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Processo n.º 844/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos foi proferida a seguinte Decisão Sumária:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura como recorrente A., Lda., e
como recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso de constitucionalidade
nos seguintes termos:
A.,LDA., recorrente no processo à margem referenciado, não se conformando com o
decidido no douto Acórdão de 2005.06.22, vem dele recorrer para o Venerando
Tribunal Constitucional, nos termos dos arts. 69° e segs. da Lei do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro.
O presente recurso tem como fundamento as questões de inconstitucionalidade do
art. 1°/4 da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, face às normas e princípios
constitucionais actualmente consagrados nos arts. 13°, 20°, 103° e 165°/l/i) da
CRP (v. art. 70°/l/b) da LTC).
As referidas questões de inconstitucionalidade foram suscitadas, além do mais,
nos números 3 a 7 e conclusão 3ª das alegações apresentadas em 2003.10.21 pela
ora recorrente no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa.
O presente recurso deverá ser processado como os de agravo, com subida imediata
e efeito suspensivo (v. arts. 102° e 105° da LPTA; cfr. art. 78° da LTC).
E, porque está em tempo, requer a sua admissão.
Cumpre apreciar.
2. Verifica-se que a recorrente interpôs o presente recurso de
constitucionalidade do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 22 de Junho
de 2005.
No entanto, a recorrente indica como peça processual da qual consta a suscitação
da questão de constitucionalidade durante o processo as alegações de recurso
para o Tribunal Central Administrativo.
Ora, tendo sido interposto recurso do acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo, a suscitação da questão de constitucionalidade perante o
Tribunal Central Administrativo não permite dar por verificado o pressuposto
processual do recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal
Constitucional consistente na suscitação durante o processo da questão de
constitucionalidade normativa (artigo 72°, nº 2, da Lei do Tribunal
Constitucional).
No entanto, a recorrente, a fls. 471, suscitou a inconstitucionalidade do artigo
1°, nº 4, da Lei n° 1/87, de 6 de Janeiro, perante o Supremo Tribunal
Administrativo.
Assim, não obstará tal facto a que se aprecie tal questão se se verificarem os
demais pressupostos do recurso interposto.
3. Decorre dos autos que a recorrente sustenta que os actos de liquidação do
encargo de compensação por aumento da área de volumetria são nulos. É o
fundamento normativo da decisão que considerou que tais actos são meramente
anuláveis que a recorrente pretende impugnar no presente recurso de
constitucionalidade.
O Supremo Tribunal Administrativo na decisão recorrida entende o seguinte:
4. Como vem realçado nos autos, o Pleno deste STA (e mesmo o Plenário deste
Tribunal) já se tem pronunciado sobre a questão.
Em termos coincidentes aos fixados no acórdão recorrido.
E tendo o ora relator subscrito a posição que fez vencimento, não se encontram
razões para alterar tal posição.
Vejamos então.
Como é sabido e é inquestionável, o acto nulo (e não simplesmente anulável)
permite impugnação contenciosa a todo o tempo, independentemente do prazo.
Assim, o direito ao recurso contencioso (no caso, impugnação judicial) não terá
caducado se estivermos perante um acto nulo.
Será a hipótese dos autos?
Pois bem.
Concordamos que os actos que ferem princípios constitucionais são nulos.
Mas não todos.
Na verdade, só aqueles que contendem com o núcleo duro de princípios
fundamentais.
É o que dispõe a al. d) do n° 2 do art. 133° do CPA, que dispõe:
“São, designadamente, actos nulos:
“…
“Os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”.
Que, na nossa óptica, são aqueles que contendem com os direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos.
Mas já não com aqueles que contendam com o princípio da legalidade tributária.
Tais actos, violadores do dito princípio da legalidade tributária, são
anuláveis, mas não nulos.
Assim, não podem eles ser impugnados a todo o tempo, mas só nos prazos
previstos nas leis ordinárias adequadas.
No sentido ora exposto, pode ver-se o Acórdão deste STA de 9/10/96 (rec. n°
20.873) - in Ap. DR de 28/12/98, pp. 2843 e ss.
Escreveu-se:
“O acto que aplica norma interna desconforme àqueles direitos (constitucional ou
comunitário) não é nulo, antes está viciado por erro nos pressupostos de
direito, que integra a dita violação de lei, causa de mera anulabilidade”.
É que uma coisa é o vício do acto, outra, diversa, o vício da norma.
Como se escreve no Acórdão deste STA - Pleno - de 26/6/95, in Ac. Dout. 409‑84:
“Além, uma norma ferida de morte, de nulidade, que os tribunais têm de ignorar;
aqui, um acto administrativo, fazendo aplicação de uma norma no errado
pressuposto da sua validade, da sua existência ou relevância jurídica, e que
integra o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito ...
causa de mera anulabilidade”.
Na verdade, pese embora a nulidade, cominada pela lei, da deliberação que serviu
de suporte ao acto de liquidação - vide art. 1º, n° 4, da Lei n° 1/87, de 6/1 -
a verdade é que este (o acto de liquidação) não é nulo mas anulável.
Como repetidamente se tem escrito nesta Secção de Contencioso Tributário, a
própria nulidade do acto normativo, ou mesmo a sua inexistência, não implica a
nulidade do acto de liquidação.
Trazemos aqui à colação o acórdão do Plenário deste Supremo Tribunal de
7/4/2005, para cuja ampla fundamentação remetemos.
Sendo o acto impugnado anulável, que não nulo, o acórdão recorrido não merece
censura.
Verifica-se que o Supremo Tribunal Administrativo considerou que, não obstante a
“deliberação que serviu de suporte ao acto de liquidação” ser nula, de acordo
com o artigo 1°, n ° 4, da Lei n ° 1/ 87, de 6 de J aneiro , o acto de
liquidação é meramente anulável, nos termos do artigo 133°, nº 2, alínea d), do
Código do Procedimento Administrativo.
A recorrente não contesta que a deliberação subjacente ao acto de liquidação
seja nula. O que pretende é que também seja considerado nulo o próprio acto de
liquidação do aludido encargo de compensação.
No entanto, apenas impugnou na perspectiva da constitucionalidade a norma do
artigo 1°, nº 4, da Lei n° 1/87, de 6 de Janeiro.
Esta norma, como se demonstrou, fundamenta, na perspectiva do tribunal a quo, a
nulidade da deliberação que fundamenta o acto de liquidação.
O vício deste acto (do acto de liquidação) decorre, de acordo com o Supremo
Tribunal Administrativo, de uma interpretação do artigo 133°, nº 2, alínea d),
do Código do Procedimento Administrativo, segundo a qual os actos que violem o
princípio da legalidade tributária são meramente anuláveis.
Esta dimensão normativa não foi impugnada pela recorrente no presente recurso de
constitucionalidade.
Desse modo, a impugnação da norma do artigo 1°, nº 4, da Lei n° 1/87, de 6 de
Janeiro, não se reporta ao fundamento da decisão recorrida, já que a recorrente
não pretende impugnar a decisão na parte em que considera a deliberação nula,
mas sim a decisão na parte em que considerou o acto de liquidação anulável.
O objecto do presente recurso não pode, pois, prescindir da norma do artigo
133°, nO2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo, já que este é a
ratio decidendi da decisão recorrida.
No entanto, a recorrente não impugnou essa norma.
Assim, qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular não teria
a virtualidade de alterar a decisão recorrida, sendo desse modo inútil.
Não se tomará, portanto, conhecimento do objecto do presente recurso.
4. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente
recurso.
A recorrente vem agora reclamar, ao abrigo do artigo 78º‑A, nº 3, da Lei do
Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
A., LDA., recorrente no processo à margem referenciado, não se conformando com a
douta decisão sumária, de 2005.11.08, vem dela reclamar para a conferência, nos
termos do disposto no art. 78°-A da LTC, e com os fundamentos seguintes:
1. Em 2004.05.24, a ora reclamante apresentou requerimento de interposição de
recurso para o Pleno do Venerando Supremo Tribunal Administrativo (STA), do
Acórdão de 2005.05.11, do Tribunal Central Administrativo Sul, com fundamento em
oposição quanto ao decidido no Acórdão do STA, de 1999.03.02, proferido no Proc.
22434 e publicado em AD (STA) 454/1243, tendo apresentado as respectivas
alegações em 2004.06.22.
Por Acórdão do STA, de 2005.06.22, foi decidido negar provimento ao referido
recurso, considerando-se que o acto impugnado era anulável e não nulo.
Em 2005.07.06, a ora reclamante recorreu para este douto Tribunal com fundamento
nas questões de inconstitucionalidade do art. 1°/4 da Lei 1/87, de 6 de Janeiro,
face às normas e princípios constitucionais actualmente consagrados nos arts.
13°, 20°, 103° e 165°/1/i) da CRP (v. art. 70°/1/b) da L TC).
Pela decisão sumária, ora reclamada, considerou-se não ser de se conhecer do
objecto do recurso por, alegadamente, não ter sido invocada a questão de
inconstitucionalidade do art. 133°, n.º 2, alínea d) do CPA, que integraria a
ratio decidendi do aresto recorrido.
Salvo o devido respeito - e é muito - não podemos concordar com tal
entendimento.
2. Nas alegações apresentadas em 2003.10.21 pela ora reclamante, invocou-se na
conclusão 3ª, que “a seguir-se a tese da douta sentença recorrida - que se
impugna -, sempre teria de concluir-se que a norma do art. 1°/4 da Lei 1/87, de
6 de Janeiro, seria claramente inconstitucional pois, sem fundamento material
bastante, trataria de forma desigual situações essencialmente idênticas (v. art.
13° da CRP), dado que em qualquer dos casos os prejuízos suportados pelos
particulares em virtude da exigência e pagamento dos tributos inválidos são
precisamente os mesmos, violando ainda o disposto nos arts. 20°, 103° e
168°/1/i) da CRP)”.
No douto Acórdão do STA, de 2005.06.22, decidiu-se o seguinte:
“Na verdade, pese embora a nulidade, cominada pela lei, da deliberação que
serviu de suporte ao acto de liquidação - vide art. 1º, n.º 4 da Lei 1/87, de
6/1, a verdade é que este (o acto de liquidação) não é nulo mas anulável”.
Ora, o art. 1°/4 da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, estatui o seguinte:
“São nulas as deliberações de qualquer órgão das autarquias locais que
determinam o lançamento de impostos, taxas, derramas ou mais-valias não
previstas na lei” (cfr. actualmente, art. 2°/4 da Lei 42/98, de 6 de Agosto).
Conforme decidiu - e bem - a douta decisão sumária ora reclamada, a dimensão
normativa do art. 133°/2/d) do CPA “não foi impugnada pela recorrente no
presente recurso de constitucionalidade”.
No entanto, o douto aresto recorrido não se limitou a decidir que o acto sub
judice não seria nulo por força do art. 133°/2/d) do CPA.
Com efeito, no referido aresto decidiu-se expressamente o seguinte:
“Na verdade, pese embora a nulidade, cominada pela lei, da deliberação que
serviu de suporte ao acto de liquidação - vide art. 1°. n.º 4. da Lei n.º 1/87,
de 6/1 - a verdade é que este (o acto de liquidação) não é nulo mas anulável.
Como repetidamente se tem escrito nesta Secção de Contencioso Tributário, a
própria nulidade do acto normativo, ou mesmo a sua inexistência, não implica a
nulidade do acto de liquidação.
Trazemos aqui à colação o acórdão do Plenário deste Supremo Tribunal de
7/4/2005, para cuja ampla fundamentação remetemos”.
Ora, foi precisamente a questão da inconstitucionalidade da dimensão normativa
do art. 1°/4 de Lei 1/87, de 6 de Janeiro, com o âmbito e extensão que lhe foi
definido no douto aresto recorrido - excluindo a aplicação do respectivo regime
da nulidade a actos de liquidação, como se verifica in casu - que foi invocada
pela ora recorrente na conclusão 3ª das conclusões das suas alegações e foi
expressamente apreciada no douto acórdão recorrido.
Assim, caso se entenda que a referida norma é inconstitucional, ao excluir actos
de liquidação do regime da nulidade que estabelece, é manifesto que a decisão
recorrida não pode deixar de ser alterada.
É que, nada impede que, apesar de a invalidade do acto de liquidação em análise
não estar prevista no art. 133° do CPA, tal nulidade resulta da interpretação
conforme à constituição do art. 1°/4 da Lei 1/87, de 6 de Janeiro.
3. Face ao exposto, cremos ser manifesto que o objecto do presente recurso é
constituído pela questão da inconstitucionalidade do art. 1º/4 da Lei 1/87, de 6
de Janeiro, nos termos invocados pela ora reclamante nos números 3 a 7 e
conclusão 3ª das alegacões apresentadas em 2003.10.21 (v. arts. 70°/1/b) e 71°
da LTC), pelo que podendo a procedência de tal invocação determinar a revogação
do aresto recorrido, não pode deixar de ser objecto de decisão no presente
recurso.
NESTES TERMOS,
Deverá ser dado provimento à presente reclamação, revogando-se a douta decisão
sumária reclamada, com as legais consequências (v. art. 78°A da LTC).
Cumpre apreciar.
2. A decisão recorrida considerou que a “deliberação que serviu de suporte ao
acto de liquidação” do encargo de compensação por aumento de área de volumetria
é nula, nos termos do artigo 1º, nº 4, da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro. Entendeu
o Tribunal, no entanto, que o acto de liquidação de tal encargo seria anulável,
de acordo com uma interpretação que expressamente realizou do artigo 133º, nº 2,
alínea d), do Código do Procedimento Administrativo.
A reclamante não contesta que a referida deliberação é nula. Pretende, antes,
que o próprio acto de liquidação deve igualmente ser considerado nulo. Para
tanto identifica como fundamento normativo (da decisão que considerou anulável o
acto de liquidação) o artigo 1º, nº 4, da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, “ao
excluir actos de liquidação do regime de nulidade que estabelece”.
Ora, como se demonstrou na Decisão Sumária reclamada, é manifesto que a
anulabilidade do acto de liquidação se fundou, na perspectiva da decisão
recorrida, numa dada interpretação do artigo 133º, nº 2, alínea d), do Código do
Procedimento Administrativo, segundo a qual os actos que violam o princípio da
legalidade são meramente anuláveis. Não compete ao Tribunal Constitucional
aferir da bondade ou da adequação de tal interpretação no plano
infraconstitucional. Apenas cabe realçar que aquele preceito, naquela
interpretação, constituiu a ratio decidendi do acórdão impugnado, e tal
interpretação não foi impugnada no presente recurso. Na verdade, a impugnação do
fundamento normativo da decisão recorrida não podia, no presente recurso,
prescindir da norma do artigo 133º, nº 2, alínea d), do Código do Procedimento
Administrativo, já que esta é expressamente invocada como ratio fundamental no
contexto da decisão que considera meramente anulável o acto de liquidação.
Verifica‑se, portanto, que a reclamante não impugnou a norma que fundamentou a
decisão recorrida, pelo que a presente reclamação é improcedente.
3. Em face do exposto o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente
reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos