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Processo n.º 922/04
3.ª Secção Relator Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária:
“1. O Tribunal da Relação de Lisboa, concedendo provimento a recurso interposto por A. (requerente), por acórdão de 19 de Julho de 2004 (fls. 699 ss.) decretou uma providência cautelar contra B. (requerida). A requerida B., ora recorrente, arguiu nulidades desse acórdão, que foram indeferidas por acórdão de 4 de Agosto de 2004 (fls. 737), do seguinte teor :
“Notificada do acórdão proferido nesta Relação que concedeu provimento ao agravo, veio a agravada arguir nulidades de tal aresto, por entender que houve lapso manifesto na consideração da existência de uma confissão e que deveria ter sido conhecida a questão que pela reclamante foi invocada nas contra-alegações a respeito do agravo de denúncia. A agravante veio opor-se a tal reclamação. Cumpre decidir. Como refere a agravante, as questões suscitadas revelam uma discordância relativamente ao teor da decisão que a afectou na sua esfera de interesses. Mas não é esse facto que legitima a arguição de nulidades. Nem sequer a inviabilidade de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pode justificar que por detrás de uma arguição de nulidade se esconda, como ocorre no caso presente, uma verdadeira impugnação. Efectivamente não se verifica qualquer nulidade.
A posição assumida no acórdão reclamado acerca da confissão reportada ao periculum in mora justificativo do deferimento da providência não resultou de qualquer erro manifesto, antes foi uma opção devidamente fundamentada. Fundamentada foi ainda a recusa de conhecer da questão suscitada pela agravada nas contra-alegações acerca do prazo de pré-aviso. Por tais motivos, acorda-se em indeferir a reclamação. Custas a cargo da reclamante, sendo de 2 UC a taxa de justiça.” Deste último acórdão interpôs a requerida recurso para o Tribunal Constitucional, mediante requerimento (fls. 741 ss.), no qual, depois de expor as razões que a levaram à arguição de nulidade, afirma o seguinte:
“Indeferimento do pedido de sanação da nulidade
09 Na resposta à nulidade arguida, o venerando recorrido viria a exarar, sumariamente, que, na arguição da Agravada, se escondia uma verdadeira impugnação e que, pois, «...o deferimento da providência não resultou de qualquer erro manifesto, antes foi uma opção devidamente fundamentada»;
10 Ou seja: Denegou, por completo e em absoluto, qualquer resposta ao alegado da reclamante: o número 82º da Oposição era ou não, no entendimento do ora Recorrido susceptível de alterar o seu decisório, se fora conhecido?! E porque houve lugar a recusa de dele conhecer?! Nada se sabe, quanto a isso, porque nada se respondeu, o que se lamenta e se desentende;
Das feridas constitucionais
11 Não conhecendo – nem tendo querido conhecer – da matéria vertida naquele número
82 da Oposição à Providência, o venerando Tribunal «a quo» violou, designadamente, o disposto no artigo no artigo 668.º, 1, c, d, do CPC e, por força directa de tal recusa de pronúncia, o dever constitucional de fundamentação plena das decisões (202.º, e 205.º CRP), ficando assim prejudicado o acto de justiça devido aos autos.
12 A inconstitucionalidade em apreço não foi invocada – nem podia sê-lo – em nenhum momento anterior à proferição do douto Acórdão, por declarada impossibilidade de ser prevista anteriormente aos autos, sendo o presente Recurso interposto ao abrigo do estatuído na alínea b) do número 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, abonando-se ainda na douta jurisprudência constitucional vertida, v.g., no douto Ac. 395/03, de 22 de Julho e 418/03, Proc. 585/03, 2ª Secção.” O recurso foi admitido, por despacho que não vincula este Tribunal (artigo 76.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro – LTC).
2. O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC destina-se a que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas que tenham sido efectivamente aplicadas na decisão recorrida. A inconstitucionalidade tem de ser referida a normas de direito infra-constitucional e não às próprias decisões judiciais que as apliquem, porque não está, entre nós, instituído um sistema de acesso ao Tribunal Constitucional do tipo do recurso de amparo espanhol ou da queixa constitucional alemã. É o que resulta da Constituição (artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da CRP) e da lei (artigo 70.º n.º 1, alínea b) da LTC) e tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr., a título de exemplo, os acórdãos n.ºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da República, II série, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996, respectivamente). Ora, a inconstitucionalidade que o recorrente refere no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal é directamente imputada à decisão judicial impugnada. A violação dos artigos 202.º e 205.º da Constituição é resultante da decisão judicial, enquanto acto concreto de julgamento, “por força directa de tal recusa de pronúncia” e não de qualquer norma, ainda que em determinada interpretação ou com um específico sentido normativo mediatizado pela decisão recorrida. Tanto basta em decisão sumária ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, para que não possa conhecer-se do recurso, sem necessidade de examinar a verificação de outros pressupostos.
3. Decisão Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar os recorrentes nas custas, fixando a taxa de justiça em sete unidades de conta.”
2. A recorrente reclama desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo
78.º-A da LTC.
No pressuposto de que as decisões judiciais têm a natureza jurídica de “normas (particulares e concretas)”, sustenta que o recurso deve prosseguir porque “(...) toda a norma (geral e abstracta) ou (particular e concreta) está submetida ao apreço do Tribunal Constitucional, podendo a parte lesada, em pleito judicial, suscitar, perante a Alta Instância, o problema da Constitucionalidade da própria Decisão proferida se não dispuser de recurso judicial no seio do qual possa arguir tal questão;
19- De outro modo, uma decisão judicial, material e directamente inconstitucional, não resultaria tutelada e poderia impor-se e fazer-se valer absolutamente , apesar do disposto, v.g., nos artigos referenciados supra (3.º,
2., 204.º, 205.º, 221.º, 277.º da CRP);
20- A norma constitucional formal (280.º CRP) não desatende nem posterga o direito de recurso com vista ao apuramento da própria constitucionalidade da Decisão Judicial proferida. Com efeito, a Constituição material, impondo-se e sendo mais do que a Constituição formal, consagra, em nosso modesto mas convicto entender, o princípio de que toda a norma, como se referenciou, (abstracta e/ou concreta) é passível de apreço pelo Tribunal Constitucional no âmbito de recurso interposto nos termos daquele preceito (280.º).”
A recorrida A. apresentou resposta à reclamação, na qual defende que a decisão de não conhecimento do recurso deve ser mantida, seja pelas razões da decisão sumária, seja porque o recurso é interposto de decisão proferida em processo cautelar e incide sobre juízo de constitucionalidade que assume natureza provisória, seja porque a recorrente não suscitou atempadamente a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, o que poderia ter feito na arguição de nulidade.
3. O recorrente não discute, antes aceita, o pressuposto factual, em que assenta a decisão reclamada, de que aquilo que pretende discutir no recurso
é a violação de normas constitucionais que directamente imputa à decisão judicial recorrida. A sua divergência com a decisão sumária radica na seguinte interrogação: se, ao abrigo do artigo 280.º da Constituição, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem normas inconstitucionais ou se recusem a aplicar normas com fundamento em inconstitucionalidade e se os tribunais estão submetidos ao dever de obediência
à Constituição, porque não admitir, por maioria de razão, esse recurso quando é a própria decisão judicial que directamente ofende normas ou princípios constitucionais?
É uma questão a que a decisão sumária já respondeu, com arrimo a uma jurisprudência numerosíssima e sem divergências, de que citou alguns exemplos (E também doutrinalmente aceite; cfr., por último, Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade – Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, p. 336-359).
A opção de direito constitucional positivo poderia ter sido do género daquele que a recorrente defende (Embora dentro de apertados pressupostos, mostram-no, com especialidades que não interessa destacar, os sistemas espanhol ou alemão). Mas não foi. Quer o legislador constituinte (artigo 280.º da CRP), quer o legislador ordinário (artigo 70.º da LTC) circunscreveram claramente a competência do Tribunal Constitucional à fiscalização da conformidade constitucional de actos normativos - ainda que num conceito de norma funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade e consoante a sua justificação e sentido caibam aí os preceitos legais de conteúdo individual e concreto, mesmo quando possuam eficácia consuntiva (cfr. Acórdão n.º 26/85, publicado no Diário da República, II série, de 26 de Abril de 1985) – e não ao controlo da concreta decisão de um caso jurídico. É certo que a constitucionalidade que compete ao Tribunal apreciar, em recurso de fiscalização concreta, não tem necessariamente de ser referida à norma resultante da aplicação dos critérios de hermenêutica por um intérprete ideal, abrangendo a norma interpretativamente obtida pelo tribunal da causa, desde que tenha funcionado como critério normativo da decisão. Porém, nunca ao ponto de caber nesta competência – como no caso se pretende, ao censurar a directa infracção ao dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no n.º
1 do artigo 205.º da CRP – a apreciação da violação de normas constitucionais pelo tribunal da causa, sem norma infraconstitucional interposta. O contencioso de constitucionalidade é sempre de normas em que se fundam (ou em que, com esse fundamento, recusam fundar-se) as decisões recorridas e não um contencioso de decisões, seja qual for a sua natureza. Sem ignorar a evolução do conceito de norma na teoria do direito, como se disse na “exposição do relator” confirmada pelo Acórdão n.º 413/94, num caso em que também se pretendeu estender às decisões judiciais o conceito de norma, uma decisão judicial não é uma norma, pelo menos no sentido em que o termo é usado no artigo 280.º da Constituição.
Tanto basta para indeferir a reclamação e confirmar a decisão reclamada, sem necessidade de examinar a concorrência dos outros obstáculos à admissibilidade do recurso que a recorrida A. refere.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2005
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050039.html ]