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Processo n.º 888/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Em 26 de Novembro de 2004 foi proferida nos presentes autos decisão sumária de não conhecimento de recurso de constitucionalidade. Essa decisão teve o seguinte teor:
«1. Em 14 de Setembro de 2004, A. interpôs recurso para este Tribunal do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2004, que rejeitou, por
“manifestamente votado ao insucesso”, o recurso que havia apresentado da sentença do Tribunal da Comarca da Nazaré que a havia condenado, como autora de um crime de difamação, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 8, bem como nas custas do processo e no pagamento de uma indemnização de € 800 ao ofendido. Indica-se no requerimento do recurso de constitucionalidade que este é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e que a recorrente “pretende ver discutida a constitucionalidade da norma prevista no artigo 127º do Código de Processo Penal”, por considerar que “foi violado o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e o princípio/dever de fundamentação das decisões dos tribunais”, já “que a interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, é inconstitucional por violação do dever de fundamentação de decisões do tribunal previsto no artigo 205º do C.P.P.”. A recorrente indicou também que “suscitou a questão da inconstitucionalidade no seu pedido de reforma ou revogação do acórdão que rejeitou o recurso para este Tribunal [sic] por considerar que o mesmo se apresenta manifestamente votado ao insucesso.” Cumpre decidir. II. Fundamentos
2. O presente recurso foi admitido – em decisão que, como se sabe (artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal Constitucional
–, mas, verificando-se que não estão preenchidos os requisitos para dele se poder tomar conhecimento, é de proferir decisão sumária nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
3. Na verdade, resulta do requerimento de interposição de recurso que a recorrente questiona a inconstitucionalidade da norma do artigo 127º do Código de Processo Penal – norma segundo a qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” –, imputando-lhe a “interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal”. Ora, tal norma impugnada não foi aplicada com esse sentido pelo tribunal recorrido, o que, só por si, determina a não verificação de um dos requisitos do recurso de constitucionalidade: a aplicação, pela decisão recorrida, da norma ou interpretação normativa impugnada pelo recorrente. E não foi aplicada com o referido sentido, desde logo, porque tal sentido só poderia ser imputado a uma norma relativa à fundamentação da decisão judicial (o n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, naturalmente num entendimento muito limitativo), e não a uma norma relativa à “livre apreciação da prova”, como é o artigo 127º do mesmo Código. A falta do requisito indicado determina, só por si, a impossibilidade de se tomar conhecimento do presente recurso.
4. Ao motivo indicado anteriormente acresce que a interpretação normativa indicada pela recorrente – ainda que fosse reportada a outro preceito do Código de Processo Penal – não pode considerar-se aplicada no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Abril de 2004. Este limitou-se a sublinhar a falta de fundamentação do recurso, ao impugnar a recorrente os “factos provados da decisão instrutória como se fosse esta que continua a valer, fazendo uma desusada confusão com a prova efectuada e assente em julgamento”, destacando que na “sentença se refere quais os factos apurados, sob a epígrafe ‘Factos provados
– Decisão Instrutória’ para realçar de entre os que além constavam os que aqui em sede de julgamento se lograram apurar”, sendo estes últimos os que valem,
“designadamente para efeito de impugnação em sede de recurso”. O acórdão recorrido trata ainda da alegação de insuficiência do acervo factual, remetendo para os factos de onde resulta a existência de dolo difamatório, não abordando especificamente a questão da enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância e da explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, desde logo, porque, como se pode concluir pelo confronto da motivação de recurso para o Tribunal da Relação (fls. 205 e segs.) e da resposta à pronúncia do Ministério Público nesse Tribunal (fls. 245 e seg.), tal questão não fora posta pela recorrente (e antes apenas as da insuficiência da matéria de facto e da contradição entre a fundamentação e a decisão). Conclui-se, pois, em suma que a recorrente discorda, sim, mas da avaliação da prova feita pela 1ª instância e confirmada pela 2ª instância, mas que a interpretação normativa por ela impugnada no presente recurso de constitucionalidade não foi aplicada pelo tribunal recorrido. Pelo que se não pode tomar conhecimento do presente recurso.»
2.A recorrente veio reclamar desta decisão, nos seguintes termos:
«1 - O disposto do n.° 1, alínea a), do art.º 379º do C.P.P. refere que “É nula a sentença: Que não contiver as menções referidas no artigo 374°, n.ºs 2 e 3, alínea b); ou”
2 - Dispõe ainda o n.º 2 do artigo 374° que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, (...), dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
3 - Ora atentas as “supra” citadas disposições legais, isto é, o art.º 374°, n.°
2, do C.P.P., ao exigir a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, não acrescenta um mais que não contenha na enumeração dos factos provados e não provados e consequentemente avaliação daqueles à luz da norma ou normas chamadas ao guizo substantivo, ou seja, se os factos preenchem ou não a essência dessas normas.
4 - Tal preceito jurídico exige que sobre os factos provados incida um raciocínio lógico, que consiste justamente numa operação, demais, conhecida, de avaliação da aptidão dos factos para integração na norma ou normas de conteúdo geral e abstracto, em ordem a decidir se os mesmos preenchem ou não as definições nelas contidas (Ac. STJ de 15 de Maio de 1996, proc. 47722/3.).
5 - Em sede de motivação, o presente acórdão refere que, quanto a esta matéria, o tribunal de 1ª instância teve em conta os princípios e regras legais sobre os meios de prova, sua obtenção e força probatória atribuída por lei, tendo em conta, em especial, o preceituado no art.º 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
6 - A interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, é inconstitucional, por violação do dever de fundamentação de decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do art.º 205° da Constituição da República Portuguesa bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do [art.º] 410º do mesmo diploma legal, por violação do direito ao recurso consagrado no n.º 1 do artigo 32º, este também da Constituição da República Portuguesa (vide Ac. do Trib. Constitucional n.º 680/98, de 2 de Dezembro, proc.
456/1995; DR, II Série, de 5 de Março de 1999).
7 - Afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que o presente acórdão tão-só limitou-se a indicar a norma legal que o tribunal de 1ª instância utilizou como regra legal sobre os meios de prova, conforme supra referido,
8 - não explicitando, em concreto a formação da convicção do tribunal recorrido, para assim decidir condenar a recorrente pela prática do crime de difamação.
9 - Salientando-se que o acórdão em questão limitou-se a dissertar, formalmente, acerca desta regra legal preceituada no artigo 127° do C.P.P., não a consubstanciando aos factos concretos em discussão.
10 - Pelo que, consideramos, assim, verificar-se uma inconstitucionalidade, na medida em que foi violado o dever de fundamentação de decisões dos tribunais previsto no n.º 1 do art.º 205º da Constituição, conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410º C.P.P., por violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32º, n.º 1, da C.R.P..
11 – Ora, a norma ora impugnada do artigo 127.º do Código de Processo Penal, foi efectivamente aplicada com a interpretação acima explanada, pelo Tribunal recorrido - vide n.° 6 da presente reclamação,
12 - pelo que, consideramos ao invés da decisão sumária deste Tribunal, proferida pelo Ex.mo Juiz Conselheiro Relator, que se acham preenchidos os legais requisitos do Recurso de Constitucionalidade, previsto na Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro.
13 - Pelo exposto, consideramos o presente acórdão inconstitucional, por ter sido violado o dever de fundamentação de decisões dos Tribunais, mormente no que diz respeito à aplicação da norma exarada no artigo 127º do C.P.P. - vide Ac. do Tribunal Constitucional n.º 680/98, de 2 de Dezembro, proc. 456/1995; DR, II Série, de 5 de Março de 1999.» O representante do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado da reclamação deduzida, veio responder nos seguintes termos:
“1º A presente reclamação é manifestamente infundada.
2º Na verdade, a argumentação expendida pela reclamante em nada abala a decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Adianta-se desde já que a presente reclamação se afigura, como afirma o Ministério Público, claramente improcedente. Na verdade, a argumentação aduzida pela recorrente não abala os fundamentos da decisão de não conhecimento do recurso, nem na parte em que se refere ao acórdão recorrido, nem na parte relativa especificamente à decisão sumária proferida nos presentes autos (n.ºs 11 e segs. da reclamação). Nos termos do respectivo requerimento, o recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Para se poder conhecer de tal recurso torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários, que a inconstitucionalidade da norma impugnada tenha sido suscitada durante o processo e que esta norma tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido. Ora, este último requisito não se verifica no presente caso, como se afirmou na decisão reclamada e se reitera. Nos termos do requerimento de recurso, este tinha por objecto a apreciação da constitucionalidade do artigo 127º do Código de Processo Penal, com a “interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal”. Consultando a decisão de que se pretendeu recorrer, que é o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Abril de
2004, verifica-se, como se disse já na decisão reclamada, que a norma impugnada não foi aplicada, pelo tribunal recorrido, com o sentido indicado pela recorrente – de que “a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal”. Isto porque (para além de tal sentido só poder ser imputado a uma norma relativa à fundamentação da decisão judicial – o n.º 2 do artigo 374º do Código Processo Penal, naturalmente num entendimento muito limitativo –, e não a uma norma relativa à “livre apreciação da prova”, como é o artigo 127º do mesmo Código), o acórdão recorrido se limitou a sublinhar a falta de fundamentação do recurso interposto pela recorrente, e ao tratar da alegada insuficiência do acervo factual, não aborda especificamente a questão da enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância e da explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, desde logo, porque tal questão não fora posta pela recorrente – a recorrente discordava, sim, da avaliação da prova feita pela 1ª instância e confirmada pela 2ª instância, razão pela qual o acórdão recorrido trata desta questão, mas não se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância, dispensando a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal. Por não ter sido aplicada a norma impugnada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, tem, pois, a presente reclamação de ser desatendida, confirmando-se a decisão sumária reclamada. III Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar a reclamante em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2005
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050040.html ]