Imprimir acórdão
Processo n.º 813/05
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente processo, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério
Público, o relator proferiu a seguinte decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do
artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. O ora recorrente denunciou, para efeito de procedimento criminal,
irregularidades cometidas no decurso do apuramento dos resultados das eleições
autárquicas realizadas em 16 de Dezembro de 2001 que, em seu entender, visaram
favorecer uma das candidaturas concorrentes.
O inquérito foi arquivado por despacho de 21 de Junho de 2004, do magistrado do
Ministério Público (DIAP de Lisboa).
Notificado deste despacho, nos termos do n.º 2 do artigo 277.º do Código de
Processo Penal, o recorrente requereu “a sua constituição como assistente nos
termos do artigo 166.º da Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto” e requereu a
abertura da instrução por factos que considerou preencherem o ilícito típico dos
“artigo 179.º c), artigo 191.º e artigo 199.º todos da Lei Orgânica 1/2001 de 14
de Agosto”.
Por despacho do juiz de instrução criminal (TIC de Lisboa), de 27 de Novembro de
2004, foi decidido não admitir o requerente a intervir como assistente e,
consequentemente, indeferir o requerimento para abertura da instrução.
Tendo o requerente interposto recurso desta decisão, o Tribunal da Relação de
Lisboa, por acórdão de 19 de Maio de 2005, negou provimento ao recurso, com os
seguintes fundamentos:
“Em causa, no presente recurso, está a questão da legitimidade de um cidadão
eleitor para se constituir assistente em processo criminal relativo à prática de
crime eleitoral.
Nos termos do artigo 68.º do C.P.Penal podem constituir-se assistentes em
processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito,
os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei
especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos,
(alínea a)e ainda qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem
como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por
funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato,
participação económica em negócio e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio
ou subvenção (alínea e) – e o legislador não incluiu os crimes eleitorais nos
chamados de acção popular, como bem refere a magistrada do Ministério Público
recorrida.
Assim, tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis
proteger consagrou-se, ou melhor, manteve-se consagrado o conceito estrito de
ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam, sem divergências de
maior, no domínio do CPP de 1929 (cfr. v.g. na doutrina Beleza dos Santos,
“Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal”, RLJ, ano 57, Figueiredo
Dias, “Direito Processual Penal”, 1º vol., p. 505-506 e 512-513; Cavaleiro de
Ferreira, “Curso de Processo Perna”, I, p. 129; com significado, na
jurisprudência, o Ac. do STJ de 66.1.5, BMJ 153-133).
Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata
ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de
interesses morais – “Não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime:
ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico
imediato do crime” (cfr. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal,
vol. 1. ed. De 1996, pág. 244).
Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos processuais como partes
civis, mas não constituir-se assistentes.
A aplicação deste conceito leva, portanto, a que se determine qual o interesse
jurídico-penal que em certa situação concreta haja sido violado, qual o bem
jurídico que certa norma protege.
Um particular não é, pois, titular do interessa que a lei especialmente quis
proteger ainda que possa eventualmente ser lesado e, nessa medida, sujeito
processual como se referiu supra.
É essa precisamente a situação do recorrente.
O bem ou interesse jurídico objecto de tutela penal, neste tipo de ilícito, é a
verdade dos resultados eleitorais. Tal interesse é meramente mediato, consoante
decorre da lei, sendo directo o interesse dos concorrentes, que assim são os
potenciais ofendidos.
Vem, porém, invocar o artigo 166.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto.
Porém, dispõe o art.º 166.º da Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, que
“qualquer partido político, coligação ou grupo de cidadãos concorrentes pode
constituir-se assistente nos processos penais relativos ao acto eleitoral”.
A previsão desta norma não inclui, pois, o cidadão eleitor.
E se esta norma especial não o inclui, ele é igualmente excluído da previsão do
art.º 68.º do C.P.P..”
2. O recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional,
tendo esclarecido, a convite a dar cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo
75.º da LCT que “o recurso foi interposto ao abrigo do art.º 70.º, n. 1 – b) da
Lei Orgânica do Tribunal Constitucional; a norma cuja inconstitucionalidade se
pretende que o Tribunal aprecie é a do art.º 166.º da Lei Orgânica n.º 01/2001,
de 14 de Agosto, por contrário ao disposto no art.º 13.º da CRP; e a mesma foi
suscitada na fundamentação de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
remetida ao TIC de Lisboa em 05/01/2005”.
Esclareceu, depois, um pouco melhor, que:
“(…) Uma interpretação literal do art.º 166.º torna o preceito inconstitucional
por contrário ao art.º 13.º CRP.
(…)Com efeito, qualquer cidadão eleitor não é alheio ao resultado lícito ou
ilícito de uma eleição.
E a exclusão da legitimidade assistencial em processo-crime de simples cidadão
eleitor descrimina-o, naturalmente, perante os candidatos ou os funcionários
partidários, neste preciso enquadramento.”
3. A questão de constitucionalidade é manifestamente infundada, justificando-se
que se ponha imediatamente termo ao recurso, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A
da LTC.
O recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo
166.º da lei que regula a eleição dos titulares do órgãos das autarquias locais
(LEOAL), aprovada pela Lei Orgânica n.º 1/2001, de 14 de Agosto, na
interpretação de que o cidadão eleitor não tem legitimidade para se constituir
assistente nos processos penais relativos ao acto eleitoral, que entende
infringir o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
Este preceito, dispõe o seguinte:
“Artigo 166.º
Direito de constituição como assistente
Qualquer partido político, coligação ou grupo de cidadãos concorrentes, pode
constituir-se assistente nos processos penais relativos ao acto eleitoral.”
Para o recorrente, na medida em que não reconhece ao “simples cidadão eleitor”
legitimidade para intervir como assistente em processos penais relativos ao acto
eleitoral, esta norma viola o princípio constitucional da igualdade consagrado
no artigo 13.º da Constituição, na medida em que o descrimina “perante os
candidatos ou os funcionários partidários”.
Importa começar por salientar que nos ilícitos criminais compreendidos em toda a
extensão da norma de atribuição de legitimidade do citado art.º 166.º, há crimes
respeitantes à organização do processo eleitoral, crimes relativos à votação ou
ao processo de votação e crimes relativos ao apuramento eleitoral ( cf. art.ºs
168.º a 202.º da LEOAL). Sendo a questão de constitucionalidade apreciada num
recurso de fiscalização concreta, a dimensão da norma que importa considerar é a
que respeita à legitimidade para os crimes respeitantes ao apuramento do
resultado eleitoral, uma vez que são desta natureza ou incidem sobre esta fase
do processo eleitoral, os crimes denunciados e investigados no processo de que
emerge a presente questão incidental de inconstitucionalidade.
4. Ora, assim delimitado o objecto do recurso, é manifesto que a norma em crise
não viola o princípio da igualdade.
Como é sabido, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da
Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que
for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente
diferente. Entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa,
este princípio não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções;
proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é,
desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer
fundamentação razoável, objectiva e racional. Dizendo-o sem desenvolvimentos que
o caso não justifica, enquanto princípio vinculativo da lei, o princípio da
igualdade traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (É abundantíssima
a jurisprudência do Tribunal sobre este princípio e neste sentido; cfr., por
todos, acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17
de Junho).
Sucede que nada tem de arbitrário ou contrário às valorações constitucionais em
matéria de sufrágio eleitoral, estando em causa ilícitos criminais que não
incidem sobre o exercício do direito de voto por um cidadão individualizado
(direito de sufrágio activo), mas sobre o apuramento (o procedimento ou o
resultado do apuramento) dos resultados eleitorais, que a legitimidade para a
constituição como assistente seja reconhecida aos partidos políticos, coligações
ou grupos de cidadãos concorrentes à eleição em causa e já não aos cidadãos
eleitores, nesta qualidade. O ilícito respeita ao direito de sufrágio passivo e
a regra de legitimidade para intervir como assistente, e nessa qualidade
perseguir quem alegadamente atenta contra a fiabilidade e a genuinidade do
processo de apuramento do resultado da eleição, coincide com os mesmos entes a
quem a lei eleitoral, em consonância com o artigos 51.º e 239.º, n.º 4 da
Constituição, reserva o direito de apresentar listas para a eleição dos órgãos
em causa (cf. artigo 16.º da LEOAL).
Optando por atribuir a legitimidade para a constituição como assistente
relativamente aos ilícitos em causa apenas a estes entes titulares do direito de
apresentação de candidaturas e não a qualquer cidadão eleitor, num domínio que
está na sua discricionariedade, visto que não há disposição constitucional que
obrigue a estender a todos os cidadãos a faculdade de constituição como
assistente em processo penal por crimes eleitorais, o legislador estabeleceu um
tratamento que não é arbitrário porque se compreende numa apreciação razoável
das ideias dominantes da Lei Fundamental.
No pode, pois, considerar-se violado o artigo 13.º da Constituição.
5. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, sendo manifestamente
infundada a questão de constitucionalidade, julgo o recurso improcedente e
condeno o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) Ucs.”
2. O recorrente reclama desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do referido artigo
78.º‑A, nos termos seguintes:
“1- Não se trata de uma mera insistência, porque a relevância da questão
proposta ao julgamento do Tribunal Constitucional é de tal modo evidente que
ninguém, nem um simples processo de intenções, criticará a iniciativa.
2- Na verdade, perante suspeita fundada de fraude eleitoral, que colocou na
presidência da Câmara de Lisboa e, por assim dizer, no caminho de Primeiro
Ministro, a um candidato que, efectivamente, perdeu no escrutínio, arquivado o
inquérito pelo MºPº, por razão de não ter podido identificar o autor do crime, o
recorrente, quem descobriu o modelo de malversão dos votos, propôs-se requerer a
Instrução.
3- Foi-lhe negada a faculdade, por não poder ser Assistente, com base no artº 68
CPP e no artº 166 da Lei Orgânica n.º 1/2002 de 14/8: só cabe a qualidade aos
candidatos, partidos e ajuntamentos eleitorais.
4- Justamente, foi a norma com este sentido que foi questionada na sua
constitucionalidade por este recurso: discriminação do eleitor individual, mais
interessado ainda no resultado que os candidatos ou os promotores da
candidatura.
5- Respondeu o ilustre Sr. Conselheiro Relator: “Não! O legislador estabeleceu
um tratamento que não é arbitrário porque se compreende numa apreciação razoável
das ideias dominantes da lei fundamental.
6- Estamos convencidos do contrário, de que a Constituição é uma Constituição
verdadeiramente democrática em que a soberania reside no povo.
7- Quando elege, tem interesse em quem elege e como elege.
8- Esta é a base da democraticidade da representação que, naturalmente, merece
tutela criminal, e, do mesmo modo, a interveniência singular de cada cidadão,
por ser simples cidadão eleitor, no processo penal, como Assistente.
9- Contudo, a interpretação que os Tribunais deram à norma não respeita este
vínculo.
10- No entanto, parece que o sistema pode muito bem ter outro entendimento:
completa a norma geral, esclarece que, para além de qualquer cidadão com a
legitimidade originária de ser cidadão eleitor, podem também ser assistentes os
partidos, as coligações, enfim, os promotores do voto.
11- Sem conceder, diga o Tribunal Constitucional, pelo menos, se estamos perante
um erro de Direito.”
O Ministério Público respondeu que a reclamação é manifestamente
improcedente, em nada sendo abalados, pela argumentação do reclamante, os
fundamentos da decisão reclamada.
3. A reclamação é manifestamente infundada, nada tendo o recorrente
trazido à consideração do Tribunal que possa levar a rever a decisão reclamada.
Importa, começar por destacar dois aspectos essenciais que o
reclamante parece não ter tomado em consideração:
A primeira é a de que não compete ao Tribunal Constitucional, no recursos de
fiscalização concreta de constitucionalidade, censurar a interpretação e
aplicação do direito ordinário pelos tribunais da causa. Assim, é matéria
estranha ao recurso de constitucionalidade saber como se articulam o artigo 68.º
do Código de Processo Penal e o artigo 166.º da LEOAL, no domínio da
legitimidade para intervir como assistente nos crimes eleitorais.
A segunda, é a de que no presente processo só está em causa a apreciação de
constitucionalidade da norma do artigo 166.º da LEOAL, e não também a do artigo
68.º do Código de Processo Penal ao abrigo da qual a decisão recorrida
igualmente perspectivou a pretensão do recorrente. No requerimento de
interposição de recurso, o recorrente não pôs em causa a constitucionalidade do
entendimento da decisão recorrida quanto a essa norma, não podendo agora
convolar ou ampliar o objecto do recurso.
Dito isto, não se põe em dúvida que o sufrágio seja o instrumento fundamental da
realização do princípio democrático, ou a relevância do procedimento eleitoral
justo para garantia da autenticidade do sufrágio (artigo 113.º da CRP). Nem que
a efectividade dessa garantia reclame a organização de meios de controlo,
dissuasão e repressão das condutas que sejam susceptíveis de lesar a justiça
desse procedimento e dos seus resultados, em último termo pela via judicial
(cfr. n.º 7 do artigo 113.º da Constituição). Mas o que o recorrente não
demonstra, nem se vislumbra norma ou princípio constitucional onde tal pretensão
se ampare, é que desta indiscutível verdade decorra a imposição ao legislador da
consagração de uma legitimidade universal para a perseguição penal daquelas
condutas lesivas do procedimento eleitoral justo que tipifique como crimes. Na
ausência de regra ou princípio constitucional vinculante (cfr., por exemplo, a
alínea a) do n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, sem que interesse saber se a
“promoção da perseguição judicial das infracções” tem esse alcance máximo), está
na discricionariedade do legislador o alargamento, para fora do círculo dos
sujeitos particularmente atingidos pela acção lesiva que é objecto da reacção
penal, a legitimidade para intervir como assistente (Cfr. exemplos do que se
pode designar por acção popular penal, além da alínea e) do n.º 1 do artigo 68.º
do CPP, na legislação avulsa indicada por M. Simas Santos e M. Leal-Henriques,
Código de Processo Penal Anotado, 2ª ed., vol. I, 1999, pág. 355).
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o reclamante nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 7 de Março de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício