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Processo n.º 46/06
3ª Secção
Relator. Conselheiro Vítor Gomes
Acordam em conferência, na 3ª Secção, do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:
“1. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro do
despacho de 21 de Dezembro de 2006, do Conselheiro Presidente do STJ que, por
aplicação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal,
indeferiu reclamação de despacho proferido no Tribunal da Relação de Lisboa que
não admitiu recurso para aquele Supremo Tribunal do acórdão que confirmou a
sentença da 2ª Vara Mista da Comarca de Sintra que o condenara, em cúmulo
jurídico, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão pela prática de dois crimes de
corrupção activa, previstos e punidos pelo n.º 1 do artigo 374.º do Código Penal
e de um crime previsto e punido pelo artigo 115.º, com referência aos artigos
1.º, 3.º, n.º 1 e 4.º, n.º 1, alínea g) do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de
Dezembro.
Segundo o requerimento de interposição do recurso, o recorrente pretende ver
apreciada a “constitucionalidade dos art.ºs 400º nº 1, alínea f), e 432º do CPP
quando interpretados no sentido de que para aferir da admissibilidade do recurso
para o STJ, se deve considerar a pena em concreto aplicada e não aquela que
seria abstractamente aplicável”.
O despacho recorrido é do seguinte teor:
“I. O arguido A. interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça
proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso por
ele interposto, confirmando a decisão da 1ª instância que o condenara na pena
única de 4 anos e 6 meses de prisão.
Por despacho do Ex.mo Desembargador Relator, esse recurso não foi admitido, nos
termos dos artºs. 400.º, n.º 1, alínea f), e 432.º, do CPP.
Desse despacho reclama o recorrente, sustentando que, face ao disposto no art.
400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, o recurso é admissível, porquanto deve
atender-se às molduras legais abstractas aplicáveis. Acrescenta que o art.º
400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, na interpretação dada pelo despacho reclamado,
é inconstitucional por violação dos artº.s 20.º e 32.º, n.º 1 da CRP.
II. Cumpre apreciar e decidir.
No caso em apreço, está em causa um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal
da Relação em processo respeitante a um concurso de infracções.
Com efeito, o referido acórdão confirmou a decisão da 1ª instância que condena o
arguido pela prática dos seguintes crimes: dois de corrupção activa, p. e p.
pelo art.º 374.º, n.º 1 do CP e um crime p. e p. pelo art.º 115.º, com
referência aos arts. 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, alínea g) todos do Decreto-Lei
n.º 422/89, de 21/12. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única
de 4 anos e 6 meses de prisão.
Assim sendo, estando em causa um acórdão da Relação proferido em processo
respeitante a um concurso de infracções, face ao disposto no art.º 400.º, n.º 1,
alínea f), 2ª parte do CPP, há apenas de ter “em conta a pena aplicável a cada
um dos crimes”, como nos refere Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo
Penal”, III, 2ª edição, pág. 325, e os acórdãos deste Supremo Tribunal de
Justiça de 16 de Janeiro de 2003, de 13 de Fevereiro de 2003, de 16 de Abril de
2003 e de 22 de Maio de 2003 in CJ, Acs. Do Supremo Tribunal de Justiça, Ano
XXVIII, Tomo I, pgs. 162 e ss. E 186 e ss., Tomo II, p. 163 e ss e 190 e ss.,
respectivamente.
Ora, a nenhum dos crimes abrangido pelo concurso corresponde pena superior a
oito anos.
Hoje a jurisprudência do S.T.J. é neste sentido.
Quanto à alegação de que a interpretação dada pelo despacho reclamado ao art.º
400.º, n.º 1, alínea f), do CPP é inconstitucional, refere-se que as garantias
de defesa do arguido em processo penal não incluem o terceiro grau de
jurisdição, por a Constituição, no seu art.º 32.º, se bastar com um segundo
grau, já concretizado no caso dos autos, aquando do julgamento pela Relação.
E também não se verificou a violação do art. 20.º da CRP, porquanto o direito de
acesso aos tribunais encontra-se bem documentado nos autos, como atrás se disse,
através dom duplo grau de jurisdição.
Não se julga, assim, inconstitucional a norma do art.º 400.º, n.º 1, alínea f)
do CPP.
III. Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.”
3. Ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, é admissível recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos
restantes tribunais que apliquem norma suja constitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo. Por outro lado, é ao recorrente que incumbe a
identificação do objecto do recurso, indicando a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o tribunal aprecie (n.º 1 do artigo 75.º-A da
LTC).
Sucede que a não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não
resultou da aplicação do sentido normativo que o recorrente enuncia no
requerimento de interposição e que foi, aliás, aquele contra o qual, na
reclamação, ergueu a objecção de inconstitucionalidade. Na verdade, o
entendimento de que o acórdão da Relação é irrecorrível não resultou da
conhecida divergência jurisprudencial de interpretação da alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º de que a recorribilidade, por parte do arguido, é função da pena em
concreto aplicada (rectius em concreto aplicável pelo tribunal “ad quem”) e não
daquela que seria abstractamente aplicável face ao tipo legal, como o recorrente
parece supor. Pelo contrário, o que levou à não admissão do recurso, a norma ou
sentido normativo de que resultou a decisão recorrida, foi o de que a pena
aplicável, segundo a moldura penal abstracta de cada um dos crimes por cuja
prática o recorrente foi condenado, não ultrapassa os 8 anos de prisão. É isso
que se afirma expressamente no despacho recorrido e, efectivamente, o limite
máximo da moldura penal (pena abstracta) de qualquer dos crimes pelos quais o
arguido foi acusado e condenado é inferior ao referido limite. Aquela outra
problemática – da determinação da recorribilidade em função do limite máximo da
pena aplicável pelo Supremo Tribunal de Justiça pelo facto de o recurso ser
interposto pelo arguido (ou no exclusivo interesse da defesa) – não foi chamada
para a decisão do caso.
Assim, não correspondendo a dimensão ou sentido normativo da alínea f) do n.º 1,
do artigo 400.º do CPP cuja constitucionalidade se quer ver apreciada (e que foi
a suscitada na reclamação) àquele que constituiu a ratio decidendi do despacho
recorrido, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC decide-se não tomar
conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a
taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.”
2. O recorrente reclamou desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da
LTC, pedindo a sua revogação com os seguintes fundamentos [conclusões da
reclamação]:
“a) Entendeu-se para sustentar a não tomada de conhecimento do recurso
interposto pelo reclamante, e para o que in casu interessa, que o que levou à
não admissão do recurso para o STJ foi que a pena aplicável, segundo a moldura
penal abstracta de cada um dos crimes por cuja prática o reclamante foi
condenado, não ultrapassa os oito anos de prisão.
b) Não concorda o reclamante com tal entendimento porquanto se obnubila o último
segmento do artigo 400°, n° 1, alínea f) do CPP que reza: «[. . . .] mesmo em
caso de concurso de infracções»
c) Ou seja entendeu por bem o legislador na limitação do uso da via recursiva,
que decidiu impor, acautelar que tal seria aplicável mesmo em caso de concurso
de infracções.
d) Assim sendo outra conclusão não é possível retirar que não seja a de que tudo
se continua a remeter para a análise da questão de saber se a pena a ser levada
em consideração, para que possa ser assegurado o direito de recurso, é a pena
aplicável ou a pena em concreto aplicada.
e) Pois que de outro modo não se entenderia a chamada de atenção do legislador
ao referir «[….] mesmo em caso de concurso de infracções».
f) E assim sendo entende o reclamante que é o somatório das penas abstractamente
aplicáveis que deve ser considerada para apreciação da admissibilidade, ou não,
do recurso, sendo que, como resultado desse somatório o limite de 8 anos se
encontra ultrapassado.
g) Só assim não seria se se entendesse que o legislador se exprimiu de forma
medíocre na redacção do artigo 400°, n° 1, alínea f) do CPP, tendo, por exemplo,
dito mais ou menos do que quereria efectivamente dizer.
h) Mas se algo se deve ter como certo será exactamente o contrário uma vez que
nos termos do artigo 9°, n° 3 do Código Civil «Na fixação do sentido e alcance
da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais
acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»
i) Pelo que continua a entender o reclamante que deve ser este entendimento
correcto resultante daquela introdução da expressão «[. . . .] mesmo em caso de
concurso de infracções» no texto do artigo 400° do CPP, ou seja, que a pena a
considerar para se aquilatar da admissibilidade do recurso é a resultante do
somatório das abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes imputados ao
reclamante.
j) E assim sendo, como se entende que é, terá pleno cabimento o então alegado no
sentido de que a regra em matéria de recursos é a da sua ampla admissibilidade –
artigo 399° do CPP uma vez que estando em causa a aplicação de medidas que
afectam (ou podem afectar) direitos, liberdades e garantias mal se compreenderia
que não pudesse haver recurso das decisões que impõem a sua aplicação até à
última instância judicial existente.
k) Sendo a regra a ampla admissibilidade do recurso a norma do artigo 400° do
CPP é uma norma de carácter excepcional;
l) O que implica que a sua interpretação deva ser feita dentro dos estritos
limites que a mesma comporta, entenda-se, cumpre aferir, e no máximo, ao seu
teor literal.
m) E de acordo com aquele teor literal da mesma com clareza se retira que apenas
não é admissível recurso em processos por crime a que seja aplicável pena de
prisão não superior a 8 anos, resultando tal cômputo do somatório das penas
potencialmente aplicáveis ao reclamante e não só de cada uma delas vistas
isoladamente.
n) Ora aplicável significa «que pode aplicar-se» e não o que foi aplicado.
o) A letra da lei não oferece, pois, quaisquer dúvidas quando estatuir, de forma
cristalina, que a irrecorribilidade da alínea f) do artigo 400° do CPP se refere
a «processo crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos».
p) E quando se tratasse de impor uma tão ampla extensão do regime de excepção
importava que tal fosse explicitado de forma inequívoca.
q) Sempre se acrescentando que uma interpretação contrária à aqui defendida, do
artigo 400°, n° 1, alínea f) do CPP, feriria a mesma de inconstitucionalidade
material por violação do artigo 32° n.° 1 da Constituição da República
Portuguesa, apreciação essa de inconstitucionalidade que o reclamante tem o
direito, atento o supra alegado, de ver apreciada.
r) Tornando-se claro que, por imposição constitucional, também o recurso, e a
garantia de acesso ao mesmo, se encontra consagrado como elemento de defesa de
direitos, liberdades e garantias.
s) E aquela interpretação, que aqui não se aceita, estaria também ferida de
inconstitucionalidade material por violação do artigo 20° da Lei Fundamental uma
vez que se limita assim, de forma injustificada, o direito do reclamante ao
acesso aos tribunais e à obtenção de uma tutela plena dos seus direitos,
inconstitucionalidade essa que o reclamante também considera ter o direito de
ver apreciada no presente recurso para o Tribunal Constitucional.
t) Pelo que ocorre o vício de inconstitucionalidade material da interpretação do
artigo 400°, n° 1, alínea f) do CPP, no sentido da irrecorribilidade para o
Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal da Relação, isto por violação
dos artigos 20° e 32° da Constituição da República Portuguesa.
u) Apreciação essa que o reclamante continua a entender ter o direito de ver
apreciada no Tribunal Constitucional porquanto, e correndo o risco de ser
repetitivo, sufraga o entendimento de que a questão da admissibilidade, ou não,
do recurso para o STJ depende, como sobredito, não da moldura penal abstracta de
cada concreto crime que lhe é imputável mas antes do somatório da moldura
abstracta de todos os crimes de que lhe são (foram) assacadas a autoria.
O Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“1- A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2- Na verdade, o reclamante acaba por especificar, no âmbito da presente
reclamação, uma interpretação normativa diversa da que indicou no requerimento
de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – pretendendo fazer
incidir o objecto do recurso sobre um diferente segmento da norma questionada –
o artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo Penal.
3- Reportando-o – já não à ponderação da pena concreta aplicada –, mas antes à
não consideração do somatório das penas abstractas correspondentes aos crimes em
curso.
4- Sendo obviamente inadmissível tal convolação, já que o objecto do recurso se
ficou irremediavelmente no respectivo requerimento de interposição.”
3. A reclamação é manifestamente improcedente.
Toda a argumentação do reclamante vai dirigida a demonstrar a procedência do
recurso (ou a sua sustentabilidade, tendo em conta a fase liminar em que nos
encontramos), esquecendo que o fundamento da decisão sumária não foi ter-se
julgado a questão de constitucionalidade simples ou manifestamente infundada,
mas ter-se considerado que a norma ou o sentido normativo doa alínea f) do n.º 1
do artigo 400.º do Código de Processo Penal que o recorrente identificou no
requerimento de interposição não corresponde àquele que foi aplicado pela
decisão recorrida.
Com efeito, na decisão reclamada decidiu-se não conhecer do recurso de
constitucionalidade por falta de um pressuposto relativo ao seu objecto. E este
entendimento não pode deixar de ser confirmado, porque é exacto que não há
correspondência entre a norma que, segundo o requerimento de interposição do
recurso, o recorrente quer ver julgada inconstitucional e aquela que foi
aplicada pela decisão recorrida. Na verdade, o que no despacho recorrido se
entendeu, o específico sentido normativo extraído da alínea f) do n.º 1 do
artigo 400.º do CPP pelo despacho recorrido e em função do qual o recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça não foi admitido, foi que a admissibilidade do
recurso, mesmo em caso de concurso de crimes, se determina pela pena abstracta
aplicável a cada um dos crimes pelos quais o arguido tenha sido condenado. Ora,
o que o recorrente identificou como objecto do recurso, o que pretendeu submeter
a apreciação de constitucionalidade por parte do Tribunal, foi o entendimento de
que essa recorribilidade se determina em função da pena em concreto aplicada e
não daquela que fosse abstractamente aplicável. Não se trata de mera divergência
de formulação, mas de conteúdos normativos diversos, colocando diferentes
problemas de constitucionalidade.
4. Na reclamação, o recorrente parece ter em vista uma interpretação normativa
diferente daquela que identificou no requerimento de interposição, reportando-a
já não à ponderação da pena concreta aplicada, mas à não consideração do
somatório das penas abstractas aplicáveis aos crimes em concurso. Porém, como
salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, o objecto do recurso fixou-se no
respectivo requerimento de interposição, sendo inadmissível a alteração do
objecto do recurso agora implicitamente pretendida (cf. N.º 2 do artigo 684.º,
aplicável ex vi do artigo 69.º da LTC, conjugado com o n.º 1 do artigo 75.º
desta Lei).
5. Acresce dizer que, mesmo que não houvesse obstáculos de ordem
processual, igualmente se justificaria pôr imediatamente termo ao recurso,
porque a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal
com o sentido aplicado pelo despacho recorrido foi objecto de jurisprudência
reiterada do Tribunal no sentido da sua não inconstitucionalidade (Cfr., por
exemplo, acórdão n.º 490/03, in http://www.tribunalconstitucional.pt).
6. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Março de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício