normas em apreço no presente recurso não pressupõem «um facto tributário de
formação sucessiva, como sucederia se a lei mandasse contemplar autonomamente o
acréscimo de valor ocorrido em cada ano ou período fiscal».
O facto tributário pressuposto pela interpretação normativa acolhida pelo
tribunal recorrido é, assim, um facto instantâneo.
Como, a propósito, salienta Jorge Bacelar Gouveia («A irretroactividade da norma
fiscal na Constituição portuguesa», in Estudos de Direito Público, Vol. I,
Principia, 2000, p. 257-301, p. 278), «a chave da determinação da
retroactividade reside [...] na localização do nascimento do imposto, que é o da
formação do facto tributário – não de qualquer outro momento posterior, como o
do acto de liquidação».
Não levanta obviamente qualquer problema de retroactividade – nem de resto
levantou ao tribunal recorrido – a ponderação da data de 1 de Janeiro de 1994,
nos termos do artigo 2º, n.º 1, do RCE, pois que a qualquer contribuição de
melhoria subjaz a consideração de que ocorreu uma vantagem económica particular,
o que só pode ser aferido por referência a uma situação patrimonial pretérita.
Contudo, tendo o tribunal recorrido considerado – num caso em que a licença para
emissão de alvará de construção tinha sido requerida antes da entrada em vigor
do Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março – que o imposto incidia sobre o aumento
do valor do prédio à data da apresentação do requerimento de licenciamento de
construção, há que concluir que o facto tributário subjacente à interpretação
normativa que constitui o objecto do presente recurso ocorreu num momento
anterior à data da entrada em vigor do diploma que instituiu o imposto (o
Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março).
Tal significa que essa interpretação normativa conduz ao pagamento retroactivo
de um imposto, contrariando, por isso, o disposto no artigo 103º, n.º 3, da
Constituição.
[…].”.
Esta fundamentação foi ainda sufragada pelos Acórdãos n.ºs 163/05 e 164/05,
de 29 de Março, e 175/05, de 31 de Março, todos da 2ª Secção.
7. Solução diferente foi todavia perfilhada no Acórdão n.º 604/05, de
2 de Novembro, da 3ª Secção.
A decisão de não inconstitucionalidade a que se chegou neste Acórdão n.º
604/05 assenta essencialmente nas seguintes considerações:
– “a incidência objectiva do tributo recai sobre o aumento do valor do prédio
ou terreno que se revela ou torna efectivo no momento em que se verifica a
emissão do alvará de licença de construção, já que só com tal acto se
consubstancia plenamente o acréscimo do valor patrimonial que se quer sujeitar”;
tal resultaria de se considerar que a data da realização é a data da emissão do
alvará de licença de construção, o que seria “confirmado pela norma de
incidência subjectiva (artigo 3º do Regulamento: «a contribuição é devida pelos
titulares do direito de construir em cujo nome seja emitido o alvará de licença
de construção ou de obra»)”;
– “o facto gerador do tributo é o acto jurídico de licenciamento da
edificação – rectius no momento em que é emitido o título correspondente – que é
aquele em que o acréscimo de valor do prédio ou terreno passa de potencial a
actual, e não o requerimento da licença de construção, bastando ponderar que, se
o licenciamento for requerido mas vier a ser indeferido, ninguém sustentará que
o tributo seja devido”;
– “não é a apresentação do requerimento de licenciamento da operação
urbanística que constitui o facto gerador da obrigação de imposto”, pois o que
está em causa é “uma norma que opera em benefício do sujeito passivo, congelando
esse aumento de valor em momento anterior ao da ocorrência do facto essencial,
com que a mais valia eclode (a emissão do alvará), assim neutralizando os
efeitos da maior ou menor duração do procedimento de licenciamento que, em
princípio, é imputável à Administração ou decorre de circunstâncias aleatórias
que o sujeito passivo não domina”;
– nas hipóteses em que “a «realização» desse acréscimo de valor, consumado
com a emissão do alvará de licença de construção, é posterior à data da entrada
em vigor do Decreto-Lei n° 43/98, embora o requerimento de licenciamento lhe
seja anterior, não ocorre «criação retroactiva» de um tributo, porque o facto
gerador da obrigação de pagar o imposto, aquele que, no critério da lei revela a
capacidade contributiva, ocorreu já no período de vigência da lei impositiva”;
– “o que, na interpretação normativa questionada, se situa em momento
anterior à vigência do citado Decreto-Lei n° 43/98 é um elemento da vida da
contribuição especial em causa favorável ao sujeito passivo” e, assim, “a sua
consideração na determinação do valor tributável não está vedada pela proibição
constitucional expressa de retroactividade, inserida no n.º 3 do artigo 103º da
Constituição pela revisão constitucional de 1997, porque só por ela são
abrangidas as normas ou os segmentos normativos oneradores ou agravadores da
situação dos contribuintes, não aqueles que, na estrutura do tributo
considerado, desempenhem uma função limitadora da obrigação de imposto, em seu
benefício”;
Partindo deste entendimento, decidiu-se “julgar que não violam o princípio da
não retroactividade dos impostos, consagrado no n.º 3 do artigo 103º da
Constituição, as normas dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento da
Contribuição Especial, anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na
interpretação segundo a qual, ocorrendo o requerimento de licenciamento de
construção antes da entrada em vigor deste diploma mas sendo a emissão do
correspondente alvará de licenciamento posterior a essa entrada em vigor, seria
devida a referida contribuição especial sobre o valor calculado pela diferença
entre o valor de prédio em 1 de Janeiro de 1994 e o seu valor na data daquele
requerimento”.
8. Ora, independentemente da questão de saber se é inteiramente
coincidente a interpretação normativa subjacente ao juízo de não
inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 604/05 e aquela que esteve na
base da decisão de inconstitucionalidade constante dos acórdãos fundamento,
certo é que a consideração do princípio da proibição da retroactividade dos
impostos – consagrado no artigo 103º, n.º 3, da Constituição portuguesa e
fundado, em geral, no princípio da protecção da confiança, inerente à ideia de
Estado de direito democrático, e no princípio da capacidade contributiva –
justifica a relevância atribuída nos acórdãos fundamento ao acto voluntário
através do qual (e ao momento em que) é requerido o licenciamento de construção
ou de obra. É que, no momento em que apresentou o requerimento para
licenciamento de construção ou de obra – recorde-se, momento anterior ao da
entrada em vigor do diploma em apreço –, o titular do prédio não podia contar
com a aplicação da Contribuição Especial, pela razão simples de que tal tributo
não havia ainda sido criado.
Conclui-se, assim, do mesmo modo que nos acórdãos fundamento, que a
interpretação normativa dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento da
Contribuição Especial, anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março – que
constitui objecto do pedido no presente processo de fiscalização abstracta de
constitucionalidade –, conduz ao pagamento retroactivo de um imposto,
contrariando, por isso, o disposto no artigo 103º, n.º 3, da Constituição.
Sublinhe-se, a terminar, que, sendo objecto da declaração da
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, uma determinada dimensão
normativa dos preceitos em apreciação, os tribunais não ficam naturalmente
impedidos de aplicar os mesmos preceitos, com outra interpretação, que não
contrarie a Constituição da República Portuguesa.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma constante dos artigos 1º, n.º 2, e 2º do Regulamento da
Contribuição Especial anexo ao Decreto-Lei n.º 43/98, de 3 de Março, na
interpretação segundo a qual, sendo a licença de construção requerida antes da
entrada em vigor deste diploma, seria devida a contribuição especial por este
instituída que, assim, incidiria sobre a valorização do terreno ocorrida entre 1
de Janeiro de 1994 e a data daquele requerimento, com fundamento em violação do
princípio da não retroactividade dos impostos, consagrado no artigo 103º, n.º 3,
da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2006
Maria Helena Brito
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Maria João Antunes
Mário José de Araújo Torres
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
(Vencida, nos termos do acórdão n.º 604/2005)
Bravo Serra (Vencido, pelas
razões constantes do
Acórdão deste Tribunal n.º
604/2005, que subscrevi)
Gil Galvão (Vencido, pelas
razões constantes do
Acórdão n.º 604/2005)
Vítor Gomes (Vencido, pelas razões
constantes do
Acórdão n.º 604/2005)
Carlos Pamplona de Oliveira –
vencido conforme declaração que junto.
Artur Maurício
Vencido. Tal como expressei em declaração aposta ao Acórdão n.º 81/05, da 1ª
Secção, entendo que o quadro legal em que se desenvolvem as normas ora em
análise e seus antecedentes (DL 54/95 de 22MAR, maxime, artigo 2º), revela que o
facto tributário aqui considerado ocorre no momento em que é emitido o alvará,
pois só então fica definitivamente assente o interesse jurídico relevante, que é
a concreta configuração do direito a construir que o alvará titula, e o sujeito
passivo do imposto, ou seja, o titular daquele direito (artigo 3º do mesmo
diploma).
Com efeito, a contribuição incide sobre o acréscimo do valor construtivo do
prédio, e a verdade é que é a partir do momento em que o alvará é emitido que o
particular fica investido na situação jurídica especial que permite a quem
satisfaz determinados requisitos uma actividade de construção ou de obra, em
princípio vedada a qualquer outro interessado.
A circunstância de o artigo 2.º, n. 1 do DL 43/98 de 03MAR considerar a data em
que é requerido o licenciamento para determinar o valor sujeito a contribuição,
é insignificante nesta querela, e apenas visa habilitar a Administração a
proceder à liquidação do montante da contribuição em momento oportuno.
Carlos Pamplona de Oliveira