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Processo n.º 855/05
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I- A Causa
A. recorreu para este Tribunal do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
fls. 100/103, que decidiu não tomar conhecimento de uma arguição de nulidade – a
que consta de fls. 65 e vº – respeitante a um Acórdão da mesma Relação – o
qual consta de fls. 57/60 – , arguição esta fundada no artigo 379º, nº1, alínea
c) do Código de Processo Penal (CPP).
1. 1. Está na origem do presente recurso o Despacho certificado a fls.204, o
qual condenou o ora recorrente na soma de três (3) UCs, nos termos do artigo
116º, nº1 do CPP, por ter entendido que este, regularmente convocado para
prestar declarações no âmbito de um Inquérito crime a correr termos nos Serviços
do Ministério Público de Loures, se ausentou injustificadamente do local da
diligência, “antes de a mesma ter sido iniciada”, desobedecendo ao dever de se
manter à disposição da autoridade que o convocou até por ela ser desobrigado
(artigo 132º, nº1, alínea a) do CPP).
Deste Despacho recorreu A. para o Tribunal da Relação de Lisboa – constando a
respectiva motivação de fls. 8/10 – que, pelo já referido Acórdão de fls.
57/60, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Deu este Acórdão origem à arguição de nulidade mencionada no item 1. da presente
decisão, tendo o recorrente incluído no final desta o seguinte trecho:
“ […]
Em face destas questões inapreciadas qualquer decisão de manter a condenação em
multa, […] violará sempre o artigo 20º, nºs 4 e 5 da Constituição da República
Portuguesa, o qual se invoca expressamente agora em face do inopinado Acórdão,
imprevisível na sua interpretação da norma sub júdice. […]”
[transcrição de fls.65 vº]
Proferiu então o Exm. Desembargador Relator, o despacho de fls. 68 e vº, não
conhecendo, “por falta de fundamento legal”, dessa arguição. Entendeu-se em tal
despacho que, tratando-se de “[…] nulidade de Acórdão [deveria] ela ser arguida
em recurso, tal o comando do artigo 379º, nº2 do CPP”.
Reagiu a este despacho o ora recorrente arguindo a respectiva nulidade, e
requerendo a submissão dessa arguição à conferência, nos seguintes termos:
“1- A decisão de rejeição da arguição de nulidade aqui em apreço diz respeito a
um Acórdão sobre recurso decidido em conferência;
2- Logo, só os Venerandos Desembargadores que tomaram a decisão cuja nulidade se
arguiu, na sua colegialidade, poderão decidir sobre a mesma;
3-Acresce que a decisão ora em crise não se pronuncia sobre a invocada
inconstitucionalidade interpretativa ali arguida;
4- Omissão de pronúncia que constitui, de per se, uma nulidade;
5- Sendo que o facto de não ser admissível recurso não pode impedir o
conhecimento das nulidades de Acórdão, ou decisão de qualquer tipo;
6- Não sendo essa a interpretação correcta […] da invocada norma do nº2 do
artigo 379º, interpretação essa que viola o direito [de] acesso à justiça
contido no nº1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e, outro
tanto, dos artigo[s] 202º, nºs 1 e 2 e […] 204º da mesma Lei Fundamental;
7- O que expressamente se arguiu […]”
[transcrição de fls. 72]
1.2 Submetida à Conferência, recaiu sobre esta arguição de
nulidade o Acórdão de fls. 100/103, do qual consta, com interesse para o
presente recurso, a seguinte passagem:
“[...] nulidade do Acórdão de18/02/04.
Está em causa uma nulidade de Acórdão. Nos termos do artigo 379º, nº2 do CPP,
ela deve ser arguida em recurso.
Não se aplica[m], neste caso, as regras do artigo 120º do CPP, sabido que a
enumeração das nulidades é taxativa.
Como no caso destes autos não é admissível recurso (cfr. artigo 400º, nº1,
alínea c) do CPP), não tem cabimento conhecer as pretensas nulidades . Com
efeito, a aludida restrição tem como finalidade impedir que o processo se
«arraste» quando estão em causa valores que não justificam sucessiva
reapreciação judicial. E esta opção do legislador não é inconstitucional, antes
traduz uma política processual penal em que o excesso de garantismo é levado a
um limite, reputado razoável.
Assim, estando a decisão de acordo com a lei processual penal, não existe
qualquer inconstitucionalidade.
Neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 17/01/05, incidindo,
precisamente sobre idêntica pretensão do recorrente.
Assim, não se conhece, por falta de fundamento legal para a sua arguição[,]
[d]as nulidades suscitadas pelo recorrente em relação ao Acórdão de 18/02/04.
[…] inconstitucionalidade do não conhecimento das nulidades.
Entende o recorrente que o facto de não ser admissível recurso não pode impedir
o «conhecimento das nulidades do Acórdão, ou decisão de qualquer tipo». E
acrescenta: «[n]ão sendo essa a interpretação correcta, na modesta perspectiva
do recorrente, da invocada norma do nº2 do artigo 379º, interpretação essa que
viola o direito [de] acesso à justiça [,] contido no nº1 do artigo 20º da CRP e,
outro tanto, dos artigos 202º, nº1 e 2 e 204º, da mesma Lei Fundamental».
Como já se referiu […] o exercício dos direitos deve ser levado a efeito dentro
dos parâmetros legais. E […] parâmetros legais já foram acima explicitados.
Como tal, não se vê que perante uma limitação legal que a todos os cidadãos diz
respeito, possa ser post[o] em causa o acesso ao direito e à tutela
jurisdicional efectiva, prevista no artigo 20º da CRP.
[…]
Termos em que:
[…]
2º Se decide pelo não conhecimento, por falta de fundamento legal para a sua
arguição, das nulidades suscitadas pelo recorrente em relação ao Acórdão de
18/02/04.
3º Se decide pela constitucionalidade da interpretação vertida no ponto 2 deste
dispositivo.
[…]”
[transcrição de fls.102/103]
Consta deste Acórdão o seguinte voto de vencido:
“Votei vencido porquanto entendo que a arguida nulidade do Acórdão deveria ser
conhecida atento o disposto no artigo 668º, nº3 do CPC, aplicável ao processo
penal por força do artigo 4º do respectivo Código e porque considero que o
despacho proferido pelo relator padece da nulidade prevista na alínea a) do
artigo 119º do CPP.
[…]”
1.3. Surge então o presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo
da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
explicitando o recorrente o respectivo objecto nos seguintes termos:
“[…] apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no nº2 do artigo 379º
do CPP, com a interpretação feita nos Autos […] de que parâmetros legais que
balizam o exercício aos direitos processuais implicam que a arguição de
nulidades de sentença ou decisão judicial se possa fazer exclusivamente em sede
de recurso, caducando o direito a arguir nulidades se o recurso não for
admissível, uma vez que uma tal interpretação da norma cerceia o direito de, em
caso de inadmissibilidade de recurso, se verem apreciadas questões suscitadas no
processo que, por lapso ou intenção, não tenham sido apreciadas nessa decisão
última;
- tal norma, assim interpretada, viola o disposto nos artigos 20º, nºs1 e 5,
202º, nºs1 e 2, e 204º da CRP;
- a questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressamente nos itens nºs 6
de ambos os requerimentos de arguição de nulidade apresentados[…]”
[transcrição de fls.109/110]
1.3.1. Apresentou o recorrente as respectivas alegações, formulando no final
destas as seguintes conclusões:
“[…]
1- Sendo irrecorrível uma decisão judicial e contendo ela nulidades deve ser o
tribunal que proferiu a decisão a tomar deles conhecimento […];
2- se razão directa se não julgue de atender, também por via da integração de
lacuna existente […], a ser integrada segundo as regras do seu artigo 4º […],
através do nº3 do artigo 668º do CPC;
3- Só nesta interpretação […] a norma do nº2 do artigo 379º do CPP cumpre os
imperativos dos artigos 20º, nºs 4 e 5, 202º, nºs 1 e 2, e 204º da CRP […]”
1.3.2. O Ministério Público, por sua vez, pugnando pela procedência do
recurso, formulou as seguintes conclusões:
“[…]
1- A norma constante do artigo 379º, nº2, do CPP deve ser interpretada em
conformidade com o direito de acesso à justiça dos sujeitos processuais, em
termos de ser admissível a suscitação, perante o tribunal que proferiu a
decisão, de vícios intrínsecos desta, enquadráveis no elenco das nulidades da
sentença, mesmo quando desta se não possa interpor recurso (cessando,
consequentemente, neste caso o ónus de cumular a impugnação da sentença com a
suscitação de invocadas nulidades).
2- termos em que deverá, em conformidade com o preceituado no artigo 80º, nº3,
da LTC, proferir-se a pertinente decisão interpretativa, plenamente suportada
pelo teor e sentido do preceito legal em causa. […]”
II – Fundamentação
2. Está em causa o artigo 379º, nº2 do CPP (“As nulidades da sentença devem ser
arguidas ou conhecidas em recurso […]”), interpretado no sentido de não ser
admissível a suscitação de nulidades da sentença (ou, como aqui sucede, de
acórdão) quando esta não admita recurso. Ou, dizendo o mesmo por outras
palavras, interpretado no sentido de, em situações de irrecorribilidade da
sentença ou acórdão, também não serem suscitáveis nulidades daquela ou deste,
isto perante o próprio tribunal que proferiu a decisão arguida de nula.
É esta, sem dúvida alguma, a interpretação subjacente à decisão impugnada (cfr.
as passagens antes transcritas do Acórdão de fls. 100/103), sendo que o
recorrente invocou, previamente à decisão recorrida (cfr. item 6 de fls. 73), a
desconformidade constitucional da referida norma, quando interpretada nos
precisos termos constantes do Acórdão sob recurso. Estão, assim, plenamente
integrados os pressupostos do artigo 70º, nº1, alínea b) da LTC, sublinhando-se
que a interpretação do artigo 379º, nº2 do CPP em causa na decisão recorrida,
apresenta aquele tipo de vocação de generalidade (expressa, por exemplo, na
formulação: “só se podem invocar nulidades da sentença quando esta é
recorrível”) que, permitindo destacá-la do próprio acto de aplicação, a torna um
objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade reportado a uma norma em
determinada interpretação.
2.1. Tendo isto presente, dir-se-á, no plano das considerações gerais, que a
interpretação em causa, ao não encarar a possibilidade de, através do artigo 4º
do CPP, efectuar uma leitura conjugada dos artigos 379º, nº2 do CPP e 678º, nº3
do Código de Processo Civil (CPC), conforme propugnou o voto de vencido, criou
um regime particularmente limitativo de suscitação de nulidades da sentença em
processo penal, que, assentando comparativamente ao processo civil numa
diferenciação desprovida de qualquer sentido, sempre terá de se considerar
totalmente arbitrário. Não vale, obviamente, enquanto forma aceitável de
argumentação jurídica, dizer, num discurso indisfarçavelmente circular, tão só,
que “[…] o exercício dos direitos deve ser levado a efeito dentro dos parâmetros
legais [,e que esses] parâmetros legais [são os] acima explicitados”, quando do
que se trata é, precisamente, de justificar constitucionalmente a fixação desses
mesmos parâmetros. Da mesma forma, também não valem supostas considerações de
igualdade (“[…] perante uma limitação legal que a todos os cidadãos diz respeito
[…]”), sem a indicação de qualquer fundamento relevante de diferenciação, quando
tais considerações não resistem, desde logo, à comparação com o regime do
processo civil. Basta, com efeito, pensar nas inúmeras decisões da Secção
Criminal do Supremo Tribunal de Justiça apreciando suscitações de nulidades
reportadas aos seus próprios acórdãos – obviamente irrecorríveis –, para se
perceber que tem total sentido efectuar no processo penal uma leitura
compaginada dos artigos 379º, nº2 do CPP e 668º, nº3 do CPC.
2.1.1. Esta interpretação – aquela que acolhe um regime de suscitação de
nulidades da sentença essencialmente idêntico no processo civil e no penal – é,
com efeito, aquela que, em termos de garantia de acesso à justiça dos sujeitos
processuais e mesmo de afirmação do princípio da igualdade, se mostra como a
interpretação conforme à Constituição.
A tal respeito podemos citar na jurisprudência deste Tribunal, contendo
argumentos de constitucionalidade transponíveis para a presente situação, entre
outros, o Acórdão nº 485/00 (disponível, bem como os adiante citados, no sítio
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos) que considerou, face a uma
interpretação em que um pedido de aclaração era visto como precludindo a
suscitação de nulidades da sentença, “[…] constituir a arguição de nulidades
[…], verdadeiramente, o único meio processual de reacção contra determinados
vícios da decisão, consubstanciando, nessa medida, [uma] dimensão da garantia
constitucional de acesso ao direito e aos tribunais [que] não pode […] ser por
via interpretativa restringido ou truncado […]” (cfr., num sentido semelhante, o
Acórdão nº 56/03). Aliás, a tal propósito, ocorre sublinhar que no Acórdão nº
94/01, este Tribunal entendeu constitucionalmente conforme a irrecorribilidade
constante do artigo 400º, nº2 do CPP, mesmo quando o recurso visava
exclusivamente a apreciação de nulidades da sentença, com base no entendimento
de que a existência de reclamação perante o juiz a quo afastava a ideia de se
estar a retirar ao interessado a possibilidade de defesa. Argumento este que o
Tribunal retomou no Acórdão nº 390/04 ao considerar constitucionais limitações
de recorribilidade, estando em causa imputações de nulidade a um acórdão da
relação, por estar “[…] aí garantido o direito de reclamação para apreciação
dessas nulidades para o órgão jurisdicional que exerceu o último grau de
jurisdição”.
Ora, tendo presente estes argumentos, sem esquecer que um regime de
suscitação de nulidades tão restritivo quanto o estabelecido pela decisão
recorrida, nunca se justificaria no processo penal, comparativamente ao regime
existente em processo civil, tendo tudo isto presente, dizíamos, não pode o
Tribunal deixar de afirmar, como sendo a constitucionalmente conforme, a
interpretação do artigo 379º, nº2 do CPP que aceite a suscitação de nulidades de
uma sentença irrecorrível, através de reclamação para o próprio tribunal que
proferiu tal decisão.
2.3. Assim, tendo em conta, como indica o Ministério Público, que a norma em
causa suporta inteiramente esta interpretação e que adoptando-a se afasta o
juízo de inconstitucionalidade ao qual a decisão recorrida, através da opção
interpretativa que tomou, conduziria, justifica-se a prolação de uma decisão
interpretativa, nos termos do artigo 80º, nº3 da LTC, vinculando o Tribunal
recorrido ao entendimento que se expôs como sendo o conforme à Constituição (v.,
neste sentido, entre outros, o Acórdão nº 651/05).
III- DECISÂO
3. Nestes termos, decide-se:
A) Interpretar, nos termos do artigo 80º, nº3 da LTC, o nº2 do
artigo 379º do CPP, no sentido de ser admissível a suscitação, perante o
tribunal que proferiu a decisão, de vícios desta enquadráveis no elenco das
nulidades da sentença, mesmo quando desta se não possa interpor recurso;
B) E, consequentemente, conceder provimento ao recurso e revogar
o Acórdão recorrido, devendo este ser reformado em termos de aplicar o artigo
379º, nº2 do CPP, com a interpretação indicada em A).
Lisboa, 17 de Janeiro de 2006
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira – vencido
conforme declaração que junto.
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido.
Entendo que, apesar de o preceito ter, porventura, sido interpretado da forma
não desejada pelo legislador, o certo é que a regra que aplicou (a de não ser
possível reclamar de acórdão, proferido em recurso, da Relação) não ofende
nenhum princípio constitucional. Aliás, se o Tribunal tem pacificamente
entendido que não ofende a Constituição a regra que impõe limites ao direito de
recurso – conforme o acórdão dá conta –, por maioria de razão se deve entender
que uma norma semelhante quanto à reclamação é igualmente conforme à
Constituição. A menos que se entenda que, ao contrário do que sucede com o
recurso, a reclamação constitui um meio de defesa imposto pela Constituição, o
que a meu ver não é certo, nem, aliás, o acórdão o afirma.
Carlos Pamplona de Oliveira