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Processo n.º 627/04
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que
são recorrentes a A., S. A. e a Região Autónoma dos Açores e recorrida a
Comissão de Trabalhadores da A., S. A., foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Abril de 2004.
Este Tribunal recusou a aplicação do Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, e
dos estatutos da A., anexos ao Decreto-Lei nº 276/00, de 10 de Novembro, na
parte em que revogam, expressa (Decreto-Lei nº 558/99) e tacitamente (estatutos)
os normativos do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril e dos anteriores
estatutos, que consagravam a participação de representantes dos trabalhadores
nos órgãos sociais da A., por enfermarem de inconstitucionalidade por acção, na
medida em que infringem os artigos 89º e 54º, nº 5, alínea f), da Constituição
da República Portuguesa.
2. A Comissão de Trabalhadores da A., S. A. propôs, no Tribunal Judicial de
Ponta Delgada, acção contra a A. e a Região Autónoma dos Açores, pedindo,
nomeadamente, que fosse reconhecido aos trabalhadores da A. o direito de terem
um representante nos órgãos sociais da empresa (Conselho de Administração e
Conselho Fiscal). Proferido saneador-sentença, que julgou a acção procedente, as
ora recorrentes apelaram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou a
decisão recorrida.
Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, esta instância decidiu
conceder parcialmente a revista, condenando as rés a reconhecerem o direito dos
trabalhadores a terem um seu representante no Conselho de Administração da A.,
considerando que ficaram provados pelas outras instâncias os seguintes factos:
“1º. A autora é o órgão representativo dos trabalhadores da A. e desde 1989
promoveu sucessivamente à eleição de representantes dos trabalhadores para o
Conselho de Administração, designando também um representante para o Conselho
Fiscal.
2°. Assim, em 17 de Agosto de 2000, foi eleito pelos trabalhadores um
representante dos trabalhadores para o Conselho de Administração da A., o qual
foi empossado pelo Senhor Secretário Regional da Economia em 10 de Outubro de
2000.
3°. E passou a exercer funções até ao passado dia 9 de Dezembro; nesta data,
reuniu a Assembleia Geral da sociedade, tendo aí sido deliberado eleger os
membros dos órgãos sociais.
4°. Destes órgãos não consta qualquer representante dos trabalhadores da A..
5°. Esta deliberação foi tomada com a presença e voto do único sócio da A., a ré
Região Autónoma dos Açores.
6°. Antes da deliberação referida, a autora contactou o Governo Regional dos
Açores, através do Director Regional do Orçamento e Tesouro, e comunicou-lhe que
indicava, para fazer parte do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal da
Sociedade Anónima, os mesmos trabalhadores que haviam sido eleitos para o
Conselho de Administração e para a Comissão de Fiscalização cessantes”.
Para o que agora releva, importa destacar o seguinte da fundamentação jurídica
constante do acórdão:
“2ª Questão:
A participação dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas pertencentes ao
Estado ou a outras entidades públicas é referida nos art.ºs 89° e 54° n° 5 al.
f), da Constituição da República Portuguesa.
Redacção do art.º 89°:
‘Nas unidades de produção do sector público é assegurada uma participação
efectiva dos trabalhadores na respectiva gestão’.
Redacção do art.º 54° n° 5 al. f):
‘Constitui direito das Comissões de Trabalhadores promover a eleição de
representantes dos trabalhadores para os órgãos sociais de empresas pertencentes
ao Estado ou a outras entidades públicas, nos termos da lei’.
Este último preceito não confere directamente aos trabalhadores o direito de
integrar os órgãos sociais das empresas do Estado ou outras entidades públicas,
antes pressupõe a existência de tal direito e, partindo desse pressuposto,
atribui à Comissão de Trabalhadores o direito de promover a eleição dos
respectivos representantes para os aludidos órgãos sociais.
É aquele art.º 89° que consagra a participação efectiva dos trabalhadores na
gestão das empresas públicas. Este preceito está inserido na Parte II da C.R.P.,
dedicada à organização económica do Estado.
É nesta parte da nossa Lei Fundamental que é garantida a coexistência de três
sectores de propriedade dos meios de produção, o sector público, o privado e o
cooperativo e social, definindo-se que o sector público é constituído pelos
meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras
entidades públicas (art.º 82 da C.R.P.).
Este art.º 89° da C.R.P. não é directamente aplicável e muito menos
imediatamente exequível, pelo que necessita da mediação do legislador ordinário
para tal.
Já o art.º 54° da C.R.P. está inserido no Título II da C.R.P., que define o
regime dos direitos, liberdades e garantias (art.º 17° da C.R.P.).
Segundo o art. 18° da C.R.P. os preceitos constitucionais respeitantes aos
direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as
entidades públicas e privadas, constituindo normas preceptivas.
Dentro destas normas preceptivas, os Constitucionalistas distinguem, ainda, as
normas completas e imediatamente exequíveis das incompletas e inexequíveis sem a
mediação da lei ordinária. Aquele art. 54° n° 5 al. f) pertence a este último
grupo, como inequivocamente resulta do respectivo texto, última parte, onde se
remete para a lei ordinária (Constitui direito das Comissões de Trabalhadores
promover a eleição de representantes dos trabalhadores para órgãos sociais de
empresas pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas, nos termos da
lei).
Com isto pretende-se mostrar que, mesmo para quem entenda ser o art.º 54° n° 5
al. f) da C.R.P. a consagrar o direito dos trabalhadores a integrar os órgãos
sociais das empresas do sector público, o resultado é o mesmo, pois também este
preceito precisa da mediação da lei ordinária para se tornar exequível.
Decide-se, pois, esta 2ª questão no sentido da necessidade da concretização da
norma constitucional pelo legislador ordinário para que o direito dos
trabalhadores se torne exequível.
3ª Questão:
As instâncias entenderam que os trabalhadores tinham o direito de ter um
representante nos órgãos sociais da ré A., quer por aplicação directa do
preceito constitucional, como fez a 1ª instância, quer por imposição da lei
ordinária concretizadora do texto constitucional, a Lei 46/79, de 12 de
Setembro, art.ºs 30° e 31º, como parece ter feito o Tribunal da Relação.
Já vimos que os preceitos constitucionais, só por si, não chegam para
fundamentar a procedência da acção.
A invocação dos preceitos constitucionais, complementada com os art.ºs 30° e 31º
da Lei 46/79, como parece ter feito o Tribunal da Relação, já o seria, caso se
conclua que esta lei é aplicável à situação, que é a lei concretizadora do texto
constitucional.
Esta lei teve por objectivo regular a constituição das comissões de
trabalhadores, como resulta do n° 3 do seu art.º 1º.
Os referidos art.ºs 30° e 31º, que aludem aos representantes dos trabalhadores
nos órgãos sociais das empresas do sector empresarial do Estado, remetem a
concretização do direito dos trabalhadores a estarem aí representados para os
estatutos das respectivas empresas.
É efectivamente nas leis de base do sector empresarial do Estado e demais
entidades públicas e nos estatutos das empresas a ele pertencentes que devemos
buscar a complementaridade da norma constitucional.
O DL 260/76, de 8 de Abril, veio definir os princípios fundamentais a que devem
obedecer os estatutos das empresas públicas, como se afirma no n° 2 do
respectivo preâmbulo.
Nos seus art.ºs 8° n° 1 e 10° n° 5 consagra-se a participação de representantes
dos trabalhadores no Conselho Geral e na Comissão de Fiscalização.
O DL 490/80, de 17 de Outubro, extinguiu A A., S.A.R.L. e criou, em sua
substituição, a empresa pública A. E.P..
Em anexo a este DL foram publicados os estatutos pelos quais se passou a reger a
empresa pública acabada de criar, A., E.P. .
No art. 4° n° 1 al. g) destes estatutos diz-se que o Conselho Geral é
constituído, entre outros, por dois representantes dos trabalhadores da empresa.
No seu art.º 7° n° 3 refere-se que um dos vogais do Conselho de Gerência será o
representante dos trabalhadores da empresa.
No seu art.º 11º, nºs 1 e 2, consagra-se que um dos três membros da Comissão de
Fiscalização será indicado pelos trabalhadores da empresa.
Antes da publicação deste diploma legal foram ouvidos os órgãos do Governo
Regional dos Açores, em cumprimento do preceituado pelo n° 2 do art.º 229° da
C.R.P., como resulta da leitura do seu preâmbulo.
Contrariamente ao defendido pela ré Região Autónoma dos Açores, o legislador
ordinário concretizou o direito de participação dos trabalhadores nos órgãos
sociais da A., E.P..
Aliás, consta da matéria de facto provada que a autora, desde 1989 promoveu
sucessivamente a eleição de representantes dos trabalhadores para o Conselho de
Administração, designando também um representante para o Conselho Fiscal (nº 1
dos factos provados).
Houve concretização da norma constitucional pelo legislador ordinário e houve
acatamento pela ré da prescrição legal, desde 1989 até 9 de Dezembro de 2000.
O DL 260/76 foi expressamente revogado pelo DL 558/99, de 17 de Dezembro,
conforme art.º 40° n° 1, deste diploma.
O DL 276/2000 transformou a A., E.P., em sociedade anónima, com a denominação
A., S.A., pertencendo à Região Autónoma dos Açores todas as suas acções.
Foram publicados em anexo a este DL os novos estatutos da A., S.A..
Tanto aquele DL como estes estatutos não contemplam a participação dos
trabalhadores nos órgãos sociais da A., S.A., revogando o DL 260/76 e os
estatutos publicados em anexo ao DL 490/80, de 17 de Outubro.
Ultrapassada a 3ª questão, com a conclusão de que houve concretização da norma
constitucional pela lei ordinária, passemos à análise da 4ª questão.
4ª Questão:
O art.º 5° do DL 558/99, de 17 de Dezembro, diz que “Além do Estado, apenas
dispõem de sectores empresariais próprios as Regiões Autónomas, os Municípios e
as suas Associações, nos termos de legislação especial, relativamente à qual o
presente diploma tem natureza supletiva”.
Não foi publicada legislação especial para fixar o regime do sector empresarial
da Região Autónoma dos Açores, pelo que a A., S.A., se disciplina pelo regime
supletivo, o estabelecido pelo DL 558/99, e pelos estatutos.
Este DL 558/99 e os estatutos da ré A., anexos ao DL 276/00, de 10 de Novembro,
na parte em que revogam, expressa (DL558/99) e tacitamente (estatutos) os
normativos dos DL 270/76 e dos anteriores estatutos, que consagravam a
participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos sociais da A.,
enfermam de inconstitucionalidade por acção, na medida em que infringem os
art.ºs 89° e 54° n° 5 al. f) da C.R.P. (art. 277° nº1 da C.R.P.).
Não há inconstitucionalidade por omissão, pois não há omissão das medidas
legislativas para tornar exequível a participação de representantes dos
trabalhadores nos órgãos sociais da A., S.A., mas antes a publicação de
legislação revogatória de leis que já a consagravam.
A recusa do Tribunal a aplicar normas, face à sua inconstitucionalidade, conduz
naturalmente à repristinação dos preceitos que tais normas pretendiam revogar,
por falta de apetência das normas inconstitucionais para produzirem o efeito
revogatório. Cremos ser este o princípio que decorre do preceituado pelo art.º
282° n° 1 da C.R.P. .
Sendo, assim, aplicam-se à situação em análise os art.ºs 8° n° 1 e 10° n° 5 do
DL 260/76 e os art.ºs 4° n° 1 al. g), 7° n° 3 e 11º nºs 1 e 2 dos estatutos da
ré A., publicados em anexo ao DL 490/80, pelo que os trabalhadores da A.,
representados pela autora, têm direito a terem um seu representante no Conselho
de Administração daquela.
5ª Questão:
A comissão de fiscalização, prevista nos estatutos da A., E.P. (artº 3° n° 1 al.
c) como um dos seus órgãos sociais, foi substituída nos actuais estatutos da A.,
S.A., por um fiscal único, nos termos do DL 26-A/96, de 27 de Março, deixando de
possuir aquela categoria, reservada apenas à Assembleia Geral e ao Conselho de
Administração (art°. 6° nos 1 e 5 dos estatutos anexos ao DL 276/00).
A intenção de entregar a auditoria contabilística e financeira das empresas
públicas a profissionais fora já anunciada no n° 5 do preâmbulo do DL 260/76, de
8 de Abril.
Tendo o fiscal único deixado de ser um dos órgãos sociais da ré A., S.A., não
tem qualquer justificação a pretensão da autora em ter um representante dos
trabalhadores a fiscalizar as contas daquela, pelo que, nesta concreta matéria,
têm razão as rés, impondo-se a concessão parcial da revista”.
3. A A. e a Região Autónoma dos Açores interpuseram recurso deste acórdão para o
Tribunal Constitucional, tendo a primeira concluído as alegações apresentadas da
seguinte forma:
“1ª -Tendo nascido como uma sociedade anónima de direito privado, a A. passou a
ter, por força do DL n.º 490/80, de 17 de Outubro, o estatuto de empresa
pública, sendo-lhe como tal aplicável o regime jurídico das EP'S (DL n.º 260/76,
de 8 de Abril), integrando a partir de então o sector público regional dos
Açores.
2ª - Sendo a A. uma empresa pública criada pelo Estado, a revogação do DL n.º
260/76 pelo DL n.º 558/99, de 17 de Dezembro e a sua aplicação à A., implicou a
transformação desta através do DL n.º 276/2000, de 10 de Novembro em sociedade
anónima de capitais públicos, com a consequente transferência para a Região
Autónoma dos Açores da totalidade do seu capital social.
3ª - Pelo DL n.º 490/80 a A., EP passou a ter no órgão de gerência, entre um
presidente e três vogais, um vogal eleito pelos trabalhadores e na comissão de
fiscalização, entre os seus três membros, um representante dos trabalhadores.
4ª - A partir de 1989, enquanto foi empresa pública, e até à aprovação do DL n.º
276/2000 e dos novos estatutos anexos, os trabalhadores da A. [Comissão de
Trabalhadores] indicaram representantes seus para integrarem os conselho de
gerência e comissão de fiscalização.
5ª - Os arts. 80° e 82° da CRP estabelecem como um dos princípios da organização
económica-social o da coexistência dos três sectores de propriedade dos meios de
produção: público, privado e cooperativo e social, prevendo-se no art. 89°,
preceito constitucional que verdadeiramente deve ser convocado, a participação
dos trabalhadores na gestão do sector público (princípio da cogestão).
6ª - No que toca ao controle de gestão das empresas do sector público, o art.
54°, n.º 5, alínea f), da CRP, norma introduzida pela Revisão Constitucional de
1982, consagra a eleição dos representantes dos trabalhadores para os órgãos
sociais de empresas pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas como
um direito das comissões de trabalhadores.
7.ª- Diferentemente do suposto na douta decisão recorrida, o DL n.º 260/76, na
sua versão originária em vigor em 1999 e revogada pelo DL n.º 558/99, não
regulava nem previa a existência de representantes dos trabalhadores no conselho
de gerência, prevendo embora que da composição do órgão de fiscalização fizesse
parte um membro indicado pelos trabalhadores da empresa e um revisor oficial de
contas.
8ª - Só dois anos após a Primeira Revisão Constitucional (1982) é que o DL n.º
29/84, de 20 de Janeiro aditou ao art. 8° da referida lei-quadro uma norma (n.º
3) sobre o representante dos trabalhadores no conselho de administração ao mesmo
tempo que continuava a prever a integração de um representante dos trabalhadores
na comissão de fiscalização (art. 10°, n.º 3).
9ª - Porém, todas estas alterações, nomeadamente o aditamento do novo n.º 3 do
art. 8° do DL n.º 260/76, vieram a ser declaradas formalmente inconstitucionais,
com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 117/86.
10ª - O problema fulcral reside na falta de regulamentação legal da cogestão no
que toca às sociedades comerciais de direito privado, sejam elas de capitais
integralmente públicos, de capitais maioritariamente públicos ou controladas por
entes públicos e até mesmo sociedades mistas ou de capitais exclusivamente
privados.
11ª - A propósito da transformação de empresas públicas em sociedades anónimas,
com alienação de uma parte minoritária do capital social a entidades públicas ou
privadas, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 108/88, entendeu que não
era contrária à Constituição tal transformação, devendo as sociedades de
capitais mistos ser reconduzidas ao sector da economia com o qual tivessem maior
“parentesco”, o que permitiu a reprivatização de grande número de empresas
nacionalizadas.
12ª - O DL n.º 558/99 veio operar a revisão do quadro jurídico das empresas
públicas caracterizado pela profunda desactualização da regulamentação de 1976,
considerando dois tipos distintos de empresa pública: as sociedades comerciais
de capitais públicos e as entidades públicas com natureza empresarial (EPE'S).
13ª - Por força do disposto no art. 5° do DL n.º 558/99, não existindo
legislação especial relativamente às empresas públicas das Regiões Autónomas, a
A. regula-se pelo regime supletivo do DL n.º 558/99, que revogou o DL n.º 260/76
(art. 40°, n.º 1).
14ª - O referido artigo 5° foi desaplicado pelo douto Acórdão recorrido, com
fundamento em inconstitucionalidade material, na parte em que revoga
expressamente os normativos do DL n.º 260/76 e dos anteriores estatutos, que
consagravam a participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos
sociais da A., com fundamento na violação dos arts. 89° e 54°, n.º 5, al. f) da
CRP.
15ª - Com o DL n.º 276/2000 o conselho de administração da A. passou a ser
composto por três ou cinco administradores, deixando de prever-se a existência
de um representante dos trabalhadores, não se impondo, embora também não se
proibindo, que um desses administradores fosse escolhido pelos trabalhadores da
A..
16ª - De igual modo deixou de haver conselho fiscal e reconheceu-se a
possibilidade de instituir para a nova sociedade anónima o sistema de fiscal
único, nos termos do DL n.º 26-A/96, de 7 de Março, sem que com isso se
considerasse haver inconstitucionalidade material.
17ª - Tal ausência de norma impositiva não gera qualquer inconstitucionalidade
por acção, diferentemente do que sustenta o Supremo Tribunal de Justiça.
18ª - Foi igualmente desaplicado no douto Acórdão recorrido o art. 12°, n.º 2
dos novos estatutos da A., anexos aos DL n.º 276/2000, na parte em que revoga
tacitamente os normativos do DL n.º 260/76 e dos anteriores estatutos, que
consagravam a participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos
sociais da A..
19ª - Porém, o aludido Acórdão está viciado por um erro de direito manifesto, na
medida em que supõe que se achavam em vigor o n.º 3 do art. 8° e o n.º 3 do art.
10° do DL n.º 260/76 (na redacção introduzida pelo DL n.º 29/84) até à revogação
desse diploma pelo art. 40°, n.º 1, do DL n.º 558/99, quando tais normas foram
declaradas inconstitucionais, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 117/86.
20ª - A tese do Supremo Tribunal de Justiça foi anteriormente sustentada pelo
Provedor de Justiça B. que apresentou um pedido de fiscalização abstracta de
constitucionalidade ao Tribunal Constitucional sobre algumas normas do DL n.º
12/90, de 6 de Janeiro (que transformou a C., EP numa sociedade de capitais
exclusivamente públicos), que não foi objecto de apreciação pelo Tribunal
Constitucional por inutilidade superveniente (Acórdão n.º 152/2001).
21ª - A inexistente regulamentação legal da cogestão no que toca às sociedades
comerciais de direito privado reside na dificuldade em prever formas de
participação dos trabalhadores quando as pessoas colectivas públicas
empresariais têm a forma societária, estando regidas pelo Código das Sociedades
Comerciais, porquanto o modelo legal de órgãos sociais não prevê as
especificidades de um regime de cogestão, limitando-se a disciplinar a situação
em que um trabalhador da sociedade seja designado para exercer cargos sociais,
quanto um regime de cogestão tem de prever, entre outras, regras sobre
responsabilidade destes administradores, a sua forma de eleição e a sua
destituição.
22ª - Não sendo, por isso, possível afirmar que o silêncio dos estatutos da A.
traduz uma violação do art. 89° da Constituição ou que é possível adaptar o
disposto no art. 31° da Lei n.º 46/79 ao modelo societário acolhido pelo DL n.º
276/2000.
23ª - O art. 54°, alínea f), da CRP limita-se a consagrar um direito de natureza
procedimental que, ainda que directamente aplicável, não é imediatamente
exequível, carecendo de mediação legislativa.
24ª - O art. 89° da CRP carece igualmente da mediação do legislador ordinário.
25ª - E se é possível aceitar que o art. 31° da Lei n.º 46/79, carecendo embora
de regulamentação complementar, contém uma regulamentação mínima no que toca às
empresas públicas (hoje, EPE’S), o mesmo já não se poderá dizer face à forma
societária regulada pelo Código das Sociedades Comerciais ou por legislação
comunitária, pelo que, na falta de legislação geral sobre a cogestão nas
sociedades comerciais e no silêncio do DL n.º 276/2000, não é possível à
Comissão de Trabalhadores da A. exigir que haja um administrador representante
dos trabalhadores no respectivo conselho de administração.
26ª - Poderá haver inconstitucionalidade por omissão relativamente à falta de
representantes dos trabalhadores nos conselhos de administração ou nas direcções
das sociedades de capitais públicos, mas não inconstitucionalidade por acção;
uma coisa são os estatutos de uma EP, outra os estatutos de uma sociedade
anónima, ainda que aprovados por decreto-lei, sendo certo que a tal sociedade
anónima se aplica de pleno o disposto no Código das Sociedades Comerciais,
nomeadamente o regime de eleição e destituição dos administradores, a sua
responsabilidade perante a sociedade, sócios e terceiros.
27ª - Na lógica da sua decisão quanto ao conselho de administração, o douto
Acórdão recorrido é manifestamente incoerente ao decidir pela concessão parcial
da revista no que toca à pretensão da Comissão de Trabalhadores da A. em ter um
representante dos trabalhadores no órgão de fiscalização, isto porque depois de
terem sido inconstitucionalizadas, com força obrigatória geral, as normas do n.º
3 do art. 8° e o n.º 3 do art. 10° do DL n.º 260/76, na redacção introduzida
pelo DL n.º 20/84, tornou a vigorar a norma do n.º 5 do art. 10° do DL n.º
260/76 (versão originária) a qual impunha que um dos membros da comissão de
fiscalização fosse indicado pelos trabalhadores da empresa e o art. 30°, n.º 2,
da Lei n.º 46/79, por sua vez, remetia para os estatutos da empresa a indicação
do número de trabalhadores a eleger e o órgão social competente, os quais
previam que um dos membros da comissão de fiscalização seria indicado pelos
trabalhadores da empresa.
28ª - Não se percebendo por que razão o DL n.º 26-A/96, aplicável às sociedades
de capitais públicos, deveria ser acatado in casu, enquanto lei geral, face a
uma lei especial que corporizava um direito constitucional fundamental, no
entender do Supremo Tribunal de Justiça.
29ª - Se um decreto-lei não podia eliminar, na aprovação dos estatutos de uma
sociedade anónima de capitais públicos sucessora de uma antiga empresa pública,
a regra de que um dos membros do conselho de administração tinha de ser
necessariamente um trabalhador, escolhido pelo conjunto de trabalhadores da
empresa, também não poderia criar ex novo um fiscal único revisor oficial de
contas.
30ª - A justeza do entendimento aqui manifestado sai reforçada pela opção do
legislador constante da recente legislação publicada em regulamentação ao Código
do Trabalho (Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho), em que apenas se consagra a
possibilidade de eleição pela comissão de trabalhadores de representantes dos
trabalhadores para os órgãos sociais relativamente às entidades públicas
empresariais, nada se dispondo para as sociedades anónimas de capitais públicos
porquanto a estas se aplica de pleno o disposto no Código das Sociedades
Comerciais.
31ª - Não há, assim, qualquer inconstitucionalidade, devendo o recurso proceder
e ser revogado o douto Acórdão do STJ, na parte impugnada”.
Nas alegações, a Região Autónoma dos Açores apresentou as conclusões que se
seguem:
“1. A alínea f) do n.º 5 do artigo 54.º da Constituição da República é uma norma
não exequível por si mesma, carecendo, por isso, de intervenção legislativa,
como claramente resulta da expressão ‘nos termos da lei’, incluída no final do
preceito, sendo o artigo 89.º da Constituição da República por seu lado, uma
norma programática.
2. Tratando-se de direitos que se encontram sob expressa reserva de lei,
enquanto não forem adoptadas as medidas legislativas necessárias para que o
direito atribuído pela norma constitucional – designadamente a alínea f) do n.º
5 do artigo 54.º – se torne exequível, dela não pode retirar-se, ao contrário do
que, aparentemente, se sustenta no Acórdão recorrido, qualquer pretensão
judicialmente exercitável, dirigida contra empresas abrangidas no âmbito da
disposição constitucional ou contra as entidades que detenham essas mesmas
empresas.
3. Isto equivale a dizer que a alínea f) do n.º 5 do artigo 54.º da Constituição
da República, mesmo tendo presente o disposto nos artigos 17.º e l8.º da Lei
Fundamental, não é susceptível de impor, por si só, quer à A. quer à Região
Autónoma dos Açores, aqui recorrente, na qualidade de accionista única daquela
sociedade, a obrigação de prever e admitir a representação dos trabalhadores nos
seus órgãos sociais, o que só será exigível a partir do momento em que aquela
alínea seja objecto de concretização (ou densificação) por parte do legislador
ordinário.
4. Por outro lado, mesmo que se admita que a alínea f) do n.º5 do artigo 54.º da
Constituição da República já tinha sido objecto de concretização legislativa
através do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril – que aprovou o regime das
empresas públicas e que foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 29/84, de 20 de
Janeiro –, e do Decreto-Lei n.º 490/80, de 17 de Outubro – que aprovou os,
estatutos da A., E.P. – o certo é que tal concretização não constitui matéria
irreversível, não ficando, por isso, o legislador ordinário impedido de a rever
ou, mesmo, de a revogar.
5. Numa sociedade aberta e democrática, não é admissível que o legislador fique,
de forma irreversível, ‘atado’ a soluções legislativas adoptadas em momento
anterior, designadamente em momento em que as circunstâncias eram totalmente
diferentes das actuais, reclamando, por isso, ponderação e soluções específicas.
6. A liberdade de conformação do legislador, que tanto vigora aquando da
concretização do preceito constitucional como, ao contrário do que sustenta o
Acórdão recorrido, aquando da ponderação da alteração/revisão de tal
concretização ‘originária’, permitem, obviamente, a revogação dos diplomas
referidos no artigo anterior, sem que, com isso, se incorra em qualquer
inconstitucionalidade por acção”.
4. A Comissão de Trabalhadores da A., S. A. contra-alegou, concluindo que:
“1. O artº 54°, n° 5, alínea f) da CRP, confere às Comissões de Trabalhadores o
direito de promover a eleição de representantes dos trabalhadores para os órgãos
sociais das empresas pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas, nos
termos da lei;
2. O artº 54°, n° 5, alínea f) da CRP, carece de intervenção do legislador
ordinário, para o tornar exequível;
3. Existe essa concretização da norma constitucional pela lei ordinária, maxime,
pelos artigos 30° e 31º da Lei 46/79, de 12 de Setembro;
4. A Lei 46/79, de 12 de Setembro, teve por objectivo regular a constituição das
Comissões de Trabalhadores;
5. Os art.ºs 30° e 31° da Lei 46/79, de 12 de Setembro, remetem a concretização
do direito dos trabalhadores a estarem representados nos órgãos sociais do
sector empresarial do Estado, para os estatutos das respectivas empresas;
6. Os estatutos da A.-E.P., publicados em anexo ao DL 490/80, de 17 de Outubro,
visando exactamente dar cumprimento ao disposto nos artºs 30° e 31° da Lei
46/79, de 12 de Setembro, consagravam no seu artº 7°, n.º 3 que, um dos vogais
do Conselho de Gerência será o representante dos trabalhadores da empresa, e no
n.º 2 do art. 11º, que um dos três membros do Conselho de Fiscalização deve ser
indicado pelos trabalhadores da empresa;
7. Posteriormente, e do mesmo modo, o n.º 2 do art. 5°, e n.º 3 do art. 10°,
ambos do Decreto Legislativo Regional n.º 2/88/A, de 5 de Fevereiro, vieram
disciplinar a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais da empresa A.;
8. Desde 1989 e até 17 de Agosto de 2000, foram eleitos e nomeados
representantes dos trabalhadores para os órgãos sociais da empresa A., que se
mantiveram em funções até 9 de Dezembro de 2000;
9. Os actuais estatutos da A. SA, aprovados pelo DL 276/2000, de 10 de Novembro,
nada dizem sobre a matéria de participação dos trabalhadores nos órgãos sociais
da empresa;
10. Da mesma forma, o DL 558/99, de 17 de Dezembro, diploma que regula o novo
regime do sector empresarial do Estado, nada refere quanto à participação dos
trabalhadores nos órgãos sociais das empresas pertencentes ao Estado;
11. Todavia, o facto de, quer os actuais estatutos da A. S.A., quer do diploma
que actualmente regula o sector empresarial do Estado, nada preverem em matéria
de participação dos trabalhadores nos seus órgãos sociais, não significa que
tenha sido derrogada a Lei 46/79, que impõe essa participação, nem que tenham
sido derrogados os preceitos constitucionais, em concreto, o art. 89° e o art.
54° n.º 5 al. f), da CRP;
12. Isto apenas significa que quer Constituição, quer a Lei da Comissão de
Trabalhadores, à partida, não estará a ser respeitada;
13. Por tal, o direito constitucionalmente consagrado mantém-se, como não
poderia deixar de ser; da mesma forma se devem manter os estatutos A., que sendo
omissos nesta parte, terão que ser complementados quer pela Constituição, quer
pela Lei n.º 46/79;
Sem prescindir,
14. A simples omissão, nos estatutos da A. S.A., de matéria respeitante à
participação dos trabalhadores nos seus órgãos sociais, por si só, não significa
inconstitucionalidade;
15. Pois, através de uma leitura dos actuais estatutos, conforme à Constituição
e convocados todos os elementos normativos vigentes e, não apenas o concreto
diploma que omite a regulamentação do exercício de um direito atribuído pela
Constituição, desnecessário se torna, o recurso a qualquer juízo de
(in)constitucionalidade;
A não se entender assim, sempre se dirá que,
16. O recurso de constitucionalidade não tem por objecto a decisão judicial em
si mesma, mas apenas na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de
inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional;
17. Não basta que um Acórdão afirme que uma determinada norma é
inconstitucional, para que seja permitido o recurso para o Tribunal
Constitucional;
18. É igualmente necessário que a norma (des)aplicada, tenha interesse para a
causa e que o tribunal, por a considerar inconstitucional, se recuse (ou se deva
recusar) a aplicar;
19. O recurso para o Tribunal Constitucional só se justifica se a resolução da
questão de constitucionalidade for relevante para a decisão da questão de fundo;
20. Ora, no caso sub judice, a(s) norma(s) desaplicada(s) pelo Supremo Tribunal
de Justiça, com fundamento na sua inconstitucionalidade por acção, pouco relevo
apresentam para a resolução do caso sujeito à sua apreciação;
21. Basta ver que, o Tribunal da Relação de Lisboa, lançando mão dos mesmos
preceitos que estão a ser objecto de constitucionalidade, não suscitou qualquer
necessidade de aferição da sua constitucionalidade;
De qualquer modo,
22. A circunstância actual de os trabalhadores da A. não disporem do fundamental
direito de se fazerem representar nos órgãos sociais daquela empresa, de
capitais exclusivamente públicos, tão só se deve a um acto, provindo, ora do
legislador ordinário, ora do Governo Regional dos Açores, com a publicação de
legislação revogatória de leis que anteriormente consagravam aquele direito;
23. Com efeito, a revogação das leis que anteriormente consagravam o direito dos
trabalhadores da A. a estarem presentes e representados nos órgãos sociais
daquela empresa resultou, não de uma inércia, ou desinteresse, por parte do
legislador ordinário - em não adoptar as medidas legislativas necessárias para
conferir plena exequibilidade àquele direito -, mas antes, se deveu, a uma
acção, por parte do mesmo legislador;
24. Daí que, os estatutos da A. S.A., anexos ao DL 276/00, de 10 de Novembro, na
parte em que revogam, expressa (DL 558/99) e tacitamente (estatutos) os
normativos dos DL 260/76, e dos anteriores estatutos, que consagravam a
participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos sociais da A.,
enfermam de inconstitucionalidade por acção, na medida em que infringem os arts.
89° e 54° n.º5, al. f) da CRP (art. 277 da CRP);
25. E, em consequência, de o Tribunal dever recusar a aplicação de normas, face
à sua inconstitucionalidade, devem ser repristinados os preceitos que tais
normas pretendiam revogar;
26. Como tal, devem repristinar-se os arts. 8° n.º 1 e 10° n.º 5, do DL 260/76,
de 8 de Abril, bem como, os arts. 4° n.º 1, al. g); art. 7° n.º 3 e 11 ° ns. 1 e
2 dos estatutos da A., publicados em anexo ao DL 490/80, ou, mais concretamente,
o n.º 2 do art. 5° e n.º 3 do art. 10°, ambos do Decreto Legislativo Regional
n.º 2/88/A, de 5 de Fevereiro;
27. As alegações de recurso não se destinam nem podem ser aproveitadas para
apresentar factos novos”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O Supremo Tribunal de Justiça recusou a aplicação do Decreto-Lei nº 558/99,
de 17 de Dezembro, e dos estatutos da A., aprovados pelo Decreto-Lei nº
276/2000, de 10 de Novembro, com fundamento em inconstitucionalidade, por
violação dos artigos 89º e 54º, nº 5, alínea f), da Constituição da República
Portuguesa (CRP). O primeiro, na medida em que o artigo 40º deste diploma revoga
o Decreto-Lei nº 260/76, concretamente os artigos 8º, nº 1, e 10º, nº 5, que
dispõem sobre a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais de empresas
públicas; os segundos, na medida em que revogam, tacitamente, os estatutos
aprovados pelo Decreto-Lei nº 490/80, de 17 de Outubro, concretamente os artigos
4º, nº 1, alínea g), 7º, nº 3, e 11º, nºs 1 e 2, que prevêem esta mesma
participação.
No presente recurso de constitucionalidade importa decidir se, como defendem as
recorrentes, está em causa o não cumprimento da Constituição por omissão das
medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas
constitucionais invocadas como parâmetro (artigo 283º, nº 1, da CRP); ou se,
como se escreve na decisão recorrida, “não há inconstitucionalidade por omissão,
pois não há omissão das medidas legislativas para tornar exequível a
participação de representantes dos trabalhadores nos órgãos sociais da A., S.A.,
mas antes a publicação de legislação revogatória de leis que já a consagravam”.
É o seguinte o teor das normas constitucionais que o Supremo Tribunal de Justiça
considerou violadas:
“Artigo 89º
(Participação dos trabalhadores na gestão)
Nas unidades de produção do sector público é assegurada uma participação
efectiva dos trabalhadores na respectiva gestão.
Artigo 54º
(Comissão de trabalhadores)
1. (…).
5. Constituem direitos das comissões de trabalhadores:
a) (…).
f) Promover a eleição de representantes dos trabalhadores para os órgãos sociais
de empresas pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas, nos termos da
lei”.
2. Sobre a necessidade de relacionar estas duas normas pronunciou-se já o
Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 415/89 (Diário da República, II Série, de
15 de Setembro de 1989), muito embora o tenha feito perante uma outra redacção
do artigo correspondente ao actual artigo 89º (artigo 90º, nº 3), sem que daí
resulte, no entanto, qualquer alteração quanto à forma de relacionar este artigo
com o 54º, nº 5, alínea f) (assim, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição
Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, anotação ao artigo 54º, ponto
XII). Pronunciou-se nos seguintes termos:
“A alínea f) do artigo 55.º da Constituição [alínea f) do nº 5 do artigo 54º]
dispõe que constitui direito das comissões de trabalhadores «promover a eleição
de representantes dos trabalhadores para os órgãos sociais de empresas
pertencentes ao Estado ou a outras entidades públicas, nos termos da lei».
Este preceito constitucional tem de ser intimamente relacionado com o do n.º 3
do artigo 90.º [artigo 89º], onde se estabelece que «as unidades de produção
pertencentes ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas devem evoluir para
formas de gestão que assegurem uma participação crescente dos trabalhadores», na
medida em que a eleição de representantes dos trabalhadores para os órgãos
sociais das empresas do sector público constitui, no fundo, uma concretização
deste princípio”.
Apesar de se tratar de um direito dos trabalhadores que se inscreve na Parte I,
Direitos e deveres fundamentais, do Título II, Direitos, liberdades e garantias
dos trabalhadores, da CRP e de, consequentemente, gozar do regime e força
jurídica consagrados nos artigos 17º e 18º (Acórdãos nºs 117/86 e 218/89, Diário
da República, I Série, de 19 de Maio de 1986 e de 9 de Março de 1989), o
Tribunal não deixou também de assinalar, naquele mesmo Acórdão, que
“o direito consagrado no artigo 55.º, a1ínea f) [artigo 54º, nº 5, alínea f)],
tem de ser regulado por lei, designadamente para o efeito de determinar quais os
órgãos sociais efectivamente abrangidos e qual o número de representantes dos
trabalhadores a eleger (…)”.
Acolhe-se aqui o anteriormente sustentado no Acórdão do Tribunal Constitucional
nº 90/84 (Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 1985), a propósito
do que se dispõe no artigo 27º, nº 5, da CRP:
“(…) não podendo duvidar-se de que a garantia em causa se inclui nessa categoria
de direitos fundamentais [direitos, liberdades e garantias], haveria,
consequentemente, de beneficiar de todo o respectivo regime (cf. art. 17.º,
ainda da Constituição). Sendo assim – acrescentar-se-ia –, não poderão os
tribunais escudar-se na falta de lei para deixar de reconhecê-la a quem dela
pretenda prevalecer-se: têm a Constituição, pelo que lhes cumprirá, sim,
torná-la efectiva, suprindo a lacuna legal através do recurso aos meios, em
geral, admitidos para tanto (v. g., os do art. 10.º do Código Civil).
A objecção está longe, porém, de ser decisiva e insuperável, como aparenta. É
que, mesmo sem discutir o princípio, tem de reconhecer-se que a possibilidade de
suprimento de omissões legislativas, inclusive em sede de direitos, liberdades e
garantias, pelo modo acabado de indicar, sofre necessariamente limites (sobre o
ponto, cf., nomeadamente, Jülicher, Die Verfassungsbescbeschwerde gegen Urteile
bei gesetzgeberischem Unterlassen, Berlin, 1972, pp. 40 e segs., e entre nós as
formulações cautelosas de Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação
do Legislador, Coimbra, pp. 320 e segs. e 481).
Sofre, desde logo, um limite imposto pela «natureza das coisas», por assim
dizer, e que é o das possibilidades do próprio ordenamento jurídico, no quadro
do qual tem de mover-se o juiz, ou, considerada a questão de outro ângulo, o
limite às possibilidades do próprio poder ou função judicial. Tal sucederá, v.
g., com as omissões ocorrentes no domínio de direitos fundamentais cujo
exercício pressuponha necessariamente uma estrutura organizatório-institucional
mais ou menos complexa, que o legislador ainda não edificou. Posto isto, poderia
logo perguntar-se se não seria justamente esse o caso da garantia do art. 27.º,
n.º 5, da Constituição.
Mas, além do referido, sofre a faculdade de suprimento judicial de omissões
legislativas um outro limite, que é o das situações em que a Constituição deixa,
deliberada e intencionalmente, dependente do legislador – dito de outro modo: em
que remete para o legislador – a efectivação de um certo princípio ou do direito
por este reconhecido. Trata-se de princípios relativamente aos quais, atentas as
suas implicações e a complexidade da sua concretização, o legislador
constitucional entende impor-se uma nova ponderação normativa, complementar da
que ele próprio fez, mas da qual não quis tirar (ou permitir que se tirassem)
logo todas as possíveis consequências. Ou seja trata-se de hipóteses em que,
pelo facto de a concreta conformação do princípio exigir a consideração de
diferentes tópicos ou pontos de vista e uma delicada ponderação de soluções e
resultados, a Constituição comete a respectiva incumbência ao órgão
primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa política de reelaborar e
desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador
constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo,
mas, verdadeiramente, lho reserva. Numa hipótese destas, se por ventura a
matéria respeitar a «Direitos, liberdades, e garantias», o que teremos, pois, é
uma restrição introduzida pelo próprio legislador constitucional, à cláusula
geral da aplicabilidade directa do art. 18.º, n.º 1”.
3. Pressuposta a necessidade de medidas legislativas para tornar exequíveis
aquelas normas constitucionais, importa agora avaliar se, por um lado, tais
medidas existem e, por outro, caso a resposta seja negativa, se tais medidas
legislativas já existiram no ordenamento jurídico, o que se prende directamente
com a questão de saber se, no caso em apreço, se trata de uma questão de
inconstitucionalidade por omissão ou, antes, de inconstitucionalidade por acção
(cf. infra ponto 4.).
3.1. Na falta de legislação especial, já que a Lei nº 58/98, de 18 de Agosto –
Lei das Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais – não se aplica às
empresas das regiões autónomas (artigo 1º), à A., sociedade de capitais
públicos, aplica-se o Decreto-Lei nº 558/99 (artigos 5º e 7º). Este diploma, que
estabelece o regime jurídico do sector público empresarial do Estado e das
empresas públicas, não contempla qualquer norma sobre a participação dos
trabalhadores nos órgãos sociais deste tipo de empresas, não obstante a Lei nº
47/99, de 16 de Junho, que autorizou o Governo a legislar sobre aquele regime,
ter previsto (alínea g) do artigo 3º), quanto à extensão da legislação a
aprovar, o estabelecimento das modalidades e condições da participação dos
trabalhadores na gestão ou no controlo da actividade das empresas (conclui pela
omissão Coutinho de Abreu, “Privatização de empresas públicas e
empresarialização pública”, Miscelâneas, nº 3, p. 73).
Por seu turno, os estatutos da A., aprovados pelo Decreto-Lei nº 276/2000, não
prevêem qualquer disposição sobre aquela participação nos seus órgãos sociais
(assembleia geral e conselho de administração). Devendo destacar-se, ainda, que
a Lei nº 35/2004, de 29 de Julho – diploma que regulamenta a Lei nº 99/2003, de
27 de Agosto, que aprova o Código do Trabalho e revoga a Lei nº 46/79, de 12 de
Setembro (Lei das comissões de trabalhadores) – prevê apenas regras para a
eleição dos representantes dos trabalhadores nos órgãos das entidades públicas
empresariais (artigo 362º), omitindo qualquer referência expressa às outras
empresas que integram o sector empresarial do Estado e, nomeadamente, às
sociedades constituídas nos termos da lei comercial, agora também consideradas
empresas públicas (artigo 3º do Decreto-Lei nº 558/99).
3.2. Porém, anteriormente à entrada em vigor destes diplomas, o Decreto-Lei nº
260/76 (alterado pelos Decreto-Lei nº 353-A/A, de 29 de Agosto de 1977,
Decreto-Lei nº 25/79, de 19 de Fevereiro, Decreto-Lei nº 519-S/79, de 28 de
Dezembro, Decreto-Lei nº 271/80, de 9 de Agosto, Decreto-Lei nº 29/84, de 20 de
Janeiro, e Lei nº 16/90, de 20 de Julho), que estabelece as bases gerais das
empresas públicas, previa a participação dos trabalhadores em órgãos sociais
destas empresas: no conselho geral e na comissão de fiscalização (artigos 8º, nº
1, e 10º, nº 5), segundo a redacção primitiva do diploma; e no conselho de
administração e na comissão de fiscalização (artigos 7º, 8º e 10º), por força
das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 29/84, não obstante o Tribunal
Constitucional ter declarado “a inconstitucionalidade com força obrigatória
geral da norma contida no artigo 1º do Decreto-Lei nº 29/84, de 20 de Janeiro,
na parte em que dá nova redacção aos artigos 8º, nº 3, e 10º, nºs 2 e 3 – quanto
a este último artigo apenas na medida em que abrange o representante dos
trabalhadores –, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, por violação do artigo
57º, nº 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa” (Acórdão nº
117/86, Diário da República, I Série, de 19 de Maio de 1986),
Por outro lado, os estatutos da A., E. P., que fazem parte integrante do
Decreto-Lei nº 490/80, de 17 de Outubro, previam a participação dos
trabalhadores em todos os órgãos sociais da empresa – artigo 4º, nº 1, alínea
g), quanto ao conselho geral, artigo 7º, nº 3, relativamente ao conselho de
gerência, e 11º, nº 2, no que diz respeito à comissão de fiscalização.
Posteriormente e já depois daquela declaração de inconstitucionalidade, a
participação dos trabalhadores da empresa passou a ser no conselho de
administração (artigo 5º, nº 2) e na comissão de fiscalização (artigo 10º, nº 3)
– os órgãos sociais obrigatórios, a partir das alterações, já referidas,
introduzidas pelo Decreto-Lei nº 29/84 –, por força do Decreto Legislativo
Regional nº 2/88/A, de 5 de Fevereiro, que aprova os novos estatutos da A., E.
P.
4. Verifica-se, assim, que, no passado, a lei concretizava, relativamente às
empresas públicas, o direito consagrado no artigo 54º, nº 5, alínea f), da CRP,
regulando “os órgãos sociais efectivamente abrangidos e qual o número de
representantes dos trabalhadores a eleger” (Acórdão do Tribunal Constitucional
nº 415/89, já citado), ao passo que, no presente, a lei é completamente omissa,
no que diz respeito às mesmas empresas públicas.
Do confronto entre o então disposto no Decreto-Lei nº 260/76, no Decreto-Lei nº
490/80 e no Decreto Legislativo Regional nº 2/88/A e o agora consagrado no
Decreto-Lei nº 558/99 e no Decreto-Lei nº 276/2000 resulta que o não cumprimento
dos artigos 54º, nº 5, alínea f), e 89º da CRP se verifica não propriamente por
haver omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis estas
normas constitucionais (artigo 283º da CRP), mas antes porque foram revogadas
disposições legais que tornavam tais normas exequíveis. Com a consequência de as
alterações legislativas ocorridas terem feito emergir uma inconstitucionalidade
por omissão, o que já configura uma questão de inconstitucionalidade por acção,
que este Tribunal pode apreciar em sede de fiscalização concreta da
constitucionalidade (artigo 280º da CRP).
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 509/02 (Diário da
República, I Série, de 12 de Fevereiro de 2003), a propósito da “necessidade de
harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio
dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador”,
“onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e
concreta, de tal sorte que seja possível ‘determinar, com segurança, quais as
medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade’ (Acórdão nº
474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no
grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer
na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a
consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão”.
De resto, já anteriormente se havia sustentado, no Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 39/84 (Diário da República, I Série, de 5 de Maio de 1984), o
seguinte:
“Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e
determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objecto de censura
constitucional, em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas, quando desfaz
o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma
garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca
no plano da própria inconstitucionalidade por acção.
Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa – a
criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica –,
então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a protecção
directa da Constituição. O Estado não pode voltar atrás, não pode descumprir o
que cumpriu, não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. Quando, por
exemplo, em cumprimento do artigo 101.º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa, que ordenava a extinção do regime de colonia, este veio a ser
efectivamente extinto, o Estado não pode, posteriormente, vir a revogar a
extinção da colonia e a restaurar essa figura. Se o fizesse, incorreria em
violação positiva do artigo 101.º da Constituição da República Portuguesa (…).
Existem no nosso ordenamento meios para impedir o legislador de legislar em
certas matérias que lhe estejam vedadas; mas não existem para forçá-lo a
legislar nos casos em que lhe é imposto que o faça. Estas normas da Constituição
têm assim uma eficácia assaz menor do que as outras, dependendo, em última
análise, da boa vontade do legislador ordinário. Todavia, produzem um efeito, ao
menos indirecto, notabilíssimo. Elas prescrevem uma via a seguir à legislação
ordinária; não conseguem constranger juridicamente o legislador a seguir essa
via, mas compelem-no pelo menos a não seguir uma via diferente. Seria
anticonstitucional a lei que dispusesse de maneira contrária à que a
Constituição ordena. E, além disso, uma vez dada execução à norma
constitucional, o legislador ordinário não pode retornar sobre os seus passos
[autor citado, Diritto Costituzionale, 11.ª ed., Milão, 1956. pp. 405-406;
itálico acrescentado].
A questão é tudo menos desconhecida para a doutrina constitucional portuguesa,
onde a solução da inconstitucionalidade é igualmente adoptada.
Assim, J. J. Gomes Canotilho, na sua obra Constituição Dirigente e Vinculação do
Legislador (Coimbra. 1983), após distinguir também vários níveis de relevância
jurídica dos direitos sociais («dimensão subjectiva», «dimensão programática» e
«dimensão igualitária») e depois de afirmar que essa «dimensão subjectiva»
resulta, além do mais, da «radicação subjectiva de direitos através da criação
por lei, actos administrativos, etc., de prestações, instituições e garantias
necessárias à concretização dos direitos constitucionalmente reconhecidos»,
conclui pela irreversibilidade dessa concretização (aliás num enquadramento
teórico mais vasto):
É neste segundo sentido que se fala de direitos derivados a prestações
(assistência social, subsídio de desemprego, etc.) que significam o direito de
judicialmente ser reclamada a manutenção do nível de realização e de se proibir
qualquer tentativa de retrocesso social [ob. cit., p. 374; itálico no original].
No mesmo sentido vai Jorge Miranda, que, num texto tão concludente quanto
prudente – com a particularidade de se referir precisamente a uma hipótese igual
ao caso de que trata o presente acórdão –, escreveu:
Maiores dúvidas provocará a revogação de lei que dê exequibilidade a certa norma
constitucional sem ser acompanhada da emissão de nova lei (v. g. a revogação
pura e simples da lei sobre o serviço nacional de saúde). Haverá
inconstitucionalidade material do acto revogatório em virtude de produzir uma
omissão? Poderá supor-se que sim: o legislador tem, certamente, a faculdade de
modificar qualquer regime legislativo; o que parece não ter é a faculdade de
subtrair supervenientemente a qualquer norma constitucional a exequibilidade que
tenha adquirido [autor citado, Manual de Direito Constitucional, vol. 1, tomo
II, Coimbra, 1981. p. 670; itálico acrescentado] (…).
Impõe-se a conclusão: após ter emanado uma lei requerida pela Constituição para
realizar um direito fundamental, é interdito ao legislador revogar essa lei
repondo o estado de coisas anterior. A instituição, serviço ou instituto
jurídico por ela criados passam a ter a sua existência constitucionalmente
garantida. Uma nova 1ei pode vir alterá-los ou reformá-los, nos limites
constitucionalmente admitidos, mas não pode vir extingui-los ou revogá-los (…).
Se uma lei, que veio dar execução a uma norma constitucional que a exigia,
colmatando assim uma omissão inconstitucional, for revogada por outra, que,
desse modo, repõe a anterior situação de inexecução da norma constitucional e de
omissão inconstitucional, então a revogação ofende directamente a Constituição e
consubstancia uma inconstitucionalidade por acção”.
Na doutrina portuguesa mais recente, Paulo Otero, a propósito dos “principais
mecanismos constitucionais de natureza orgânica e material de efectivação e
garantia do Estado de bem-estar”, destaca, entre os “princípios materiais
resultantes da Constituição e ordenadores do direito ordinário”, “o princípio da
proibição de revogação simples (ou não substitutiva) de norma ordinária
implementadora de preceito constitucional não exequível por si mesmo”,
referindo, expressamente, aquele Acórdão de 1984 (Vinculação e Liberdade de
Conformação Jurídica do Sector Empresarial do Estado, Coimbra Editora, 1998, p.
21 e s. e, especialmente, nota 42); Jorge Pereira da Silva formula,
relativamente ao “poder revogatório para criar ou recriar situações de
inconstitucionalidade por omissão”, o princípio da proibição de recriar omissões
inconstitucionais, defendendo que:
“De facto, não há grandes dúvidas de que a revogação integral de uma lei
constitucionalmente devida acarreta a inconstitucionalidade por acção da própria
lei revogatória. É certo que esta lei só enferma de tal desvalor na medida em
que, fazendo renascer uma situação de incumprimento de um dever específico de
actuação legislativa, está na origem de uma inconstitucionalidade por omissão.
Por outras palavras, embora tenha sido a lei revogatória a desencadear uma
situação de vazio normativo constitucionalmente inadmissível, do ponto de vista
dos valores jurídicos negativos tudo se passa em sentido inverso, assumindo a
inconstitucionalidade da lei revogatória (inconstitucionalidade por acção)
natureza consequente em relação à referida situação de vazio normativo
(inconstitucionalidade por omissão). No entanto, é igualmente verdade que, na
situação em análise, o legislador não está apenas a ‘não fazer algo’ imposto
pela Constituição, como é próprio das omissões legislativas. O legislador está
antes a ‘desfazer’ e, mais precisamente, está a ‘desfazer algo’ que era e é
prescrito pela Constituição. Por isso, a lei revogatória, que consubstancia o
acto de desfazer, não é fiscalizável (enquanto geradora de uma
inconstitucionalidade) por omissão, mas sim por via de acção” (Dever de legislar
e protecção jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa, Universidade
Católica, 2003, p. 245 e ss., especialmente pp. 282 e ss. e 286).
5. A conclusão a que se chega em face do exposto – o artigo 40º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 558/99 e o artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 276/2000, são
inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea f), e
89º da CRP, na medida em que o primeiro revoga os artigos 8º e 10º do
Decreto-Lei nº 260/76 e o segundo revoga, de forma tácita, os artigos 5º e 10º
do Decreto Legislativo Regional nº 2/88/A – em nada é prejudicada pela
circunstância de a empresa pública A., E. P., criada pelo Decreto-Lei nº 490/80,
se ter transformado em sociedade anónima, com a denominação abreviada de A., A.,
S. A., ou A. (cf. artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 276/2000).
Com efeito, não vale aqui o argumento de que quanto às denominadas “sociedades
de capitais públicos”, constituídas em conformidade com a lei comercial e que já
antes integravam o sector empresarial do Estado (cf. os artigo 48º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 260/76 e 1º do Decreto-Lei nº 26-A/96, de 27 de Março, e, para
uma referência a esta realidade, Ferreira de Almeida, Propriedade dos meios de
produção, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1982, p. 20 e
s., e Coutinho de Abreu, loc. cit., p. 64 e s.), não estava, anteriormente ao
Decreto-Lei nº 558/99, prevista qualquer forma de participação dos trabalhadores
nos seus órgãos sociais, o que afastaria, consequentemente, qualquer hipótese de
inconstitucionalidade por acção. Apesar de o disposto no artigo 89º da CRP
abranger “todas as unidades de produção pertencentes ao Estado ou a outras
entidades públicas (regiões autónomas, municípios, etc.), qualquer que seja o
seu estatuto, seja ele o de empresa pública, propriamente dita (organizada nos
termos do Decreto-Lei nº 260/76, de 8-4), seja o de outro tipo de empresa
(empresa de capitais públicos, etc.), seja, mesmo, de serviço administrativo
directo ou indirecto” (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, anotação ao artigo 90º, ponto II, e,
no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 415/89, já citado), a
verdade é que nunca foi editada legislação sobre a participação dos
trabalhadores nos órgãos sociais das sociedades de capitais públicos, muito
embora tenha havido recomendações no sentido de dever ser colmatada tal omissão
(assim, Mário Raposo, “Sobre a intervenção dos trabalhadores nos órgãos sociais
de sociedades de capitais maioritariamente públicos”, Revista do Ministério
Público, Ano 13º, 1992, nº 49º, p. 95 e ss., e, expressamente no sentido da
violação das normas constitucionais, Coutinho de Abreu, Da empresarialidade. As
empresas no direito, Almedina, 1996, p. 159 e ss.). Omissão legislativa que se
tornou ainda mais notória, a partir do momento em que houve a transformação de
empresas públicas em sociedades anónimas, nos termos do disposto no Decreto-Lei
nº 84/88, de 20 de Julho, o que levou mesmo a pedidos de declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de diplomas que procederam a
tais transformações, nomeadamente por violação do disposto nos artigos
correspondentes aos actuais 54º, nº 5, alínea f), e 89º da CRP, (cf. Acórdão nº
415/89, já citado, e 152/2001, Diário da República, II Série, de 17 de Maio de
2001).
E não vale o argumento de que quanto às sociedades de capitais públicos,
constituídas anteriormente ao Decreto-Lei nº 558/99, não estava prevista
qualquer forma de participação dos trabalhadores nos seus órgãos sociais, porque
com a transformação da A., E. P. em A., S. A., em 2000, esta não deixou de ser
empresa pública, à luz do novo regime jurídico das empresas públicas. Com
efeito, segundo o disposto nos artigos 2º, 3º e 23º do Decreto-Lei nº 558/99,
consideram-se empresas públicas as sociedades constituídas nos termos da lei
comercial (…) e as designadas entidades públicas empresariais. As primeiras
passam a integrar o conceito de empresa pública, enquanto as segundas sucedem às
empresas públicas anteriormente reguladas no Decreto-Lei nº 260/76, que as
definia, logo no artigo 1º, como empresas criadas pelo Estado, com capitais
próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, para a exploração de
actividades de natureza económica ou social, tendo em vista a construção e
desenvolvimento de uma sociedade democrática e de uma economia socialista e
empresas nacionalizadas (sobre esta evolução do conceito de empresa pública,
cf., António Pinto Duarte, “Notas sobre o conceito e o regime jurídico das
empresas públicas estaduais”, Estudos sobre o Novo Regime do Sector Empresarial
do Estado, Almedina, 2000, p. 65 e ss., Luís Morais, “As relações entre o Estado
e as empresas públicas na sequência da aprovação do Decreto-Lei nº 558/99, de 17
de Dezembro”, Estudos sobre o Novo Regime do Sector Empresarial do Estado,
Almedina, 2000, p. 91 e ss., e Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial,
vol. I, Almedina, 2002, p. 245 e ss., )
Assim, na medida em que o novo regime jurídico das empresas públicas e os novos
estatutos da empresa pública A., S. A. deixaram de prever a participação dos
trabalhadores nos órgãos sociais deste tipo de empresas há que concluir pela
violação dos artigos 54º, nº 5, alínea f), e 89º da CRP.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional o artigo 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 558/99,
de 17 de Dezembro, enquanto revoga os artigos do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de
Abril, que prevêem a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais de
empresas públicas, por violação do disposto nos artigos 54º, nº 5, alínea f), e
89º da Constituição da República Portuguesa;
b) Julgar inconstitucional o artigo 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 276/2000,
de 10 de Novembro, enquanto aprova os novos estatutos da A., S. A. e revoga os
anteriores, na parte em que prevêem a participação dos trabalhadores nos órgãos
sociais desta empresa pública, por violação do disposto nos artigos 54º, nº 5,
alínea f), e 89º da Constituição da República Portuguesa;
c) Confirmar a decisão recorrida no que ao juízo de inconstitucionalidade
diz respeito.
Custas pela recorrente A., S. A., face à isenção da recorrente
Região
Autónoma dos Açores, fixando-se em 20 ( vinte ) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2006
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira - vencido conforme declaração que junto.
Rui Manuel Moura Ramos – vencido, nos termos da declaração de voto junta
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por não poder concordar com a aplicação ao caso presente do
chamado princípio da proibição do retrocesso, por força do qual se considerou
que o legislador ordinário não teria margem de liberdade para retroceder no grau
de concretização legislativa já alcançado no domínio do que se entendeu ser o
direito dos trabalhadores da empresa em participar na administração da A., SA.
Considero, ainda, seguro que a Constituição, nos seus artigos 54º n.º 5 alínea
f) e 89º, invocados no aresto, não estabelece qualquer regra de natureza
imperativa – ainda que não exequível por si mesma, como ali se diz – da qual
decorra a obrigação de o legislador ordinário manter a participação de
representantes dos trabalhadores na administração daquela empresa. Recordo que a
A., SA resultou da transformação da A., EP, empresa pública regional criada pelo
Decreto-Lei n.º 490/80 de 17 de Outubro, que, por sua vez, resultara da
transformação da A., S.A.R.L., concessionária dos transportes aéreos na Região
Autónoma dos Açores, cujos accionistas eram a D., EP e a Região Autónoma dos
Açores.
Os estatutos da D., EP previam, efectivamente, a participação de representantes
de trabalhadores nos seus órgãos de gestão, designadamente no 'conselho geral'
(dois representantes dos trabalhadores), no 'conselho de gerência' (um
representante dos trabalhadores) e na 'comissão de fiscalização' (um elemento
indicado pelos trabalhadores). Mas, ao impor esta participação, o legislador não
estava a dar 'exequibilidade' aos artigos 54º n.º 5 alínea f) e 89º da
Constituição, pois nem sequer invocou ou, de alguma maneira, fez apelo a tais
preceitos – que, em minha opinião, manifestamente se não aplicam ao caso –,
antes estava a estabelecer uma vinculação primária, aliás, totalmente legítima,
como penso resultar claramente do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei n.º
490/80 de 17 de Outubro e no n.º 2 do artigo 3º dos citados estatutos anexos a
este diploma.
Por outro lado, face à consagração constitucional da Autonomia
Político-Administrativa da Região Autónoma dos Açores, à consequente integração,
no património regional, das empresas públicas regionais, e face à tutela que é
constitucionalmente confiada aos órgãos de governo próprio da Região quanto a
estas empresas – artigo 227º n.º 1 alíneas h) e o) da Constituição –,
afigura-se-me que os diplomas da República que disciplinam genericamente as
bases gerais das empresas públicas e que, por isso, projectariam efeitos sobre o
património regional, não têm (isto é, não podem ter, por a Constituição o
proibir desde a consagração constitucional da autonomia regional) aplicação
imediata, directa, e automática às empresas públicas regionais.
Em meu entender, e em suma, não se verifica a apontada inconstitucionalidade,
pelo que daria provimento ao recurso.
Carlos Pamplona de Oliveira
Declaração de voto
Dissenti do presente julgamento de inconstitucionalidade por
não acompanhar a interpretação que nele é feita do alcance dos parâmetros
constitucionais para o efeito convocados. Assim, e quanto à alínea f) do número
5º do artigo 54º da Constituição, entendo que a consagração do direito aí
previsto é feita, como decorre do seu texto literal, “nos termos da lei”, o que
implica que a exequibilidade do preceito supõe a existência de uma
regulamentação legal “designadamente para o efeito de determinar quais os órgãos
sociais efectivamente abrangidos e qual o número de representantes dos
trabalhadores a eleger”, para utilizar as palavras do Acórdão nº 415/89, deste
Tribunal. Ora é essa inexistência de uma regulamentação legal que constitui a
hipótese de partida do raciocínio do presente acórdão, pelo que não podemos
subscrever a convocação, no presente caso, do preceito contido na alínea f) do
número 5 do artigo 54º da Constituição.
Ocorre porém que o acórdão retira a obrigatoriedade
constitucional de uma participação efectiva dos trabalhadores na gestão da A. do
artigo 89º da Constituição, ao considerar esta empresa uma “unidade de produção
do sector público”, nos termos daquela disposição. E que salienta que terá
existido concretização legal desta garantia institucional precisamente até ao
Decreto-Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro, cujo artigo 40º, nº 1, revogou o
Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, pondo assim termo à previsão legal das
formas de participação dos trabalhadores na gestão prevista neste diploma. É
nesta revogação (e na consequente não previsão da participação dos trabalhadores
na gestão das empresas públicas, tal como definidas no artigo 3º do referido
Decreto-Lei nº 558/99) que o acórdão alicerça a declaração de
inconstitucionalidade.
Não acompanhamos este juízo pelas considerações que brevemente
passamos a enunciar. A Constituição não contém, em nosso entender, um conceito
unívoco de “unidades de produção do sector público” e não vemos que seja
constitucionalmente imposto inserir neste conceito, para efeitos da sua
consideração no âmbito do artigo 89º da Constituição, as sociedades de direito
privado, constituídas nos termos da lei comercial e como tal sujeitas à lógica
daquela ordenação, em que entidades públicas (no caso a Região Autónoma dos
Açores) exerçam uma influência dominante, em virtude, no caso concreto, da
detenção da totalidade do capital. O regime jurídico destas sociedades é hoje o
regime jurídico comum, resultando o seu carácter de “empresa pública” (na
terminologia do Decreto-Lei nº 558/99) tão só da existência dessa influência
dominante. Não está assim constitucionalmente vedado que o legislador considere
que tais empresas possam, precisamente por a sua gestão não obedecer a regras
particulares, de direito público, que concretizem os objectivos específicos que
justificariam a sua inserção no sector público, não relevar deste sector de
propriedade dos meios de produção. Cremos na verdade que é lícito ao legislador
entender que a “mão estadual” em que se encontrariam estas sociedades comerciais
não implicaria necessariamente a sua inserção no sector público, relevante para
efeitos do artigo 89º da Constituição, diferentemente do que sucede com as hoje
designadas “entidades públicas empresariais”, estas sim objecto de um regime
distinto e próprio, herdeiras por isso das empresas públicas a que se referia o
Decreto-Lei nº 260/76 e no âmbito das quais a participação dos trabalhadores na
gestão continua a ser assegurada (vide o artigo 21º, nº 2 da Lei nº 99/2003, de
27 de Agosto, conjugado com o artigo 362º da Lei nº 35/2004, de 29 de Julho).
Importa recordar que, como é geralmente reconhecido (ver, por
exemplo, Eduardo Paz Ferreira, Direito de Economia, Lisboa, 2001, AAFDL, p. 263
e João Pacheco de Amorim, As Empresas Públicas no Direito Português, em especial
as Empresas Municipais, Coimbra, 2000, Almedina, p. 15), o Decreto-Lei nº
558/99, veio operar uma relevante redefinição do conceito de empresa pública,
que implicou um significativo aumento do universo das empresas nele abrangidas.
Neste conceito são hoje incluídas, não só as entidades a que se reportava o
conceito adoptado no artigo 1º do Decreto-Lei nº 260/76 (todas de carácter
institucional, e definidas como as “empresas criadas pelo Estado, com capitais
próprios ou fornecidos por outras entidades públicas, para a exploração de
actividades de natureza económica ou social, de acordo com o planeamento
económico nacional, tendo em vista a construção e desenvolvimento de uma
sociedade democrática e de uma economia socialista”), que passaram a ser
classificadas como “entidades públicas empresariais” (artigos 23º a 34º do
Decreto-Lei nº 558/99), como também as empresas encarregadas da gestão dos
serviços de interesse económico geral (definidas no artigo 19º daquele diploma e
cujo regime específico é cristalizado nos seus artigos 20º a 22º), e ainda todas
as “sociedades constituídas nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou
outras entidades públicas estaduais possam exercer, isolada ou conjuntamente, de
forma directa ou indirecta, uma influência dominante”, em virtude das
circunstâncias elencadas nas duas alíneas do nº 1 do artigo 3º do mesmo diploma
(detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto e direito de designar ou
de destituir a maioria dos membros dos órgãos de administração ou de
fiscalização).
Há-de assim concluir-se que a “participação efectiva dos
trabalhadores na gestão das unidades de produção do sector público” a que se
reporta o actual artigo 89º da Constituição apenas havia logrado exequibilidade,
através de medidas legislativas de carácter geral, como aliás o refere o acórdão
de que dissentimos, para as empresas públicas correspondentes às actuais
“entidades públicas empresariais”, sendo certo que tal participação, como o
acórdão aliás igualmente o reconheceu e como acima referimos, continua a estar,
quanto a elas, prevista.
É certo, por outro lado, que uma concretização pontual deste direito, quanto à
A., se encontrou (até ao Decreto-Lei nº 276/2000) nos estatutos desta empresa
aprovados pelo Decreto-Lei nº 490/80, de 17 de Outubro, e, subsequentemente,
pelo Decreto Legislativo Regional nº 2/88/A, de 5 de Fevereiro. Simplesmente não
cremos que, ao redimensionar o conceito de empresa pública, alargando-o
nitidamente pela inclusão de entidades que não preenchiam os requisitos da
anterior definição legal, o legislador estivesse constitucionalmente obrigado a
prever a “participação efectiva dos trabalhadores na gestão” em unidades de
produção que, correspondendo embora à nova definição de “empresas públicas” (nos
termos do artigo 3º do Decreto-Lei nº 558/99), não hão-de ser consideradas como
integradas no “sector público”, para efeitos do artigo 89º da Constituição, uma
vez que a sua actuação é disciplinada pelas regras do direito privado (o direito
comum) (artigo 7º), com expressa sujeição às normas de concorrência, nacionais e
comunitárias. (No sentido de que as empresas públicas estaduais, tal como
definidas no artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 558/99, não obedecem
necessariamente ao critério de delimitação do sector público (estadual)
estabelecido no artigo 82º, nº 2 da Constituição, veja-se Rui Medeiros, in
Constituição Portuguesa Anotada (de Jorge Miranda – Rui Medeiros), tomo II,
Coimbra, 2006, Coimbra Editora, anotação ao artigo 82º, p. 37).
Independentemente pois da questão de saber se o Decreto-Lei nº
558/99 se aplica ou não (e em que termos) aos sectores empresariais das regiões
autónomas, entendemos que o legislador não está obrigado a concretizar, perante
um significativo alargamento do conceito de empresa pública, requerido além do
mais sobretudo pelas exigências de uma correcta aplicação do direito comunitário
(neste sentido, António Pinto Duarte, “Notas sobre o conceito e o regime
jurídico das empresas públicas estaduais, in Estudos sobre o novo regime
jurídico do sector empresarial do Estado (organização de Eduardo Paz Ferreira),
Coimbra, 2000, Almedina, pp. 61-88, p. 65), a participação dos trabalhadores na
gestão de todas estas empresas, e designadamente na da A..
A não previsão de uma participação dos trabalhadores na gestão
destas empresas (aquelas a que se reporta o artigo 3º do Decreto-Lei nº 558/99)
inscreve-se assim, a nosso ver, na liberdade de conformação do legislador, que
não está constitucionalmente impedido, quando concretiza legislativamente um
preceito da lei fundamental, de, ao alargar o âmbito de um determinado conceito
(no caso o de empresa pública), prever soluções diferenciadas, neste particular,
para as distintas realidades jurídicas que a ele são reconduzidas. Entender o
contrário, e pretender cristalizar ne varietur as formas de participação dos
trabalhadores na gestão de entidades empresariais anteriormente consagradas (por
exemplo, nos estatutos da A.) implicaria, como dissemos, aderir a uma
interpretação do princípio da proibição do retrocesso que na nossa leitura o
texto constitucional não sufraga e que este Tribunal tem rejeitado (veja-se por
exemplo o acórdão nº 25/85 em que se considerou “impensável e, mesmo, aberrante
conceber um Estado manietado por forma a não poder editar legislação,
eventualmente interpretável como “de recuo” desde que isso o exija a prossecução
do bem comum”). Se o legislador não pode abolir de todo a legislação
concretizadora do disposto no artigo 89º, sob pena de inconstitucionalidade, já
não cremos sustentável que lhe está vedado, no contexto de uma redefinição do
conceito de empresa pública em que o seu alcance é significativamente alargado,
reponderar os termos em que concretiza a garantia institucional contida naquele
preceito, limitando aquela concretização a alguns segmentos da realidade
jurídica que passou a ser recondutível àquele conceito. Tal não implicaria nem a
revogação simples (ou não substitutiva) de norma ordinária implementadora de
preceito constitucional não exequível por si mesmo, que alguns autores (Paulo
Otero, em Vinculação e liberdade de conformação jurídica do sector empresarial
do Estado, Coimbra, 1998, Coimbra Editora, p. 21) consideram constitucionalmente
proibida, nem a violação de um princípio da proibição de recriar omissões
constitucionais, que outros erigem como limite ao poder revogatório do
legislador (assim Jorge Pereira da Silva, Dever de legislar e protecção
jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa, 2003, Universidade Católica
Portuguesa, p. 245 e ss., esp. p. 282 e ss. e 286), uma vez que a concretização
legislativa da garantia constitucional se mantém, ainda que eventualmente com um
diferente alcance. O que não cremos sustentável é que a mera alteração
(ampliativa) do conceito de empresa pública, operada pelo Decreto-Lei nº 558/99,
seja suficiente para estender o alcance da mediação legislativa da garantia
constitucional, nela incluindo realidades jurídicas (as empresas públicas a que
se reporta o artigo 3º, nº 1 deste diploma) a que o poder de conformação do
legislador não havia alargado a exequibilidade dada àquele preceito
constitucional.
Em face do que não descortinamos nos actuais estatutos da A. (aprovados pelo
Decreto-Lei nº 276/2000) como no Decreto-Lei nº 558/99 qualquer
inconstitucionalidade, ao não preverem expressamente a participação dos
trabalhadores na gestão. Pelo que concederíamos provimento ao recurso.
Rui Manuel Moura Ramos