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Processo n.º 192/02 Plenário Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam em plenário no Tribunal Constitucional:
1.Notificado do Acórdão n.º 486/2004, tirado na 2ª secção do Tribunal Constitucional, que julgou inconstitucional a norma do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, veio o recorrido, A., interpor o presente recurso para o plenário, nos termos do artigo 79º-D, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, com fundamento na divergência daquele aresto em relação a decisão tomada, quanto à mesma norma, nos Acórdãos n.ºs 99/88 e 413/89. Admitido o recurso, o recorrente concluiu nas suas alegações:
“Face a estes dois acórdãos do Tribunal Constitucional - os n.ºs 99/88 e 413/89
- atrás mencionados, e agora transcritos acima nas suas partes mais essenciais e, in casu, mais significativas, que levaram, e concluíram, as suas, e pelas suas, não inconstitucionalidades da norma jurídica do art.º 1817º, n.º 1, do Código Civil, temos, agora, e para Conclusão, que dizer, e concluir, que tais dois doutos acórdãos - o n.º 99/88 e o n.º 413/89 - estão em nítida, intrínseca e flagrante contradição com o nosso, aqui recorrido, acórdão n.º 486/04 e aqui em análise no presente recurso, e proferido por este Tribunal Constitucional em
7 de Julho de 2004, nestes autos de recurso n.º 192/02, e cuja decisão deste Supremo Órgão Judicial, fechou uma série ininterrupta e uniforme de êxitos processuais, desde a 1ª instância até àquele Supremo Tribunal de Justiça, êxitos esses para o aqui recorrente A., pois que sempre todas as instâncias judicias consideraram aquela acima norma do art.º 1817º, n.º 1, do Código Civil como uma norma absoluta e totalmente constitucional. Dado que, assim, esta última disposição legal do art.º 1817º, n.º 1, do Código Civil configura, como aliás sempre o configurou, uma mera condição legal do exercício do direito da investigação da paternidade dos filhos nascidos - como o Autor - fora do casamento, ficando, também deste modo, assegurados todos os direitos constitucionalmente protectores, quer para aqueles filhos, quer para as famílias dos pais investigados e para estes próprios pais - maxime os artigos
26º, n.º 1, 36º, n.º 1 e 18º, n.º 2 para os primeiros, e os art.ºs 67º, n.ºs 1 e
2 e, este, nas suas alíneas a) e b), e ainda o art.º 68º, n.º 1. Assim, e da mesma forma, se espera que este Alto Tribunal Constitucional, em seu Plenário, venha a decidir revogar - total e completamente - aquela sua atrás falada, e ora em recurso, decisão, proferida no seu processo n.º 192/02 da 2ª Secção, concedendo, deste modo, provimento total a este nosso recurso com todas as suas legais consequências, decidindo, esse Plenário, a total constitucionalidade da norma jurídica do artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil, aplicável ex vi do art.º 1873º deste mesmo Código, julgando-a assim e, portanto, não violadora dos artigos 26º, n.º 1, 36º, n.º 1 e 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, tudo em consonância com o presente juízo da constitucionalidade da falada norma do art.º 1817º, n.º 1, do Código Civil.” Por sua vez, B., agora recorrido, concluiu:
“Primeiro. É inconstitucional, por natureza , o n.º 1, do art.º 1817º, do C. Civil, nomeadamente é inconstitucional, por natureza, o n.º 1, do art.º 1817º, do C. Civil, por violação do n.º 1 do art.º 26º, do n.º 1 do art.º 36º e do n.º
2 do art.º 18º, todos da CRP; Segundo. Não existem outras normas constitucionais que, em confronto com as estabelecidas no n.º 1, do art.º 26º e no n.º 1, do art.º 36º, ambos da CRP, prevaleçam sobre estas e permitam a restrição, nos termos do n.º 2, do art.º
18º, da CRP, nomeadamente as invocadas nas doutas alegações do recorrente; Terceiro. Com a confirmação da decisão da 2ª Secção do douto Tribunal Constitucional no processo 192/02 e com o negar provimento ao recurso para o plenário aqui em juízo, farão V.Ex.as a habitual Justiça.” Em vista do processo, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
«Concordamos, em larga medida, com as considerações formuladas pelo douto Acórdão n.º 486/04, no que respeita à necessidade de conferir algum reforço à tutela do direito fundamental à identidade pessoal (relativamente à garantia do valor “segurança”, subjacente à norma questionada) e à desproporcionalidade do regime legal em vigor, “obrigando” o investigante a propor a acção de investigação de paternidade impreterivelmente até perfazer vinte anos de idade – afigurando-se, nesta perspectiva, de plena justificação a reponderação da corrente jurisprudencial maioritariamente seguida, até agora, pelo Tribunal Constitucional. Como dá nota este acórdão, ora recorrido, tais considerações não conduzem, porém, inelutavelmente à tese da “imprescritibilidade”, pura e simples, das acções de reconhecimento judicial da paternidade, apenas implicando:
- um alongamento do prazo “normal” previsto no artigo 1817º, n.º 1, dilatando-o, porventura, para um momento em presumivelmente se terá
“consolidado” plenamente a formação, pessoal e profissional, do investigante (e que levaria a apontar, por exemplo, para os 25 anos de idade);
- a previsão de uma cláusula geral de salvaguarda, permitindo a propositura da acção para além de tal prazo mínimo “normal”, desde que o autor cumprisse o ónus de alegar e provar factos que tornassem a propositura “tardia” da acção desculpável ou justificável (“maxime” o desconhecimento, sem culpa, da identidade do progenitor ou a existência de reais obstáculos práticos ou
“sociais” à proposição da acção.) Movendo-nos, porém, no caso dos autos, no campo da fiscalização concreta da constitucionalidade, afigura-se-nos que a decisão a tomar aparece indissoluvelmente ligada à específica e particular fisionomia do caso concreto, e o que este revela é que:
- o autor propôs a acção de reconhecimento judicial da paternidade com a idade de 36 anos (nasceu em 14/1/61 e intentou a acção em 5/9/97);
- não alegou nem provou quaisquer factos ou circunstâncias que justificassem tal propositura “tardia”, nomeadamente o desconhecimento da identidade do progenitor ou quaisquer obstáculos ou dificuldades sérias ou relevantes na propositura da causa. Ora entendemos que – neste concreto circunstancialismo – não será inconstitucional a aplicação do limite estabelecido no artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil: na verdade, tal norma – aplicada num caso em que investigante apenas instaurou a acção de reconhecimento judicial da paternidade quando tinha
36 anos de idade, sem que tivesse invocado minimamente a existência de quaisquer obstáculos ou dificuldades da sua propositura em momento anterior – não implica restrição excessiva ou desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, expresso nos artigos 26º, n.º 1, e 36º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
2.Não deixou de se notar no acórdão recorrido que a decisão aí tomada se afastava de outras, deste Tribunal, relativas à mesma norma, entre as quais se encontram as indicadas pelo recorrente como fundamento para o recurso para o plenário. Independentemente da questão da concordância com essas decisões no contexto em que foram proferidas, na fundamentação do acórdão recorrido discorreu-se, porém, no sentido de as premissas em que assentaram esses anteriores arestos do Tribunal Constitucional não serem hoje constitucionalmente aceitáveis, designadamente, devido à alteração do contexto fáctico (social, técnico, etc.) relevante e à mutação do sentido dos (e dos próprios) parâmetros constitucionais com os quais há-de ser confrontada a solução normativa em causa – a qual, relembre-se, se traduz na impossibilidade de intentar acção de investigação de paternidade logo a partir dos vinte anos de idade, devendo frisar-se (embora se julgue que tal resulta já com clareza do aresto recorrido) que apenas este concreto prazo de dois anos a partir da maioridade foi objecto do julgamento de inconstitucionalidade, e não a existência de qualquer outro prazo para a referida acção, com outra duração ou um diverso dies a quo.
3.Entende-se que na fundamentação do presente recurso para o plenário do Tribunal Constitucional o recorrente – que chega mesmo a invocar a eventual inconstitucionalidade de uma norma que não fixasse prazos de caducidade para as acções de investigação da paternidade, alegação, essa, que, porém, se tem por manifestamente infundada – não adianta novos argumentos, que não tenham sido ponderados no acórdão recorrido, e possam alterar a orientação aí seguida (a título informativo, acrescenta-se apenas que o estudo ali citado de Guilherme de Oliveira, “Caducidade das acções de investigação”, se encontra agora também publicado em Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, vol. I: Direito da Família e das Sucessões, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro de Direito da Família, Coimbra, 2004). Não é o caso, designadamente, nem da invocação das anteriores decisões das instâncias
(pois que sempre assentaram na alegada conformidade constitucional da norma em causa), nem da distinção entre normas restritivas e normas meramente condicionadoras de direitos, liberdades e garantias – distinção, esta, considerada no acórdão recorrido, e em relação à qual se afirmou o seguinte:
«(...) Há, na verdade, que atentar em que a distinção entre condicionamento e restrição é “fundamentalmente prática, já que não é possível definir com exactidão, em abstracto, os contornos das duas figuras”, constituindo, muitas vezes, “apenas um problema de grau ou de quantidade” (J. C. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais da Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra,
2001, pág. 217, e nota 49). Seja, porém, como for quanto a essa exacta qualificação e sua relevância – e também a normação legislativa condicionadora está “sujeita ao controle dos limites (isto é, do respeito pelo conteúdo do direito)”, como salienta Vieira de Andrade, ob. cit., pág. 213 –, é claro que ela não pode ser o ponto de partida para a decisão da questão de constitucionalidade. Não basta optar pela qualificação como norma restritiva ou condicionadora para, aplicando ou não o regime do artigo 18º da Constituição, logo se concluir sobre a sua conformidade constitucional, tornando-se antes necessário analisar, numa perspectiva substancial, se o tipo de limitação ao direito fundamental em causa, pela gravidade dos seus efeitos e pela sua justificação, é ou não actualmente aceitável, à luz do princípio da proporcionalidade.» O recorrente limitou-se, no mais, a reiterar pontos da fundamentação dos acórdãos do Tribunal Constitucional que invoca, os quais, segundo se pensa, foram já considerados no acórdão recorrido, que concluiu, ainda assim – e, aliás, por unanimidade –, por uma decisão de inconstitucionalidade. Mesmo, aliás, para quem negar uma afectação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família, nos termos indicados no n.º 18 do acórdão recorrido, sempre restaria, como fundamento da decisão de inconstitucionalidade, a violação, pela norma em causa, da exigência de proporcionalidade consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição (n.º 19 do acórdão recorrido). Por último, apesar de se estar no quadro da fiscalização concreta da constitucionalidade, também não pode considerar-se decisiva a circunstância – salientada também pelo Ministério Público – de o ora recorrido ter proposto a acção bastante depois de esgotado o prazo de dois anos a contar da sua maioridade. É que, justamente, no caso concreto foi simplesmente o prazo previsto na norma em causa que determinou a excepção de caducidade da acção e a consequente improcedência desta. Tal aspecto foi também considerado no acórdão recorrido, onde se referiu que foi o artigo 1817º, n.º 1, do Código Civil “a norma aplicada pelo tribunal a quo, por isso tendo – tal como já as instâncias – julgado que havia caducado o direito do recorrente a propor a acção de investigação (teria de ser proposta até ele ter completado vinte anos)”, e se salientou que não estava “em causa a consideração da idade concreta que o demandante tinha à data da propositura da acção, à qual não foi atribuída relevância pela decisão recorrida, bastando-se com a circunstância de já terem decorrido a essa data mais de dois anos sobre a sua maioridade.” E deve, ainda, considerar-se que não era exigível ao recorrente que – conforme sugerido pelo Ministério Público (em alternativa a uma propositura anterior da acção) – satisfizesse um hipotético ónus de “alegar e provar factos que tornassem a propositura ‘tardia’ da acção desculpável ou justificável” (como o desconhecimento, sem culpa, da identidade do progenitor, ou obstáculos práticos ou “sociais” a essa propositura). Para além de se não encontrar fundamento legal para este ónus (ou, sequer, uma definição dos seus precisos termos), tal alegação e prova eram absolutamente irrelevantes nos termos do quadro legal vigente, resultante do artigo 1817º do Código Civil – embora os referidos elementos possam, eventualmente, relevar no quadro de um juízo de conformidade constitucional de um outro regime jurídico –, não lhes tendo, pois, sido atribuída também relevância decisiva pelas instâncias. Há, pois, que negar provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso para o plenário. Custas pelo recorrente para o Plenário, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2005 Paulo Mota Pinto Maria João Antunes Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Vítor Gomes Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira (Vencido. Teria concedido provimento ao recurso pelas razões que sustentam a jurisprudência anterior, designadamente os Acórdãos
500/99 e 525/03 para os quais remeto]. Bravo Serra (Vencido. Revogaria o acórdão ora recorrido pelas razões aduzidas em anteriores arestos deste Tribunal, designadamente os Acórdãos números 413/89,
370/91, 311/95 e 506/99, alguns dos quais subscrevi). Maria dos Prazeres Pizarro Beleza [Vencida; concederia provimento ao recurso tendo em conta que, tratando-se de um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, o Tribunal não está impedido de considerar prazo decorrido entre a data em que o investigante atingiu a maioridade e a data da propositura da acção de investigação, nos termos e pelos fundamentos constantes do Ac. nº
451/89 (DR, II, de 21/9/1989), para a qual remeti no Ac. nº 525/03]. Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050011.html ]