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Processo n.º 221/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. e B., impugnaram judicialmente, no Tribunal Tributário de Aveiro, a
liquidação de IRS referente ao ano de 1996. A impugnação foi julgada
improcedente, pelo que os impugnantes interpuseram recurso para o Supremo
Tribunal Administrativo.
As alegações apresentadas foram concluídas do seguinte modo:
1° À recorrente foi atribuída pela autoridade de saúde competente, em 14 de
Julho de 1994, a incapacidade permanente de 71%, existente desde há dez anos
atrás, com referência à data de emissão do atestado;
2° A avaliação da incapacidade é um acto administrativo, titulado por atestado
médico, sujeito a recurso hierárquico necessário e a recurso contencioso, mas
não é um mero meio de prova por ser o titulo de uma decisão pré judicial sujeita
a impugnação judicial autónoma sendo certo que os efeitos jurídicos estatuídos
pelo acto de avaliação médica da incapacidade se impõem à administração fiscal
por força do princípio da unicidade da administração directa do Estado, já que
são a expressão da vontade da mesma pessoa colectiva;
3° Assim, nos termos do n° 44 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo
D.L. n.º 215/89, de 1 de Julho, a recorrente goza do direito de isenção de
tributação do IRS, em 50%, quanto aos rendimentos das categorias A e B e, em
30%, quanto ao rendimento da categoria 11, com os limites aí previstos;
4° Na verdade, “o D. L. N.º 202/96, de 23 de Outubro, não é aplicável ao caso
sub judice, pois que, regendo para o futuro, as novas condições que
expressamente estabelece para a quantificação da incapacidade fiscalmente
relevante só operam nos processos de avaliação de incapacidade pendentes à data
da sua entrada em vigor - seu art. 7° e, naturalmente data posterior e nem o
referido diploma legal ou qualquer outro sancionou com invalidade jurídica ou
recomendou se desconsiderassem os certificados de incapacidade até então
emitidos pela autoridade de saúde competente, mediante recurso aos critérios de
determinação de incapacidade fixados pela TNI, aprovada pelo D.L n.º 341/93, de
30.09, e até então em vigor, certificados que, até então também, como foi o
caso, sempre foram aceites quer pela Administração Fiscal, quer pelos Tribunais
- Cf. jurisprudência da 2ª Secção do STA, por todos, o acórdão de 15.12.99,
processo n.º 24.305 “(na esteira da douta declaração de voto do Ex.mo
Conselheiro Alfredo Madureira, consignado no Acórdão da 2ª Secção do Pleno do
S.T.A., processo 0962B/02 de 2711-2002.
5° A circular 1/96 é orgânica e formalmente inconstitucional, pois que “o
Director Geral de Impostos não tem competência para, por meio de circular de
eficácia externa tratar de matérias incluídas na reserva de Lei Fiscal e, por
isso, usurpou os poderes fiscais da Assembleia da República, por violação do
exposto no artigo 165°, n.º 1, alínea i), da Constituição da República
Portuguesa, interpretado no n.º 8, n.º2, alíneas c) e e) da Lei Geral
Tributária”, e, por outro lado, “trata de matéria fiscal por meio de um
regulamento, quando a única forma legal de tratar essa matéria é por meio de Lei
ou Decreto-Lei autorizado, nos termos do n.º 2 do artigo 103° da Constituição da
República Portuguesa”;
6° No caso sub judice, “o Fisco não tomou em consideração uma decisão da
autoridade de saúde competente, que tinha passado de caso decidido ou resolvido,
com a força de caso julgado, pelo que o acto de liquidação impugnado, bem como
as normas em que se baseou, violam o princípio da confiança, ínsito no princípio
do Estado de Direito (art. 2° da Constituição da República Portuguesa). Não
compete ao Fisco invalidar os actos administrativos praticados pela autoridade
de saúde ou privá-los de eficácia”, ainda na esteira do douto parecer do Ex.mo
Senhor Conselheiro Almeida Lopes.
7° Assim, o decidido está inquinado de erro na interpretação e aplicação do
direito, designadamente do art. 44 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado
pelo D.L. 215/89, de 1 de Julho, seus n.ºs 1 e 5; DL n.º 341/93, de 30/09, que
aprovou a Tabela Nacional de Incapacidades, designadamente a alínea c), n.º 5,
das suas Instruções Gerais; alínea a) de Base VII da Lei n.º 6/71, de 8/11, art.
18 da Lei n.º 9/89, de 2/5, e art. 8, n.º I, alínea a), I) do D.L n.º 336/93, de
29 de Setembro; n.º 4 do art. 12 do Estatuto de Benefícios Fiscais; alínea e),
n.º 5, Anexo I, n.º 1 do art. 4 e art. 7 do D.L. 202/96, de 23/10, e n.º 5 do
art. 68° da Lei Geral Tributária; ou, se assim se não entender, sem conceder,
por todas as razões alegadas, sempre a decisão estará inquinada do vício de
inconstitucionalidade, nos termos da alínea i), n.º 1, do art. 165, n.ºs 2 e 3
do art. 103, n.º 8 do art. 112, artigos 2, 71, 12 e 18 da Constituição da
República Portuguesa e, sendo o art. 7, n.º 2, e a alínea e) do n.º 5, Anexo I,
do D.L. 202/96, de 23 de Outubro, na interpretação contida na douta declaração
de vencido do Ex.mo Senhor Conselheiro, inconstitucionais, nos termos do n.º 5
do art. 4 do ETAF, sempre o Tribunal a quo deveria ter recusado a aplicação
dessas normas.
Termos em que, com os de douto suprimento, deverá o presente recurso merecer
provimento e, por efeito, ser declarado nulo o acto de liquidação adicional
impugnado, com as devidas e legais consequências.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 19 de Janeiro de 2005,
entendeu o seguinte:
3 - A primeira questão que os Recorrentes colocam, nas conclusões 1.ª a 3.ª das
suas alegações, é a de pelo facto de ter sido atribuída em atestado médico
emitido em 1994 uma incapacidade permanente de 71 %, à primeira Recorrente, a
administração tributária estar impedida de deixar de considerar essa
incapacidade para efeitos de liquidação de I.R.S. do ano de 1996.
O art. 119.º do C.I.R.S. na redacção vigente tanto em 1996 (ano a que se refere
a liquidação impugnada), como em 1999 (data em que a liquidação foi efectuada),
estabelece o seguinte:
Artigo 119.º
Obrigação de comprovar os elementos das declarações
1 - As pessoas sujeitas a IRS deverão apresentar, no prazo que lhes for fixado,
os documentos comprovativos dos rendimentos auferidos, das deduções e
abatimentos e de outros factos ou situações mencionadas na respectiva
declaração, quando a Direcção-Geral das Contribuições e Impostos os exija.
2 - A obrigação estabelecida no número anterior mantém-se durante os cinco anos
seguintes àquele a que respeitem os documentos.
3 - O extravio dos documentos referidos no n.º 1 por motivo não imputável ao
sujeito passivo não o impede de utilizar outros elementos de prova daqueles
factos.
Do n.º 1 deste artigo resulta inequivocamente que a Administração Fiscal pode
exigir aos sujeitos passivos do I.R.S. a apresentação de documentos
comprovativos de factos ou situações mencionados nas declarações.
Não estabelecia a legislação vigente entre 1996 e 1999 qualquer limitação
específica deste poder da Administração Fiscal de exigir tais documentos
comprovativos, pelo que tal poder apenas poderia ser limitado pelos princípios
constitucionais que devem reger a generalidade da actividade administrativa,
indicados no art. 266.º da C.R.P., cuja violação não foi invocada pelos
impugnantes.
Por outro lado, a situação pessoal e familiar dos sujeitos passivos relevante
para efeitos de tributação é a que se verificar no último dia do ano a que o
imposto respeita, só se excepcionando os casos de falecimento de um dos cônjuges
(art. 14.º, n.º 7, do C.I.R.S., na redacção introduzida pelo art. 24.º, n.º 2,
da Lei n.º 65/90, de 28 de Dezembro, vigente em 1996).
O atestado médico invocado pelos Recorrentes emitido em 1994, não podia,
obviamente, comprovar a existência de uma situação de invalidez no último dia de
1996.
Na verdade, por um lado, as situações de deficiência qualificadas como invalidez
permanente são susceptíveis de evolução, quer no sentido de agravamento quer no
de melhoria. Essa possibilidade de melhoria, está mesmo reconhecida
legislativamente, por forma genérica, na Base XXII, n.º 1, da Lei n.º 2127, de
3-8-1965, no art. 25.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e no art.
63.º do Decreto-Lei n.º 248/99, de 2 de Julho.
Por isso, havendo esta possibilidade de melhoria, é manifesto que um atestado
emitido em 1994 não fornecia qualquer garantia de que em 31-12‑1996 o grau de
invalidez referido no atestado se mantivesse. Consequentemente, não se pode
considerar injustificado que a administração tributária exigisse a comprovação
da manutenção nesta última data do grau de invalidez declarado.
4 - Para além disso, após a data da emissão do atestado referido, o Decreto‑Lei
n.º 202/96, de 23 de Outubro, introduziu alterações à forma de cálculo das
deficiências, relativamente à que resultava do Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de
Setembro, que era aplicado ao tempo em que foi emitido o atestado apresentado
pelo impugnante.
Aquele Decreto-Lei n.º 202/96, constatando que «Face à inexistência de normas
específicas para a avaliação de incapacidade na perspectiva desta lei, tem sido
prática corrente o recurso à Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), aprovada
pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro, perspectivada para a avaliação
do dano em vitimas de acidentes de trabalho e doenças profissionais, de forma a
possibilitar alguma uniformização valorativa a nível nacional» e que era
necessário «no âmbito da avaliação de incapacidade de pessoas com deficiência»,
«proceder à actualização dos procedimentos adoptados, nomeadamente de forma a
melhor adequar a utilização da actual TNI ao disposto na Lei n.º 9/89, de 2 de
Maio» introduziu alterações relativas ao cálculo das incapacidades,
estabelecendo «princípios gerais que devem ser seguidos aquando da utilização da
Tabela Nacional de Incapacidades para a avaliação de incapacidade em deficientes
civis» (n.º 1 do anexo I àquele Decreto-Lei n.º 202/96).
Entre estas especialidades da avaliação de incapacidades para efeitos civis,
inclui-se, precisamente, a que a administração tributária referiu no despacho em
que decidiu a alteração dos elementos declarados pelo impugnante, de na
avaliação da deficiência, quando for susceptível de atenuação total ou parcial,
pela aplicação de meios de correcção ou compensação, o coeficiente de capacidade
arbitrado dever ser correspondente à disfunção residual após a aplicação de tais
meios, sem limites máximos de redução dos coeficientes previstos na Tabela
[alínea e) do n.º 5 do referido anexo].
Tal critério é distinto do que resultava da aplicação da Tabela Nacional de
Incapacidades prevista no Decreto-Lei n.º 341/93 e instruções nela contidas,
pois da alínea c) do seu n.º 5 resultava que «quando a função for substituída,
no todo ou em parte, por prótese, a incapacidade poderá ser reduzida, consoante
o grau de recuperação da função e da capacidade de ganho do sinistrado, não
podendo, porém, tal redução ser superior a 15%» .
No final de 1996, estando-se no âmbito da vigência deste Decreto-Lei n.º 202/96,
era segundo as suas regras que tinha de ser avaliado o grau de invalidez
invocado pelo impugnante e, por isso, não podia bastar para o considerar
demonstrado um atestado emitido num tempo em que eram aplicadas regras
diferentes para cálculo das incapacidades, tornando-se indispensável uma
demonstração de que a fixação da incapacidade se mantinha também à face destas
novas regras, que eram as que vigoravam em 31-12-1996, momento decisivo para
determinação da situação do sujeito passivo relevante para efeitos de I.R.S..
Assim, não tendo o impugnante efectuado tal demonstração de que a incapacidade
se mantinha à face das novas regras, a administração tributária tinha suporte
legal nas normas razão, para não a considerar para cálculo do I.R.S. daquele ano
de 1996.
5 - Não existem aqui quaisquer efeitos de um acto administrativo prejudicial de
fixação da incapacidade que a administração tributária estivesse obrigada a
acatar, designadamente por se ter formado caso decidido ou resolvido.
Desde logo, a existir qualquer obstáculo à actuação da administração tributária
derivado do referido atestado, ele não resultaria da formação do denominado
«caso decidido ou resolvido», pois esse conceito liga-se aos direitos do
administrado impugnar actos administrativos com fundamentos e não aos direitos
da administração revogar os mesmos.
Isto é, pode falar-se de «caso decidido ou caso resolvido» para o administrado,
quando decorreu, sem impugnação, o prazo de recurso contencioso de determinado
acto, como obstáculo a que ele o impugne posteriormente com fundamentos
geradores de anulabilidade, pois, se for invocado fundamento que implique
nulidade ou inexistência, nem mesmo para o administrado existirá qualquer
obstáculo a essa impugnação, isto é, não haverá “caso decidido ou resolvido».
Mas, para a administração a questão do respeito por actos administrativos
anteriores não se coloca sequer em termos de «caso decidido ou resolvido» pois
ela não tem, em regra, o poder de impugnar actos administrativos, como decorre
do art. 46.º do R.S.T.A..
O que ela tem ou não, é a possibilidade de revogar os actos administrativos
possibilidade essa que não tem a ver exclusivamente com a presumível
estabilidade dos actos derivada da falta de impugnação contenciosa por quem tem
legitimidade para tal.
Na verdade, por exemplo, mesmo que não tenha havido impugnação do acto
administrativo e, portanto, se haja formado «caso decidido ou resolvido» para o
administrado, ele pode ser revogado pela administração se for desfavorável aos
interesses dos seus destinatários ou estes dêem concordância à revogação (art.
140.º, n.º 2. do C.P.A.) ou não se verifique qualquer das hipóteses em que é
proibida a revogação (n.º 1 do mesmo artigo).
De qualquer forma, no caso dos actos certificativos, que se limitam apenas a
declarar a existência de uma determinada situação, eles, embora sejam actos
praticados pela administração, em regra, não são sequer considerados actos
administrativos, pois falta-lhes a característica de inovação ou modificação da
ordem jurídica a produção de efeitos numa situação individual e concreta (na
terminologia do art. 120.º do C.P.A.) que é essencial para a existência de um
acto administrativo.
Admite-se, porém, em certos casos, a existência de actos certificativos que são
verdadeiros actos administrativos nos casos em que eles cumulam com a função
certificativa uma função constitutiva.
Tal sucede quando os actos não se limitam a demonstrar que existe uma
determinada situação ou que determinado facto ocorreu, mas atribuem a essa
situação ou facto uma determinada qualificação, que é indispensável para eles
produzirem determinados efeitos jurídicos.
Enquadrar-se-ão nesta categoria os actos de verificação de incapacidades a que
se refere o Decreto-Lei n.º 202/96, que são aí tratados de impugnação
contenciosa (art. 5.º, n.º 3).
Porém, antes deste diploma, não havia qualquer norma que atribuísse aos actos de
verificação de incapacidades, para efeitos de I.R.S., a natureza de actos
constitutivos, isto é, que os considerasse como condição da produção de
determinados efeitos jurídicos, pelo que a qualificação adequada desses actos
seria a de meros actos certificativos.
De qualquer forma, mesmo que se tratasse de actos certificativos constitutivos,
a sua vertente certificativa justificaria um tratamento especial. Na verdade,
tem-se entendido que um requisito essencial dos actos certificativos é a sua
correspondência com a realidade, não podendo eles, se se verificar um erro sobre
a situação que se destinam a certificar, ser tratados como actos válidos, mesmo
que transcorra o prazo legal para a sua impugnação contenciosa com fundamento em
ilegalidade. Seria absurdo que, por exemplo, se por erro se certificasse
falsamente que determinada pessoa concluiu o curso de medicina, ela passasse a
considerar-se como médico após ter decorrido o prazo legal de impugnação
contenciosa, passando a estar legalmente habilitada para praticar actos médicos,
ou que, se, também por erro, se verificasse o «óbito» de determinada pessoa que
continuava viva e se emitisse a respectiva certidão de óbito, ela pudesse
considerar-se juridicamente morta, após o decurso do prazo referido, com a
consequente devolução da sua herança aos inconsoláveis herdeiros e liquidação do
correspondente imposto sucessório pela atenta e implacável Administração Fiscal.
Por isso, no que concerne aos actos certificativos, a correspondência entre o
que se certifica e a realidade deve ser considerada como um elemento essencial
do acto, o que possibilitará a qualificação como nulidade do vício de falta de
correspondência entre o acto e a realidade, de harmonia com o art. 133.º, n.º 1,
do C.P.A.
Isto significa que, mesmo que existisse (e não existia, como se viu), antes do
Decreto-Lei n.º 202/96, um acto certificativo constitutivo relativo à definição
do grau de invalidez, a Administração Fiscal sempre poderia pôr em causa a sua
validade com fundamento na não correspondência entre o certificado e a
realidade, não havendo qualquer «caso decidido ou resolvido» sobre tal matéria.
Na verdade, a força certificativa do atestado referido nos autos, como a de
qualquer outro que certificasse a existência de uma incapacidade que não se
declarou insusceptível de evolução ou correcção, não pode deixar de limitar-se à
comprovação da existência daquela no momento em que a subjacente verificação da
incapacidade foi feita e em momentos anteriores que sejam abrangidos pelo acto
de verificação, mas nunca pode considerar-se certificativa da manutenção
indefinida no futuro da mesma situação de incapacidade.
Assim, mesmo que se atribuísse força certificativa ao referido atestado, com
obrigação de acatamento pela administração tributária, ela limitava-se ao facto
certificado, que era o impugnante ser portador de uma incapacidade permanente em
1994 e nos 10 anos anteriores à data da emissão do atestado, calculada à face
das regras então aplicadas. Porém, como é óbvio, não podia existir força
probatória nem o correlativo dever de acatamento relativamente ao que o mesmo
atestado não certificava, que era que a incapacidade devesse ser fixada no mesmo
grau à face das regras então vigentes para cálculo das incapacidades.
Do exposto conclui-se que, tanto antes como depois do Decreto-Lei n.º 202/96
(bem como do Decreto-Lei n.º 174/97, de 19 de Julho, que o alterou) a
administração tributária pode exigir que a comprovação de todas as incapacidades
invocadas pelos sujeitos passivos de I.R.S. nas suas declarações seja feita com
referência a 31 de Dezembro do ano a que se reporta a declaração, não tendo de
dar relevância, para tal comprovação, a atestados emitidos antes dessa data ou
mesmo emitidos posteriormente que não comprovem a existência dessa incapacidade
nessa data.
Sendo assim, o facto de o Decreto-Lei n.º 202/96 só reger para o futuro (como os
Recorrentes defendem na conclusão 4.ª das suas alegações), não tem qualquer
relevância para afectar a validade do acto praticado, pois era à face deste
diploma que deveria ser aferi da a existência de incapacidade, reportada ao
último dia de Dezembro de 1996.
6 - Os Recorrentes suscitam a questão da inconstitucionalidade da Circular n.º
1/96, que determinou que os serviços da administração tributária exigissem novas
declarações de incapacidade a sujeitos passivos que as tivessem apresentado
antes de 15 de Dezembro de 1995.
No entanto, a solução desta questão não tem qualquer relevo no caso em apreço,
pois, como se referiu, por força do disposto no próprio C.I.R.S., a
administração tributária podia exigir aos contribuintes que pretendessem
usufruir de benefícios fiscais derivados de incapacidades uma declaração
actualizada com referência ao ano a que se reportam os rendimentos.
Por isso, não podendo da hipotética inconstitucionalidade invocada pelos
Recorrentes advir vício do acto impugnado, a questão colocada reconduz-se a uma
questão de inconstitucionalidade abstracta, para cujo conhecimento é competente
o Tribunal Constitucional, em processo próprio (art. 281.º da C.R.P.) e não este
Supremo Tribunal Administrativo.
7 - Os Recorrentes afirmam que a não consideração do atestado emitido em 1994
por uma autoridade de saúde, que consideram constituir um acto administrativo
viola o princípio da confiança, por ter carácter retroactivo.
Ao entender que o critério relevante para determinação de incapacidades é
diferente do que foi seguido ao emitir-se o atestado referido nos autos, a
Administração Fiscal não está a retirar valor probatório àquele atestado, pois
não pôs em dúvida o que nele se declara.
O atestado referido, manteve intacto o seu valor, mas prova aquilo que nele se
diz, o grau de incapacidade existente na data em que ele foi emitido e nos dez
anos anteriores, e não o que nele se não diz (o grau de incapacidade existente
no final de 1996, que é o relevante para o reconhecimento dos benefícios fiscais
relativos ao ano de 1996.
Por outro, lado, pela referida possibilidade de evolução das situações de
incapacidade permanente, não se pode considerar consolidado um direito ao
benefício fiscal no futuro, independentemente da subsistência da situação de
facto de incapacidade.
Isto é, só poderia estar-se perante uma violação do princípio da confiança
decorrente de um hipotético acto administrativo consolidado se a administração
tributária não reconhecesse ao atestado referido, emitido em 1994 e com
referência aos 10 anos anteriores, o valor de provar a incapacidade durante esse
período, mas não há suporte para que se possa gerar, com razoabilidade, na
pessoa cuja incapacidade foi reconhecida naqueles termos, a confiança em que
essa incapacidade viesse a ser eternamente reconhecida no futuro.
Por outro lado, é apenas à avaliação das situações de incapacidade que existam
depois da sua entrada em vigor que se aplica o regime introduzido pelo
Decreto-Lei n.º 202/96, pelo que não se lhe pode imputar natureza retroactiva.
Por isso, não ocorre a inconstitucionalidade invocada pelos Recorrentes. Assim,
não se mostram violadas as normas indicadas pelos Recorrentes.
Consequentemente, foi negado provimento ao recurso.
2. Os impugnantes interpuseram recurso de constitucionalidade nos seguintes
termos:
A. e B., recorrentes no processo à margem referido, inconformados com o, aliás
dou to Acórdão proferido nos autos, dele vêm interpor recurso para o venerando
Tribunal Constitucional.
E, porque o fazem, no primeiro dia útil ao termo do prazo legalmente previsto
para interposição de recurso, requerem sejam emitidas guias para pagamento da
multa que devida for, se o for, nos termos do artigo 145° do C.P.Civil.
Proferido Despacho ao abrigo do artigo 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional,
os recorrentes responderam o seguinte:
A. e B., no processo à margem referido, com a devida vénia, vêm dar cumprimento
ao doutamente ordenado, por despacho de 04 de Abril de 2005, o que fazem nos
termos seguintes:
a) Para efeitos do disposto no artigo 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional,
os recorrentes declaram que o presente recurso é interposto, nos termos da
alínea h) do n.º 1 do artigo 70° da mesma Lei.
b) O fisco não tomou em consideração uma decisão da autoridade de saúde
competente, que tinha passado a caso decidido ou resolvido, com a força de caso
julgado - ou será que a recorrente, e todos os cidadãos, em idênticas
circunstâncias, terão de requerer, todos os anos, a convocação da competente
Junta Médica?!!! -, pelo que o acto de liquidação impugnado, bem como as normas
em que baseou, violam o princípio da igualdade confiança, ínsito no princípio do
Estado de Direito (art. 2° da Constituição da República Portuguesa);
c) A decisão estará inquinada do vício de inconstitucionalidade, nos termos da
alíneas i), n° 1, do art.º 165°, n.º 2 e 3 do art.º 103°, n.º 8 do art.º 112°,
artigos 2°, 12°, 18° e 71º da Constituição da República Portuguesa, sendo o
artigo 7°, n.º 2, e a alínea e) do n.º 5, anexo 1, a que se refere o art. 4°, n°
1, do DL 202/96, de 23 de Outubro, inconstitucionais, nos termos do n° 5 do art.
4° do ETAF;
d) Na douta decisão recorrida, o Venerando Supremo Tribunal Administrativo,
julgando o recurso improcedente, aplicou normas feridas de
inconstitucionalidade, designadamente a Circular 1/96 e o DL n° 202/96, de 23 de
Outubro, como tudo melhor consta das alegações apresentadas pelos recorrentes
junto do Supremo Tribunal Administrativo.
A Relatora proferiu o seguinte Despacho:
Os recorrentes pretendem submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a
Circular n° 1/96 da Direcção dos Serviços do I.R.S. e uma dada interpretação do
artigo 7°, n° 2, do Decreto-Lei n° 202/96, de 23 de Outubro, articulado com a
alínea e) do n° 5 do Anexo I do referido diploma. Quanto à questão relativa à
referida Circular, entendeu assim o tribunal recorrido:
6 - Os Recorrentes suscitam a questão da inconstitucionalidade da Circular n.º
1/96, que determinou que os serviços da administração tributária exigissem novas
declarações de incapacidade a sujeitos passivos que as tivessem apresentado
antes de 15 de Dezembro de 1995.
No entanto, a solução desta questão não tem qualquer relevo no caso em apreço,
pois, como se referiu, por força do disposto no próprio C.I.R.S., a
administração tributária podia exigir aos contribuintes que pretendessem
usufruir de benefícios fiscais derivados de incapacidades uma declaração
actualizada com referência ao ano a que se reportam os rendimentos.
Por isso, não podendo da hipotética inconstitucionalidade invocada pelos
Recorrentes advir vício do acto impugnado, a questão colocada reconduz-se a uma
questão de inconstitucionalidade abstracta, para cujo conhecimento é competente
o Tribunal Constitucional, em processo próprio (art. 281.º da C.R.P.) e não este
Supremo Tribunal Administrativo.
Da fundamentação do acórdão recorrido resulta de modo inequívoco que tal
Circular não foi aplicada nos autos, ou seja, não constitui ratio decidendi das
decisões proferidas. Nessa medida, qualquer juízo que o Tribunal Constitucional
viesse a formular não teria a virtualidade de alterar a decisão recorrida, sendo
desse modo inútil. Não pode, portanto, o Tribunal Constitucional tomar
conhecimento de tal questão.
Em face do exposto, suscita-se a presente questão prévia, ao abrigo do artigo
3°, n° 3, do Código do Processo Civil, aplicável nos presentes autos nos termos
do artigo 69° da Lei do Tribunal Constitucional, notificando-se os recorrentes
para produzirem alegações quanto à questão reportada ao artigo 7° do Decreto-Lei
n° 202/96, de 23 de Outubro.
Os recorrentes apresentaram alegações que concluiram do seguinte modo:
1ª À recorrente foi atribuída pela autoridade de saúde competente, em 14 de
Julho de 1994, a incapacidade permanente de 71%, existente desde há dez anos
atrás, com referência à data de emissão do atestado;
2ª A avaliação da incapacidade é um acto administrativo, titulado por atestado
médico, sujeito a recurso hierárquico necessário e a recurso contencioso, mas
não é um mero meio de prova por ser o título de uma decisão pré judicial sujeita
a impugnação judicial autónoma sendo certo que os efeitos jurídicos estatuídos
pelo acto de avaliação médica da incapacidade se impõem à administração fiscal
por força do princípio da unicidade da administração directa do Estado, já que
são a expressão da vontade da mesma pessoa colectiva;
3ª Assim, nos termos do art° 44 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado
pelo D.L. n.º 215/89, de 1 de Julho, a recorrente goza do direito de isenção de
tributação do IRS, em 50%, quanto aos rendimentos das categorias A e B e, em
30%, quanto ao rendimento da categoria 11, com os limites aí previstos;
4ª Ora, “o D. L. N.º 202/96, de 23 de Outubro, não é aplicável ao caso sub
judice, pois que, regendo para o futuro, as novas condições que expressamente
estabelece para a quantificação da incapacidade fiscalmente relevante só operam
nos processos de avaliação de incapacidade pendentes à data da sua entrada em
vigor - seu art. 7° e. naturalmente. data posterior e nem o referido diploma
legal ou qualquer outro sancionou com invalidade jurídica ou recomendou se
desconsiderassem os certificados de incapacidade até então emitidos pela
autoridade de saúde competente, mediante recurso aos critérios de determinação
de incapacidade fixados pela TNI, aprovada pelo D.L n.º 341/93, de 30.09, e até
então em vigor, certificados que, até então também, como foi o caso, sempre
foram aceites quer pela Administração Fiscal, quer pelos Tribunais - Cf.
jurisprudência da 2ª Secção do STA, por todos, o acórdão de 15.12.99, processo
n.º 24.305 “(na esteira da douta declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Alfredo
Madureira, consignado no Acórdão da 2ª Secção do Pleno do S.T.A., processo
0962B/02 de 2711-2002.
5ª Os recorrentes impugnam, por serem inconstitucionais, o artigo 7°, n° 2 e a
alínea e) do n° 5, Anexo I, do DL 202/96, de 23 de Outubro, já que violam o
princípio da confiança, ínsito no Princípio do Estado de Direito - artigo 2° da
Constituição da República Portuguesa -, entendido aquele princípio como garantia
do direito dos cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites
dela, ordenarem e programarem as suas vidas”.
A entidade recorrida não contra-alegou.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
A
Questão prévia
3. Os recorrentes pretendem submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a
Circular nº 1/96 da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos. Ora, da
fundamentação do acórdão recorrido transcrita supra, em particular do ponto 6,
resulta de modo inequívoco que tal Circular não foi aplicada nos autos, ou seja,
não constitui ratio decidendi das decisões proferidas. Nessa medida, qualquer
juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular não teria a virtualidade
de alterar a decisão recorrida, sendo desse modo inútil.
Não se tomará, portanto, conhecimento do objecto do presente recurso quanto à
aludida Circular, afigurando-se desnecessária a averiguação dos demais
pressupostos processuais do recurso interposto, nomeadamente se as disposições
de tal Circular têm a natureza de normas para efeito do recurso de
constitucionalidade.
B
Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
4. Os recorrentes pretendem, por outro lado, submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional o Decreto-Lei n° 202/96, de 23 de Outubro. Das alegações de
recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, depreende-se que o que os
recorrentes consideram inconstitucional é uma dada interpretação do artigo 7º do
referido diploma, em conjugação com o artigo 5°, alínea e), do Anexo I.
É a seguinte a relação desses preceitos:
Artigo 7°
Entrada em vigor
1 - O presente diploma entra em vigor no último dia do mês seguinte ao da sua
publicação.
2 - O presente diploma aplica-se, com as devidas adaptações, aos processos em
curso.
ANEXO I
Instruções gerais
(...)
5 - Na determinação do valor final da incapacidade devem ser observadas as
seguintes normas gerais, para além e sem prejuízo das que são específicas de
cada capítulo ou número, desde que não contraditórias destas:
(...)
e) Sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela
aplicação de meios de correcção ou compensação (próteses, ortóteses ou outros),
o coeficiente de capacidade arbitrado deve ser correspondente à disfunção
residual após a aplicação de tais meios, sem limites máximos de redução dos
coeficientes previstos na Tabela;
(...)
Os recorrentes afirmam, nas referidas alegações, o seguinte:
INCONSTITUCIONALIDADE NORMATIVA DO DECRETO-LEI N° 202/96, DE 23 DE OUTUBRO
O Fisco invocou o Decreto-Lei n° 202/96, bem sabendo que o seu art. 7°, n° 2,
impede a aplicação retroactiva do novo critério às avaliações de incapacidade
apuradas definitivamente ao abrigo da legislação anterior, pois esse novo
critério somente se aplicava para o futuro e ainda aos processos de avaliação de
incapacidade em curso, o que não era manifestamente o caso do recorrente.
O novo critério de atribuição do grau de deficiência consta da al. e), do n° 5,
do anexo 1, a que se refere o art. 4°, n° 1, do Decreto-Lei n° 202/96, o qual
prescreve o seguinte:
“Sempre que a disfunção possa ser atenuada, no todo ou em parte, pela aplicação
de meio de correcção ou compensação (próteses, ortóteses ou outros), o
coeficiente de capacidade arbitrado deve ser correspondente à disfunção residual
após a aplicação de tais meios, sem limites máximos de redução de coeficientes
previstos na Tabela”. Trata-se de um critério de avaliação da deficiência
diametralmente oposto ao que constava da alínea c), do n° 5, das Instruções
Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n° 341/93,
de 30 de Setembro.
Mas porque os dois critérios são diametralmente opostos e radicalmente
incompatíveis, o legislador quis salvaguardar as avaliações de incapacidade dos
contribuintes decididas ao abrigo da lei anterior. E foi por isso que o n° 2, do
art. 7°, veio dispor que o novo diploma (com o novo critério) se aplica aos
processos (de avaliação de incapacidade) em curso.
Acontece que o Fisco quer, à viva-força, que o novo critério tenha aplicação
retroactiva, de forma a ficarem sem efeito as avaliações de incapacidade feitas
ao abrigo da lei anterior, para que os contribuintes sejam constrangidos a fazer
um novo exame médico de acordo com o novo critério legal.
Mas o que importa reter é que essa norma jurídica, na interpretação que dela
fazem o Fisco e os tribunais fiscais, é inconstitucional por violar o princípio
da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito revisto no art. 2° da
Constituição da República. Assim, é a interpretação normativa que dessa norma
faz o Fisco e os tribunais fiscais que agora ponho em causa.
O princípio da segurança jurídica implica que o Fisco não possa venire contra
factum proprium e mudar a sua interpretação da lei, passando a aplicar
retroactivamente uma interpretação nova e inesperada, assim eliminando
benefícios fiscais já reconhecidos ao contribuinte. Foi isso que o Fisco fez com
o recorrente, pois na Circular refere-se claramente ter havido uma revogação
expressa da interpretação anterior, o que deu origem a um novo critério de
atribuição de deficiência. Mas nem a lei podia impor retroactivamente ao
impugnante uma interpretação oposta da lei anterior que atribuiu um benefício
fiscal. Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Tribunal Constitucional n°
172/00, publicado na 2ª Série do DR de 25.10.2000.
O princípio da confiança jurídica proíbe que a lei vigente ao tempo da avaliação
da incapacidade, e o respectivo critério, sejam revogados retroactivamente por
uma lei nova que altere o critério e extinga o benefício fiscal legitimamente
concedido ao abrigo do critério anterior. A lei nova que imponha critério novo
só pode aplicar-se às avaliações de incapacidade futuras, mas tem de deixar
incólumes as avaliações passadas.
O princípio da confiança jurídica sai violado se uma lei nova, impondo um
critério novo de avaliação da incapacidade, priva um contribuinte do direito
adquirido a ser considerado deficiente para efeitos de IRS, quando esse
contribuinte obteve o reconhecimento do direito ao beneficio fiscal por acto da
autoridade de saúde competente. Por maioria de razão, esse princípio sai violado
quando o direito adquirido do contribuinte for um direito fundamental, como é o
caso dos direitos dos cidadãos portadores de deficiência, nos termos do art.
71º, da CRP.
O princípio da confiança jurídica proíbe que a lei posterior, por meio de um
novo critério de avaliação da incapacidade, venha revogar um acto administrativo
de reconhecimento do direito a um beneficio fiscal praticado pela autoridade de
saúde competente, o qual, por ser constitutivo de um direito, é irrevogável uma
vez decorrido o prazo legal para a revogação dos actos administrativos ilegais.
O princípio da confiança jurídica implica que tenha de prevalecer sobre o
interesse reditício do Estado o interesse do contribuinte deficiente na
manutenção dos benefícios fiscais já atribuídos ou reconhecidos, embora de
pressuposto ainda não verificado, pelo que a lei nova, mediante um novo
critério, não pode desprezar o interesse e a confiança do deficiente na
estabilidade do sistema jurídico e na estabilidade das situações criadas ao
abrigo da lei antiga. Sobre o critério da ponderação de interesses, pode ver-se
Prof. CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 421, e acórdão do Tribunal Constitucional
n° 1204/96, publicado na 2° Série do DR de 22.1.97.
Por todas estas razões, a interpretação normativa que implícita e tacitamente o
Fisco e os tribunais fiscais fizeram do art. 7°, n° 2°, e da alínea e), do n° 5,
do Anexo 1, do Decreto-Lei n° 202/96, de 23 de Outubro, viola o princípio da
confiança ínsito no princípio do Estado de Direito, previsto no art. 2° da CRP,
pelo que o acto de liquidação adicional impugnado é nulo e a decisão judicial
recorrida errada. Finalmente, a interpretação normativa feita pelo Fisco e pelos
tribunais fiscais, mediante a atribuição de efeitos retroactivos às referidas
normas jurídicas, gera inconstitucionalidade sucessiva ou superveniente das
mesmas, nos termos do art. 103°, n° 3, da CRP (revisão constitucional de 1997),
assim como já gerava inconstitucionalidade originária por ser uma
retroactividade intolerável, que afectou de forma inadmissível e arbitrária os
direitos e expectativas legitimamente fundadas do contribuinte (cfr. acórdão do
Tribunal Constitucional n° 410/95, in 2ª Série do DR de 16.11.95). “Sustentar o
contrário significaria admitir que o Estado pudesse restringir materialmente e
com eficácia retroactiva (afrontando, desse modo, as legítimas expectativas dos
particulares) o beneficio fiscal anteriormente conferido” (cfr. acórdão do
Tribunal Constitucional n° 185/2000, publicado na 2ª Série do DR de 27.10.2000).
Ora, sendo o art. 7°, n° 2, e a al. e), do n° 5, do Anexo I, do Decreto-Lei n°
202/96, de 23 de Outubro, na aludida interpretação normativa, inconstitucionais,
deveriam os tribunais fiscais recusar a aplicação dessas normas nessa
interpretação, nos termos do art. 4°, n° 5, do ETAF, e declarar nulo o acto de
liquidação impugnado.
Em conclusão: o Fisco não tomou em consideração uma decisão da autoridade de
saúde competente, que tinha passado a caso decidido ou resolvido, com a força de
caso julgado, pelo que o acta de liquidação impugnado, bem como as normas em que
se baseou, violam o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de
Oireito (art. 2° da CRP). Não compete ao Fisco invalidar os actos
administrativos praticados pela autoridade de saúde ou privá-los de eficácia
(Almeida Lopes)”.
Os recorrentes impugnam uma alegada aplicação retroactiva do diploma em causa,
aplicação retroactiva essa que nunca foi assumida nos autos, nomeadamente na
decisão recorrida. De resto, o Supremo Tribunal Administrativo afirma mesmo que
o referido Decreto-Lei só é aplicável para o futuro.
Mas decorre da argumentação constante das alegações que os recorrentes se
insurgem contra a imposição da avaliação da incapacidade da recorrente em 1996,
para efeito de beneficio fiscal desse ano, quando tal avaliação foi realizada em
1994, tendo então sido a incapacidade da recorrente qualificada como “invalidez
permanente”. É, pois, a interpretação normativa que obriga a nova avaliação que
constitui objecto da impugnação dos recorrentes nos presentes autos. E para
fundamentar tal impugnação, os recorrentes invocam a inconstitucionalidade do
Decreto-Lei n° 202/96, de 23 de Outubro, diploma que contém os critérios dessa
avaliação.
5. O Tribunal Constitucional já apreciou uma questão idêntica à dos presentes
autos. Com efeito, no Acórdão n° 585/03 (www.tribunalconstitucional.pt), o
Tribunal Constitucional apreciou a conformidade à Constituição do artigo 7°, n.º
2, e o anexo I, n.º 5, alínea e), do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro,
tendo concluído pela não inconstitucionalidade da norma então apreciada.
Também no Acórdão nº 137 /03 (www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal
Constitucional apreciou a mesma questão de constitucionalidade, concluindo
igualmente pela não inconstitucionalidade das normas apreciadas (cfr., ainda, o
Acórdão n° 446/04 – www.tribunalconstitucional.pt).
No referido Acórdão n° 585/03, o Tribunal Constitucional entendeu o seguinte:
6. Sobre a questão da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 202/96
já se pronunciou este Tribunal, no seu acórdão n.º 173/03 (publicado no DR, II
Série, de 22 de Maio de 2003), escrevendo-se aí o seguinte:
“(...)
7. A verdade é que em qualquer das duas vias argumentativas se tem como
adquirido aquilo que justamente haveria que demonstrar, ou seja, que a definição
de deficiente acolhida no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Singulares e no Estatuto dos Benefícios Fiscais como ‘aquele que apresente um
grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente,
igual ou superior a 60%’, se apresenta como indissociável dos critérios e
procedimentos que permitem concluir pela verificação do grau de invalidez em
causa. Seria esta indissociabilidade que tornaria extensível às instruções
gerais e específicas, contidas na Tabela Nacional de Incapacidades, de acordo
com as quais se determina o valor da incapacidade, expresso em percentagem, a
reserva de competência legislativa sobre tais matérias à Assembleia da
República.
O argumento não procede, no entanto, por várias razões.
Em primeiro lugar, a afirmação dos recorrentes, aliás indemonstrada, segundo a
qual a definição de deficiente, para efeitos fiscais, como todo aquele que
apresente um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60% teve em
atenção o que no sistema jurídico vigente se traduzia num grau de invalidez
permanente com essa percentagem, não permite concluir que a alteração do sistema
jurídico vigente quanto a este aspecto implique, só por si, uma alteração
daquela definição. Essa conclusão não seria sequer logicamente necessária ainda
que se adoptasse na interpretação das normas onde se contém aquela definição (à
data dos factos, os artigos 44° do Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, e 25° e 80° do Código do Imposto
sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
442-A/88, de 30 de Dezembro) uma orientação subjectivista e historicista,
dificilmente defensável.
Ora, a argumentação dos recorrentes quanto à inconstitucionalidade orgânica só
poderia, eventualmente, proceder, caso se demonstrasse que estas implicam uma
alteração da definição de deficiente para efeitos fiscais, o que justamente não
sucede.
As regras relativas à avaliação da incapacidade, objecto das normas impugnadas,
respeitam a uma matéria completamente distinta dos benefícios fiscais a que se
referem os artigos 27° da Lei n.º 106/88, de 17 de Dezembro, 25° e 80° do Código
do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 442-A/88, de 30 de Dezembro, e autorizados pela referida Lei n.º 106/88) ou
44° do Estatuto dos Benefícios Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de
1 de Julho, emitido ao abrigo da Lei n.º 8/89, de 22 de Abril). Enquanto estas
normas contêm conceitos necessariamente genéricos tendo em vista,
designadamente, a sua aplicação num horizonte temporal longo, as normas
impugnadas, bem como as instruções contidas na Tabela Nacional de Incapacidades,
têm um carácter eminentemente técnico, o que determina, desde logo, que a sua
alteração não dependa essencialmente de decisões valorativas do legislador, mas
de considerações provindas de ciências alheias ao direito. O que poderia
suceder, no limite, é que essas considerações aconselhassem uma alteração da
definição legal de deficiente para efeitos de atribuição de benefícios fiscais
e, nesse caso, mas só nesse caso, seria necessária uma intervenção legislativa
da Assembleia da República, a coberto do disposto nos actuais artigos 103°, n.º
2, e 165°, n.º 1, alínea i), da Constituição.
8. Em segundo lugar, na sequência do que acaba de ser dito e de modo ainda mais
decisivo a argumentação dos recorrentes quanto à inconstitucionalidade orgánica
esquece o objecto próprio das mesmas. Estas como se sabe versam sobre o regime
de avaliação de incapacidades das pessoas com deficiência alterando no seu
âmbito de aplicação as instruções gerais constantes da Tabela Nacional de
Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30 de Setembro. Tais
normas revestem um indubitável carácter técnico como resulta da simples leitura
das instruções gerais constantes do Anexo I ao diploma onde se contêm.”
E depois de se invocar a semelhança da questão de constitucionalidade orgânica,
então em apreciação, com outras já antes apreciadas pelo Tribunal
Constitucional, e de se transcrever parte da fundamentação do acórdão n.º 236/01
(publicado no DR, II Série, de 18 de Julho de 2001), escreveu-se no aresto que
se vem citando:
“Também aqui está em causa ‘a definição de determinados aspectos técnicos de
regime que exprimem apenas um saber no qual o Direito se apoia e que não exige
qualquer decisão valorativa.’ Isto mesmo se reconhece na sentença do Tribunal
Tributário de Viana do Castelo confirmada pelo acórdão recorrido quando nela se
afirma que caso se aceitasse a tese dos recorrentes ‘tudo se passaria como se a
ciência médica não sofresse avanços como se aquilo para que hoje não se conhece
a possibilidade de cura assim viesse a continuar para todo o sempre.’
Não procede assim a invocada inconstitucionalidade orgânica das normas
impugnadas.”
No presente caso, há apenas que reiterar este juízo de inexistência de
inconstitucionalidade orgânica, remetendo para a fundamentação transcrita.
7. Restam, pois, as questões de inconstitucionalidade material, referidas às
normas constitucionais já invocadas no caso do referido acórdão n.º 173/03
(artigos 18° e 71º da Constituição), mas que não chegaram a ser aí convocadas
para a análise, por então apenas se ter posto “ao Tribunal Constitucional uma
questão de inconstitucionalidade orgânica” - questões, essas, que também não
chegaram a ser abordadas nos acórdãos n.ºs 31/01 e 293/02 (não publicados, mas
disponíveis em www. tribunalconstitucional.pt; cfr. também o acórdão n.º
173/2003).
Quanto à suposta retroactividade do regime do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de
Outubro - em vigor a partir do dia 30 de Novembro de 1996, por força do disposto
no n.º 1 do seu artigo 7° (“O presente diploma entra em vigor no último dia do
mês seguinte ao da sua publicação”) -, quando aplicado ao ano fiscal de 1996,
decidiu o acórdão recorrido que não existia tal retroactividade, desde logo,
porque, nos termos do disposto no artigo 13°, n.º 7, do Código do Imposto sobre
o Rendimento das Pessoas Singulares,
“a situação pessoal dos sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é
aquela que se verifica no último dia do ano a que o imposto respeita.
(...) aferindo-se a situação pessoal dos sujeitos passivos de IRS, no caso, a
incapacidade fiscalmente relevante, a 31/12 do ano a que disser respeito,
forçoso é concluir não se mostrar retroactiva a aplicação do D.L. 202/96, pois
que, naquela data, já este se encontrava em vigor, com o que se mostram
respeitados os princípios da legalidade tributária, certeza, confiança,
segurança e protecção das expectativas dos cidadãos, uma vez que estes não podem
legitimamente esperar a imutabilidade das leis, havendo antes que contar com a
sua alteração pois que são instrumentos dinâmicos que visam moldar e regular
situações de vida real, também estas em constante mutação.”
A decisão recorrida afastou, pois, expressamente, qualquer aplicação retroactiva
da norma em questão.
Ora, não existindo, segundo o juízo do Tribunal a quo, aplicação retroactiva das
normas impugnadas, é óbvio que a eventual inconstitucionalidade resultante de
uma dimensão normativa que incluísse tal aplicação retroactiva não pode ser
apreciada no âmbito do presente recurso: por um lado, porque o sentido julgado
inconstitucional não obteve expressão na decisão recorrida, falhando logo um dos
requisitos do recurso de constitucionalidade interposto; por outro lado, porque
uma eventual pronúncia de inconstitucionalidade em relação a essa dimensão
normativa seria de todo irrelevante, na medida em que se não poderia projectar
na decisão recorrida - o que, à luz da natureza instrumental do recurso de
constitucionalidade (cfr. acórdãos n.ºs 208/86 e 275/86, publicados,
respectivamente, no DR, II Série, de 3 de Novembro e de 17 de Dezembro de 1986)
se não pode admitir.
Pode, por outro lado, deixar-se em aberto a questão de precisar os exactos
termos em que a proibição de retroactividade é de aplicar a normas que afectam
apenas benefícios fiscais do tipo dos que estão em causa no presente recurso,
atendendo à sua específica natureza. Na verdade, ainda que se entenda que as
normas em causa vêm impugnadas em si mesmas, e não numa sua dimensão
interpretativa que conduza a uma aplicação retroactiva, é claro que, como
decidiu o tribunal a quo, não se verifica no presente caso qualquer verdadeira
retroactividade, uma vez que, segundo o citado artigo 13°, n.º 7, do Código do
Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, a situação pessoal dos
sujeitos passivos relevante para efeitos de tributação é apenas “aquela que se
verifica no último dia do ano a que o imposto respeita”, encontrando-se nesta
data já em vigor a norma em questão. Ou seja: por força da norma em questão, os
recorrentes sabiam, ou deviam saber, de antemão, que, antes do último dia do ano
fiscal em causa, não podiam formar uma confiança legítima na manutenção do
quadro legal vigente quanto ao apuramento do grau de incapacidade a considerar
para efeitos fiscais designadamente, quanto à consideração ou não dos meios de
correcção ou compensação da disfunção. Por virtude dessa norma, que os deveria
deixar de sobreaviso quanto à eventualidade de alteração do quadro legal, a
frustração de qualquer eventual expectativa que hajam formado na imutabilidade
das leis e com base em certificações médicas obtidas não pode ser considerada
como resultante de uma qualquer aplicação retroactiva da lei constitucionalmente
censurável.
8. Finalmente, importa apreciar a alegada “violação do princípio da salvaguarda
dos direitos e garantias do deficiente (art. 71º da CRP de 1992) e do princípio
da igualdade (art. 13°, n.º 1, da CRP de 1992).”
Quanto a este último, tem de ser liminarmente afastado, nos termos em que foi
invocado, em sede de apreciação da conformidade constitucional de normas, as
quais se aplicam, evidentemente, sem excepções ou restrições: na verdade não
pode estar nesta apreciação em causa o controlo da actuação da Administração
Fiscal, alegadamente selectiva segundo circunstâncias de tempo e lugar, ainda
que, como se referiu na decisão recorrida, “a esse propósito, nada const[e] do
probatório da peça recorrida”. Integrando essas normas, nos termos do artigo 1º
do Decreto-Lei n.º 202/96, “o regime de avaliação de incapacidade dos
deficientes tal como definidos no artigo 2° da Lei n.º 9/89, de 2 de Maio, para
efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua
plena participação na comunidade”, não há, na sua previsão, dois universos
distintos que se possam contrastar para efeito de emitir um juízo de
desigualdade.
Quanto à “salvaguarda dos direitos e garantias do deficiente”, mesmo entendendo
resultar do artigo 71º da Constituição (quer na redacção invocada, quer na
actual) que lhes é devido um tratamento favorável especificamente a nível fiscal
- questão que pode deixar-se em aberto -, é certo que tal não implica a
inconstitucionalidade de qualquer alteração no regime de acesso a esse
tratamento, e, designadamente, das alterações em causa, que se reportaram ao
cálculo da deficiência relevante. Afigura-se, antes, que o que se previu nessa
matéria, pelas normas em causa, integra a vertente positiva dos direitos
reconhecidos constitucionalmente aos cidadãos portadores de deficiência - só
nessa medida se tratando, aliás, “de um direito social propriamente dito” (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed.,
Coimbra, 1993, p. 359, anotação I ao artigo 71º) - e está ao alcance da
competência conformadora, por via legislativa, do Governo.
Assim, as alterações no “regime de avaliação de incapacidade” em nada ofendem
aquele estatuto constitucional, não podendo, pois, as normas impugnadas padecer
de inconstitucionalidade material por essa razão.
A fundamentação do aresto citado agora transcrita é aplicável nos presentes
autos.
É certo que a recorrente invoca no presente recurso a violação do princípio da
confiança, parâmetro de constitucionalidade que não foi invocado expressamente
nos arestos mencionados. No entanto, os fundamentos do Acórdão nº 585/03
transcritos supra dão suficiente resposta à questão que a recorrente agora
suscita, quando afirma não haver, no caso, qualquer expectativa relativa à
imutabilidade das leis que mereça tutela constitucional. Com efeito, a alteração
do quadro legal relativo a isenções ou benefícios fiscais insere-se na definição
da política geral em matéria de impostos que cabe aos órgãos legiferantes fixar
e concretizar. Por outro lado, se estiver em causa uma afectação essencial de um
benefício fiscal justificado pela deficiência do contribuinte, equacionar‑se‑á
não só um problema de confiança mas também directamente de tutela constitucional
de direitos fundamentais. E a tutela da confiança pode impedir a reavaliação de
situações já ocorridas com vista à alteração de efeitos já produzidos. No
entanto, estando em causa a mera avaliação da deficiência do contribuinte para
efeitos de tributação no ano fiscal em que se realiza essa avaliação, nenhuma
expectativa do particular quanto ao regime a aplicar merece tutela, salvo a que
se relaciona com aplicação da lei em vigor, já que a política fiscal é
consabidamente orientada por valores e necessidades variáveis que não podem ser
limitadas por soluções preteritamente vigentes.
Não havendo, pois, qualquer questão nova que deva ser apreciada, conclui-se pela
não inconstitucionalidade das normas impugnadas.
III
Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso quanto à circular n° 1/96;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão
recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade suscitada.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos