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Processo n.º 608/98
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional - LTC), do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Junho de 1996, “com o fundamento de que este Douto Acórdão aplicou o art. 6.º, n.º 1, do DL n.º 198/92, de 23 de Setembro, o qual está ferido de inconstitucionalidade material, por violação dos arts. 2.º, 47.º e 53.º da Constituição da República Portuguesa, (...) e de inconstitucionalidade formal, por ofensa dos arts. 54.º, n.º 5, alínea d) e
56.º, n.º 2, alínea a) da Lei Fundamental (...)”.
2. Por sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho de Lisboa, de 23 de Junho de 1995, em acção intentada pelo ora recorrente contra a RDP – Radiodifusão Portuguesa, foi esta condenada “a reintegrar o Autor, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, e a pagar-lhe todas as retribuições que o Autor deixou de auferir desde a data do despedimento (...), deduzido o montante das retribuições respeitantes ao período decorrido desde a data do despedimento até
30 dias antes da data da propositura da acção, uma vez que esta não foi proposta nos 30 dias subsequentes ao despedimento, e o montante das importâncias relativas a vencimentos do trabalho auferidos pelo trabalhador em actividades iniciadas posteriormente ao despedimento. Tudo a liquidar em execução de sentença.”
3. Inconformada, a Ré RDP recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo concluído as suas alegações afirmando que:
“(…) A. O DL n°. 198/92, de 23-9, criou, por destaque de parte do património da R., permitido pelo n°. 2 do art. 40º do DL n.º 260/76, de 8-4, a empresa pública denominada Rádio Comercial, E.P. (art. 1.°), e determinou a sua subsequente transformação em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (art.
17º.), cujas acções, representativas da totalidade do capital social foram objecto de alienação em OPV realizada em 31.03.1993, autorizada pelo DL n.º
260/92, de 24-12 e pela Resolução do CM n.° 1/93, de 2-1, ao abrigo quer dos arts. 85°-1 e 296°, da CRP, na redacção da LC n.º 1/89, quer da Lei n.º 11/90, de 8-7 (Lei-Quadro das Privatizações), Ora,
B. O direito positivo laboral vigente prevê e regula, há mais de duas décadas, os direitos dos trabalhadores no contexto de uma cisão simples ou por destaque, tanto nos n.ºs 1 e 4 do art. 37° da LCT, confirmado pelo art. 119°-p) do Cód. Soc. Com., como ainda nos arts 9° e 16°-3-a) do DL n.º 519-C1/79, na versão que lhes foi dada pelo DL n.º 209/92, de 2-10.
C. De harmonia com o quadro normativo formado pelos citados preceitos, os direitos e deveres dos trabalhadores cujos contratos tenham sido atribuídos ou deferidos à empresa resultante de uma cisão simples permanecem inalterados, subrogando-se esta última, ex lege, na qualidade de entidade patronal.
D. Porque se trata de uma subrogação ope legis, a perda (por parte da sociedade cindida) e a aquisição (pela sociedade cinditária) da qualidade de entidade patronal é independente de qualquer acto de vontade especialmente dirigida a esse fim, tal como é desnecessária e irrelevante a aquiescência do trabalhador.
E. A cisão simples ou por destaque, nos termos e pela forma em que foi concretizada na hipótese sub judicio, envolveu a transmissão da exploração de uma unidade técnico-económica de radiodifusão, ou seja, de um 'estabelecimento'
(art. 37°-4 da LCT), para uma nova entidade jurídica de criação legislativa, isto é, mediante um 'título' (art. 37°-1 da LCT), consubstanciado num Decreto-Lei, Assim,
F. O disposto no n.° 1 do art. 6°. do DL n.° 198/92, de 23-9, não contém qualquer norma inovatória, limitando-se a reafirmar o que já constava apertis verbis da al. p) do art. 119°, do CSC e implícita, mas necessariamente do art.
37° da LCT, e também não regula directamente nem as relações individuais ou colectivas de trabalho, nem os direitos dos trabalhadores enquanto tais, designadamente do Autor, cuja intangibilidade, aliás, o n.º 2 do mesmo art. 6° proclama. Daí que,
G. A questionada norma não cai no âmbito da legislação laboral, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts 54°-5-d) e 56°-2-a) da CRP, não sofrendo, pois, de inconstitucionalidade formal. Acresce que H. Ao recusar ao Conselho de Administração da R. o poder-dever de determinar ou indicar os contratos de trabalho a transferir para a empresa pública cisionária, a decisão recorrida violou os arts 85°-1 e 296°, ambos da CRP, na parte em que os mesmos admitem a (re)privatização, total ou parcial, de empresas públicas, após serem transformadas em sociedades anónimas (n.ºs 1 a 3 do art. 4° da Lei n.º 11/90), porquanto
I. É inviável a alienação das acções representativas do capital social de uma empresa de capitais públicos desprovida de quadro de pessoal e/ou cujos trabalhadores, a qualquer momento, possam regressar à empresa-mãe, quando tenha havido cisão. Por outro lado,
J. A decisão recorrida assenta numa discriminação injustificada dos trabalhadores, violadora do princípio da igualdade consagrado nos arts 13°-1 e
59°-1, ao privilegiar os trabalhadores originários de empresa pública cindida, que só foi objecto de privatização parcial, em detrimento dos trabalhadores de empresas integralmente privatizadas, que não dispõem já empresa pública e que regressem.
L. Ao não considerar a cisão abrangida pelo disposto no art. 37° da LCT, a sentença recorrida violou ainda os arts 61°-1 e 62°-1 da CRP, e pôs em causa a generalidade das privatizações, sem curar, minimamente, das catastróficas consequências sociais e laborais que a por ela perfilhada interpretação, desajustada e descabida, da lei, desencadearia.
M. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença sob censura, e julgando- se a acção improcedente, por não provada (….)”
4. O autor recorrido, por sua vez, contra-alegou sustentando que:
“(…) A) A sentença recorrida reconheceu, bem, a inconstitucionalidade formal do art.
6º do DL 198/92 de 23 de Setembro.
B) Embora devesse também ter acolhido a tese da inconstitucionalidade material porquanto,
C) Ao estipular que a Administração da R. (RDP, EP.) determinará, livremente, os contratos de trabalho que passarão para a Rádio Comercial, EP .(criada pelo referido decreto lei), a disposição em apreço permite que, por livre arbítrio do C.A de uma empresa, cesse um vínculo laboral, sem justa causa, e nasça um outro sem intervenção de qualquer das partes que ficarão vinculadas;
D) Dessa forma ofende expressa e claramente o disposto no art. 53º da Constituição da República Portuguesa;
E) Acresce que, a intenção do governo ao criar a Rádio Comercial, EP., foi rapidamente a privatizar, único motivo porque se cria a nova EP, transformando-a imediatamente em sociedade anónima;
F) Ora, com o preceito em apreço, pretendeu-se, pura e simplesmente, impôr a um jornalista, como é o Autor, uma relação laboral não só com uma entidade empregadora desconhecida, como principalmente com um projecto editorial não definido.
G) O que, inequivocamente, viola o princípio da liberdade do trabalho (art. 47º CRP), que consagra a possibilidade do trabalhador escolher não só o local de trabalho, como a própria actividade a prestar .
H) Aliás, bastará atentar na Jurisprudência do Acórdão n.º 154/86, de 12 de Junho, para não ficarem dúvidas de que o art. 6º do diploma sob censura não é compatível com a Constituição (cfr., ainda, os Acórdãos n.ºs 31/84, de 17 de Abril; 148/87, de 5 de Agosto; 75/88, de 21 de Junho; 151/90, de 28 de Maio;
285/92, de 17 de Agosto; e 155/92, de 2 de Setembro).
I) A R., nas suas alegações de recurso, argumenta, sem razão, que existe uma identidade de conteúdo entre o art. 6º do DL 198/92 e o disposto nos art.ºs 37º da LCT, e 119º, al. p), do CSC.
J) Com efeito, a tese da R., é totalmente errónea e desprovida de base jurídica.
K) Em primeiro lugar, o referido art. 6º consagrou a possibilidade duma pessoa colectiva, transmitir contrato de trabalho, sem que tenha tido lugar a transmissão dum qualquer estabelecimento. Possibilidade essa, que se traduz numa inovação importante e inequívoca em relação ao art. 37° da LCT .
L) Efectivamente, o património destacado pela R. não correspondia a nenhum estabelecimento, na medida em que não constituía uma organização dotada de autonomia própria para funcionar, por si só, como uma unidade produtiva.
M) Em segundo lugar, com o art. 6° do DL 198/92, o legislador ordinário conferiu, ao conselho de administração da R., o poder de transferir os contratos de trabalhadores não afectados, sequer, ao património cindido (factos 32 e 33), i.é., sem curar, sequer, da existência (ou não) de uma qualquer ligação do trabalhador ao departamento Rádio Comercial.
N) O art. 6° consagra, pois, um regime totalmente distinto do estabelecido no art. 37º da LCT, porquanto não respeita a necessária concordância prática entre os interesses do estabelecimento (que, como se repete, não estão aqui sequer em causa) e os dos trabalhadores, subvertendo, antes, o núcleo de princípios que se julgariam pacíficos, como os da segurança no emprego (art. 53º CRP) e da liberdade de trabalho (art. 47º CRP).
O) No que diz respeito à alegada identidade entre o art. 6° do DL 192/98 e o art. 119°, al. p), do CSC, também aqui não assiste nenhuma razão à R.
P) Com efeito, o aludido preceito do CSC, ao contrário do art. 6° do DL 198/92, não dispensa a aplicação dos critérios do art. 37° da LCT para os casos de cisões simples ou parciais (como é o caso dos autos ), a saber, transmissão de um estabelecimento, e, ligação do trabalhador ao referido estabelecimento.
Q) O preceito ofende, ainda, o princípio constitucional da precisão ou determinabilidade das leis, concretizador do princípio do Estado de direito democrático (art. 2° CRP ).
R) Acresce que a norma em apreço, além de materialmente inconstitucional, está sempre, como concluiu, bem, a sentença recorrida, afectada de inconstitucionalidade formal.
S) Com efeito, dado que a comissão de trabalhadores e a respectiva associação sindical não participaram na elaboração do art. 6º do DL 198/92, violaram-se os direitos fundamentais (art.ºs 54º, n.º 5, al. d), e 56º, n.º 2, al. a), CRP) com a consistência dos “direitos, liberdades e garantias”; por isso o aludido preceito sofre de inconstitucionalidade.
T) A R., nas suas alegações, tentou afastar tão evidente violação da Lei Fundamental, argumentando que o referido preceito não constitui legislação laboral. Contudo, tal argumento é destituído de qualquer fundamento.
U) Com efeito, o art. 6° do DL 198/92, ao atribuir à entidade patronal o poder de, unilateralmente, dispôr de contratos de trabalho, sem que tenha sido transmitido qualquer estabelecimento, e dispensando a necessária ligação entre o trabalhador e o património destacado, versa o estatuto dos trabalhadores, diminuindo os seus direitos.
V) A referida norma consagra um regime totalmente novo em relação aos citados art.ºs 37° da LCT e 119°, al. p), do CSC, regulando, assim, de forma inovadora as relações individuais de trabalho.
W) Por último, o art. 6° do DL 192/98 viola o art. 6° da Directiva 77/187/CEE
(aplicável à cisão ex vi do art. 11° da 6.ª Directiva do Conselho), o qual, na medida em que contém disposições cujo conteúdo é preciso e (in) condicional, consagra o direito dos trabalhadores à informação e à consulta.
X) Ora, tais direitos são oponíveis à R., uma vez que esta era uma empresa pública, o que para efeitos de aplicação do direito comunitário equivale ao Estado.
(…).”
5. O Tribunal da Relação de Lisboa, por Acórdão de 26 de Junho de 1996, concedeu provimento à apelação da R., revogando a sentença recorrida, com base na seguinte argumentação:
“(…) A primitiva e inicial entidade patronal do Autor - a RDP. EP.- produto da nacionalização de alguns postos transmissores e posições sociais e patrimoniais
– factos provados 1, 7, 19, 28, 29 e 30 – passou a designar-se Rádio Comercial E.P., por via do DL. 198/92, de 23.9 – sendo depois convertida em Rádio Comercial SA., com efeitos a partir de 9 de Outubro de 1992 - facto provado 1, 7 e 8. Por carta datada de 30/9/92 -fls. 10 e 11- o Conselho de Administração da R. determinou a transferência do contrato de trabalho do Autor para a Rádio Comercial EP., referindo-se que -... por força deste normativo, a sua reintegração nos quadros da Rádio Comercial EP. é efectuada sem prejuízo da antiguidade e do estatuto profissional que lhe assistiam na RDP/EP. e com manutenção de todos os direitos consignados no seu contrato de trabalho e no Acórdão de Empresa... – facto provado 22.
-.... assim sendo, continuarão a ser-lhe aplicáveis, nomeadamente, todas as normas do Acordo de Empresa relativas à duração semanal do trabalho. Tabela salarial, diuturnidades, retribuição pela prestação de trabalho nocturno e suplementar, subsídio de turno, regime de promoções, seguros, etc... – facto provado 23. pelo que – note-se – não pode o Autor pretender que foi transferido de uma Rádio para outra – pois o que foi transferido foi o respectivo contrato de trabalho – factos provados 13, 20, 21, 22 e 34. Num outro sentido, também o Autor não foi transferido de uma Rádio para outra Rádio – pois o que foi transferido foi o canal onde o Autor exercia funções – factos provados 13 e 18 – situação que arrasta, não o Autor mas o posto de trabalho do Autor. Visto que, neste caso, o canal é o próprio estabelecimento onde estava instalado o canal transmitido. E, como escreve Barbosa de Magalhães in “Do estabelecimento comercial” – Pág. 25
- ... mas dentro esses estabelecimentos, que fazem parte do estabelecimento, e que podem considerar-se seus acessórios, há a considerar especialmente as sucursais, agências, delegações, representações ou filiais, que o comerciante individual ou colectivo estabelece com localidades diversas daquela onde está o estabelecimento principal, ou mesmo, embora muito menos frequentemente, nessa própria localidade... e, mais adiante, a Pág. 89 refere que - ... o estabelecimento é uma universalidade e, sendo o principal, pode ter outros estabelecimentos dependentes, por à sua unidade económica corresponder uma unidade jurídica... e, a pág. 250, desencadear a questão da transmissão de imóveis compreendidos no estabelecimento, já que - ... o estabelecimento está sempre em movimento, e frequentemente acontece, variaram os seus elementos componentes; e, assim um estabelecimento que, em dado momento, é uma coisa mobiliária, pode, logo a seguir, pela aquisição de um imóvel, passar a ser uma coisa imobiliária; e o fenómeno inverso também pode verificar-se... No caso dos presentes autos, passaram a existir 2 estabelecimentos - a Rádio Comercial EP. e Rádio Comercial SA. – sendo que o canal onde o Autor prestava trabalho passou de uma para outra Rádio Comercial, isto é, em termos de estabelecimento, passou de um estabelecimento para outro estabelecimento – o canal é que passou e não o Autor embora ligado àquele mesmo transmitido canal. Não tem, assim, fundamento o Autor vir referir que foi objecto de um acto de despedimento ilícito, determinado pela R., sem procedência de processo disciplinar. pois não houve despedimento do Autor, de qualquer natureza. pelo que não pode falar-se de processo disciplinar – que não foi instaurado, nem tinha de ser instaurado.
É que a R. só podia usar da faculdade prevista pelos artigos 26º do DL. 49408,de
24/XI/69 (RJCIT) e 10.º n.º l do DL. 64-A/89, de 27/2 (LDD.), se se tivessem verificado alguma das situações previstas pelo artigo 9º, n.º 2, desta LDD., que levariam ao n.º l da mesma disposição legal - o que não foi o caso. As transformações sociais e empresariais decorrentes dos autos estão baseadas na
'Lei quadro das empresas públicas'
- DL. 260/76, de 8/4, que determina:
- Artigo 30º, n.º 1 ... o estatuto do pessoal das empresas públicas deve basear-se no regime de contrato individual de trabalho, salvo quanto ao pessoal das empresas que explorem serviços públicos, para o qual, de acordo com o n.º 2 do artigo 3º, pode ser definido, em certos aspectos, um regime de direito administrativo baseado no Estatuto do Funcionalismo Público, com as modificações exigidas pela natureza específica da actividade de cada empresa.
- artigos 36º a 45º - que regulamentam o agrupamento, fusão, cisão e liquidação das empresas públicas. E cujo Estatuto consta do DL. 129/84, de 27/4 – cuja aplicação não tem directo interesse para os presentes autos. Assim, temos que procurar o disposto no artigo 118º n.º 1 alínea a) do CSC., que determina - ... é permitido a uma Sociedade... destacar parte do seu património para com ela constituir outra sociedade... complementado pela alínea p) do seguinte artigo 119º -... a atribuição da posição contratual de sociedade ou sociedades intervenientes, decorrentes dos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, os quais não se extinguem por força de cisão.
-...pois as empresas públicas regem-se pelo presente decreto-lei, pelos respectivos estatutos e, no que por aquele e estes não for especialmente regulado, pelas normas do direito privado... – artigo 3º n.º do referido DL.260/76, seguindo-se o artigo 5º n.º 1 que determina na sua alínea i) – o estatuto da empresa pública deve obrigatoriamente especificar... as regras gerais relativas ao estatuto do pessoal. No domínio do campo especificamente laboral, impera o disposto no artigo 37º do RJCIT., que fixa no seu n.º l ---... a posição que dos contratos de trabalho decorre para a entidade patronal transmite-se ao adquirente, por qualquer título do estabelecimento onde os trabalhadores exerçam a sua actividade, salvo se, antes da transmissão, o contrato de trabalho houver deixado de vigorar nos termos legais, ou se tiver havido acordo entre o transmitente e o adquirente, no sentido de os trabalhadores continuarem ao serviço daquele noutro estabelecimento sem prejuízo do disposto no artigo 24º. Entretanto, quanto ao disposto no artigo 6º, n.º 1, do referido DL.198/92, determina o seu n.º 1 -... o conselho de administração da RDP, EP. determinará os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial EP. que não está ferido de inconstitucionalidade formal – como se decidiu na Douta sentença ora posta em crise, pois como alegou a R. - e bem a nosso ver - ...o conteúdo do n.º 1 do artigo 6º do DL. n.º 192/92, de 23-9 mais não fez do que acolher e repetir estatuições da lei geral, quer no tocante à relação jurídica privada laboral (artigo 37º da LCT), quer no concernente à cisão das sociedades
(artigo 119º, p) do Cód. Soc. Com.), nada tendo de inovador, seja para mais, seja para menos, seja de diferente. O contrato de trabalho do Autor - e não o Autor - é que foi transmitido da Rádiodifusão Portuguesa EP., transformada em SA. também. Pelo que não havia que consultar a opinião do Autor, por não ser representante da estrutura representativa do Sindicato respectivo – artigo 23º do DL 2l5-B/75, de 30/4. nem o A. articulou ou provou - como seria seu ónus – artigo 342º, n.º 1, do Código Civil – os prejuízos sérios previstos pelo artigo 437º do mesmo Código e
24º do RJCIT. Sendo assim, violou a Douta sentença em crise as indicadas disposições legais constantes das letras H), J) e L) destas conclusões. pelo que vai ser anulada e, consequentemente, não se conhece da nulidade arguida pela mesma R.”
6. Inconformado, o Autor recorrido interpôs recurso para este Tribunal, tendo este sido admitido por despacho prolatado a fls.293, após ter sido deferida, pelo Acórdão n.º 271/98, a reclamação deduzida pelo recorrente contra o despacho do Juiz Relator do Tribunal a quo que julgou deserto o recurso por falta de pagamento de custas.
7. Recebido o recurso, recorrente e recorrida alegaram e contra-alegaram afirmando que:
Por parte do recorrente:
“(…) A) Conforme estipula o art. 71º, n° 1, da Lei 28/82 (Lei de Processo do Tribunal Constitucional, adiante LTC), os recursos para o Tribunal Constitucional são restritos à questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade suscitada; B) As questões suscitadas durante o processo são: a) A inconstitucionalidade formal do art. 6°, n.º 1, do diploma indicado no cabeçalho, por violação dos arts. 54º, n.º 5, al. d), e 56°, n.° 2, al. a), da CRP, e b) A inconstitucionalidade material da mesma disposição legal, por violação dos arts. 2°, 47° e 53° também da CRP; C) De acordo com o art. 277°, n.° 1, da CRP são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados; D) E a interpretação das normas constitucionais faz-se de acordo com critérios próprios do direito constitucional e não de acordo com os critérios do Código Civil, nem (muito menos) de acordo com o conteúdo das normas legais. E) É dado assente pela jurisprudência e doutrina constitucional que não é permitida a denominada interpretação da Constituição conforme à lei como, ensinam e bem Gomes Canotilho e Vital Moreira em Fundamentos da Constituição, a págs. 53 e 54.; F) Assente que assim é, poder-se-á questionar - como o fazem amiúde os articulados da parte contrária, assim como o Acórdão da Relação - se só poderão padecer de inconstitucionalidade as normas inovatórias e não as normas de mera execução daquilo é disposto na lei geral; G) Ora, também são jurisprudência e doutrina pacífica aquelas que consideram que a aferição da inconstitucionalidade em sede de fiscalização concreta abrange toda e qualquer norma. - art. 280°, n.° 1, da CRP - (sem distinção em inovatória e não inovatória, etc., etc.); H) Haverá inconstitucionalidade sempre que entre uma qualquer norma e a Constituição existir uma relação directa de contrariedade; I) Será também de recordar que o Tribunal Constitucional pode
(e tem-no feito) julgar e até declarar inconstitucionais normas já revogadas...; J) Para efeitos de aplicação dos preceitos constitucionais que prevêm audição dos trabalhadores, a determinação do conceito de legislação laboral, deles constante não se pode fazer a partir das normas legais referidas pela R. nas suas alegações de apelação e no douto Acórdão da Relação de Lisboa - arts 37° da LTC e 119°/p) do CSC -; K) Se se aceitasse que assim fosse (e o Tribunal Constitucional já o disse por diversas ocasiões...) estar-se-ia a autorizar uma interpretação da Constituição face aos preceitos legais da Lei do Contrato de Trabalho e do Código das Sociedades Comerciais ou seja, uma interpretação conforme à lei, proibida nos termos há pouco referidos; L) O sentido da expressão legislação do trabalho, há-de descobrir-se face ao conteúdo, sentido e alcance das próprias normas constitucionais em referência: arts 54° e 56° (reforça - se isso fosse necessário - este entendimento, o facto das disposições em causa serem Direitos, Liberdades e Garantias, espécie do género constitucional dos Direitos Fundamentais (Título II da Parte I da CRP, cujo regime de interpretação e aplicação obedece a critérios muito próprios constantes da própria CRP – art.
18º; M) Ora, ao editar o Decreto-Lei em análise, o legislador - primeiro destinatário das normas constitucionais - teria a possibilidade de qualificar as suas normas (ou algumas delas) como legislação laboral; N) E, em boa verdade, o legislador do Decreto-Lei n.° 198/92 pronunciou-se sobre o problema, qualificando claramente a norma como integrando a legislação do trabalho; O) Com efeito, na parte final do preâmbulo do mesmo Decreto-Lei pode ler-se: Foi ouvida a comissão de trabalhadores da RDP, EP.; P) E nenhuma das peças configurou a questão correctamente, porque nenhum dos intervenientes, deu ao luxo de ler o preâmbulo; Q) E ele refere expressamente a existência de consulta à comissão de trabalhadores; R) Facto constante de diploma do Governo, publicado no Diário da República e, portanto, conhecido, publicitado e notório que, displicentemente, a recorrida e a Relação de Lisboa não souberam, conhecer nem sublinhar; S) E é essa referência constante do preâmbulo do diploma que constitui uma machadada final e incontornável na tese, quer da RDP, EP., quer do Tribunal da Relação de Lisboa; T) Recorde-se que aquela tese assentava no pressuposto do silêncio do legislador - relembre-se, para comodidade de leitura, a transcrição já efectuada atrás, das próprias alegações, de apelação da R:
«A Constituição garante que, relativamente à legislação do trabalho, no respectivo processo de produção legislativa (lato sensu) seja assegurado o direito de participação (audição e/ou negociação) quer das comissões de trabalhadores (art. 54º-5-d), quer das competentes associações sindicais (art.
56°-2-a), presumindo-se que essa participação não teve lugar sempre que – como ocorre na hipótese sub judice – nenhuma referência lhe é feita no diploma legal sob censura»; U) Como se vê, na hipótese sub judice, no diploma legal sob censura existe uma referência à participação dos trabalhadores, facto escamoteado pela ora recorrente; V) Assim, inexistindo o pressuposto em que se fundou a R. e o Ac. da Relação para afastar a conclusão da decisão de 1ª Instância, tudo terá que ser visto precisamente ao contrário, e esse outro prisma, aliás, legitimado pela própria recorrida a contrario (nas suas alegações de recurso para a relação já transcritas), é a de que havendo referência expressa à audição dos trabalhadores, é porque o próprio legislador considerou que, nele constavam normas de natureza laboral, como não pode deixar de se concluir!;
W) Ora, no diploma em causa só existem dois artigos que se referem a relações laborais:
- O art. 6°, ora controvertido, que após referir, no n.° 1, a possibilidade do Conselho de Administração da RDP, EP, transferir os contratos de trabalho que entender para a Rádio Comercial EP, refere, no n.º 2, que os trabalhadores transferidos mantêm, apesar da transferência, os direitos e obrigações anteriores;
- E o art. 10° que dispõe, na esteira do art. 6°, que aquando da transformação da Rádio Comercial, EP, em Rádio Comercial, SA, os trabalhadores mantêm, do mesmo modo, os direitos e obrigações anteriores.; X) Resulta daqui o óbvio: que são normas laborais neste diploma o disposto nos arts 6° e 10°, pois versam sobre contratos individuais de trabalho;
Y) Nos termos do art. 112°, n.º 6, da CRP, como também o Tribunal Constitucional tem afirmado (recorde-se, a propósito, a controvérsia resolvida pelo Tribunal acerca dos Assentos do Supremo Tribunal de Justiça), o próprio legislador é o único órgão com competência para efectuar a interpretação autêntica dos actos legislativos; Z) Tendo havido audição da comissão de trabalhadores, não pode sustentar-se (como o fizeram todos os sujeitos processuais envolvidos no processo) a inconstitucionalidade da norma com fundamento na violação do art.
54º, n° 5, al. d), da CRP, AA) Não- havendo, pois, pelo menos à luz do direito interno (já lá vamos...), inconstitucionalidade formal por violação do art. 54°, n° 5, al. d), da CRP; BB) Subsiste, no entanto, a inconstitucionalidade formal por violação do art. 56°, n.º 2 , al. a), da CRP, ou seja, ausência de participação, em qualquer das suas modalidades, das associações sindicais na elaboração do diploma em juízo; CC) Antecipando já contra-argumentos... não se olvide que este é um processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, DD) E que, no caso concreto dos autos, estando em causa o despedimento de um jornalista (como muitos mais existiam e existem na RDP), EE) E havendo, pública e notoriamente, um Sindicato dos Jornalistas, nenhuma razão de ordem constitucional justifica, no caso, a não participação dessa (e possivelmente de outras) entidade sindical quando, precisamente nos termos da norma citada, é constitucionalmente imposta; FF) Assim sendo, está - linearmente - demonstrada a inconstitucionalidade formal do diploma, por violação do art. 56º, n.º 2, al. a), da CRP; GG) Dissemos há pouco que não existiu inconstitucionalidade formal da norma analisanda por violação do artigo 54°, n° 5, al. d), da CRP, interpretado de acordo com o direito interno; HH) No entanto, a conclusão diferente pode chegar-se da Conjugação do preceito constitucional com o disposto no art. 6° da Directiva do Conselho n.º
77/187/CEE de 14 de Fevereiro de 1977, publicada no JOCE n° L-61/26, de 5 de Março de 1977 (informação e consulta dos trabalhadores), não transporta para o direito interno, e tendo já decorrido o prazo para a sua transposição: O que obrigará o Tribunal Constitucional a fazer uma leitura do preceito constitucional conforme ao direito comunitário, como o impõe toda a jurisprudência do TJCE; JJ) E obrigará esse Alto Tribunal a desencadear o reenvio a título prejudicial para o TJCE, previsto no art. 177° do TCE KK) Concluímos, pois, que andou bem a 1ª Instância ao declarar a inconstitucionalidade formal do art. 6° do DL 198/92, de 23 de Setembro, ao contrário da Relação de Lisboa que, erradamente, revogou a decisão daquela instância; LL) Embora sempre se tenha defendido e continue a defender que aquela disposição legal padece também de inconstitucionalidade material, porquanto; MM) Ao estipular que a Administração da R. (RDP, EP.) determinará, livremente, os contratos de trabalho que passarão para a Rádio Comercial, EP. (criada pelo referido decreto lei) a disposição em apreço permite que, por livre arbítrio do C.A de uma empresa, cesse um vínculo laboral, sem justa causa, e nasça um outro sem intervenção de qualquer das partes que ficarão vinculadas; NN) Dessa forma ofende expressa e claramente o disposto no art. 53° da Constituição da República Portuguesa; OO) Acresce que, a intenção do governo ao criar a Rádio Comercial, EP., foi a de rapidamente a privatizar, único motivo porque se cria a nova EP., transformando-a imediatamente em sociedade anónima; PP) Ora, com o preceito em apreço, pretendeu-se, pura e simplesmente, impôr a um jornalista, como é o A., uma relação laboral, não só com uma entidade empregadora desconhecida, como principalmente com um projecto editorial não definido - não se esqueça que um dos mais sérios candidatos à privatização era a Igreja B. (!); QQ) O que, inequivocamente, viola o princípio da liberdade do trabalho
(art.. 47°. CRP), que consagra a possibilidade do trabalhador escolher não só o local de trabalho, como a própria actividade a prestar; RR) Aliás, bastará atentar na Jurisprudência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/86, de 12 de Junho, para não ficarem dúvidas de que o art. 6° do diploma sob censura não é compatível com a Constituição (cfr., ainda, os Acórdãos n.ºs 31/84, de 17 de Abril; 148/87, de 5 de Agosto; 75/88, de 21 de Junho; 151/90, de 28 de Maio; 285/92, de 17 de Agosto; e 155/92, de 2 de Setembro); SS) A R., nas suas alegações de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, argumentou, sem razão, que existe uma identidade de conteúdo entre o art. 6°. do DL 198/92 e o disposto nos art.ºs 37° da LCT, e 119°, al. p), do CSC.; TT) Tese essa que veio a ter, espantosamente, acolhimento no Acórdão da Relação de Lisboa; UU) No entanto, a tese da R., é totalmente errónea e desprovida de base jurídica; VV) Em primeiro lugar, o referido art. 6° consagrou a possibilidade de uma pessoa colectiva, transmitir contratos de trabalho sem que tenha tido lugar a transmissão dum qualquer estabelecimento. Possibilidade essa que se traduz numa inovação importante e inequívoca em relação ao art. 37° da LCT.;
WW) Efectivamente, o património destacado pela R. não correspondia a nenhum estabelecimento, na medida em que não constituía uma organização dotada de autonomia própria para funcionar, por si só, como uma unidade produtiva; XX) Em segundo lugar, com o art. 6° do DL 198/92, o legislador ordinário conferiu ao conselho de administração da R. o poder de transferir os contratos de trabalhadores não afectados, sequer, ao património cindido (factos 32 e 33), i.é., sem curar, sequer, da existência (ou; não) de uma qualquer ligação do trabalhador ao departamento Rádio Comercial.;
YY) O art. 6° consagra, pois, um regime totalmente distinto do estabelecido no art. 37° da LCT, porquanto não respeita a necessária concordância prática entre os interesses do estabelecimento (que, como se repete, não estão aqui, sequer, em causa) e o dos trabalhadores, subvertendo, antes, o núcleo de princípios que se julgariam pacíficos, como os da segurança no emprego (art. 53° CRP) e da 1iberdade de trabalho (art. 47º CRP); ZZ) No que diz respeito à alegada identidade entre o art. 6° do DL
192/98 e o art. 119°, al. p), do CSC, também aqui não assiste nenhuma razão à R. e ao Tribunal da Relação; AAA) Com efeito, o aludido preceito do CSC, ao contrário do art. 6° do DL
198/92, não dispensa a aplicação dos critérios do art. 37° da LCT para os casos de cisões simples ou parciais (como é o caso dos autos), a saber, transmissão de um estabelecimento, e ligação do trabalhador ao referido estabelecimento; BBB) Dir-se-á, pois, que não existe nenhuma identidade entre o art. 6° do DL. 198/92 e os restantes preceitos em análise, a referida norma consagra um regime totalmente novo em relação aos citados art.ºs 37° da LCT e 119°, al. p), do CSC, regulando, assim, de forma inovadora as relações individuais de trabalho; CCC) Com efeito o art. 6° do DL 198/92, ao atribuir à entidade patronal o poder de, unilateralmente, dispor de contratos de trabalho, sem que tenha sido transmitido qualquer estabelecimento, e dispensando a necessária ligação entre o trabalhador e o património destacado, versa o estatuto dos trabalhadores – e por isso se trata de legislação laboral -, diminuindo os seus direitos; DDD) Pelo que, indo muito além deles, permitindo o arbítrio da entidade patronal, ele é claramente inconstitucional; EEE) Aliás, o preceito em análise ofende, ainda, o princípio constitucional da precisão ou determinabilidade das leis, concretizador do princípio do Estado de direito democrático (art. 2° CRP).; FFF) Por último, o art. 6° do DL 192/98 viola o art. 6° da Directiva
77/187/CEE (aplicável à cisão ex vi do art. 11º da 6.ª Directiva do Conselho), o qual, na medida em que contém disposições (cujo conteúdo é preciso e condicional, consagra o direito dos trabalhadores à informação e à consulta; GGG) Ora, tais direitos são oponíveis à R., uma vez que esta era uma empresa pública, o que para efeitos de aplicação do direito comunitário equivale ao Estado; HHH) Ao decidir como decidiu, o Acórdão sob censura, do Tribunal da Relação de Lisboa, violou o disposto no art. 207º da CRP.
Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, declarando-se a inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 6° do DL. n° 198/92, de 23 de Setembro e, em conformidade com o disposto no art. 80º da LTC, ordenado que os autos baixem ao Tribunal da Relação de Lisboa para que este reforme a sua decisão, negando provimento à apelação e confirmando a decisão da 1ª Instância, com todas as legais consequências (…)”
Por parte da recorrida:
“(…) A) O n.° 1 do art. 6° do DL n.° 198/92, de 23-9, não está inquinado do vício de inconstitucionalidade formal, por ofensa dos arts 54°-5-d) e 56°-2-a), ambos da CRP porquanto, por um lado, não regula as relações individuais e/ou colectivas de trabalho, nem os direitos dos trabalhadores enquanto tais e/ou das suas organizações, e, por outro, tratando-se de uma simples norma habilitante ou atributiva de competência, tem por escopo concretizar o exercício dos direitos autonomamente definidos ou reconhecidos nos arts 37° da LCT e na al. p) do art.
119°, do Cód. Soc. Comerciais, confirmados pelos arts 9° e 16°-3-a) do DL n.º
519-C1/79, na redacção do DL n.° 209/92, de 2-10.
B) O normativo em apreço também não viola, nem directa nem indirectamente, os art. 2°, 47° e 53° da CRP, uma vez que, na cisão de sociedades/empresas, os contratos de trabalho mantêm a sua identidade e conteúdo, permanecendo inalterados não obstante a ocorrência do apontado fenómeno jurídico, e, daí, que não ofenda nem comprima o princípio da liberdade de escolha e/ou de exercício da profissão dos trabalhadores por ela abrangidos.
C) Improcedem, pois, todas e cada uma das conclusões do recurso, ao qual deve ser denegado provimento, confirmando-se a douta decisão recorrida no que concerne á sua conformidade constitucional”.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
B. Fundamentação
8. Questões decidendas
As questões decidendas são as de saber se a norma constante do artigo 6.º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro, padece de inconstitucionalidade formal por violação dos artigos 54.º, n.º 5, al. d) e 56.º, n.º 2, al. a), da Constituição da República Portuguesa, e se a mesma norma é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 47.º e 53.º, da mesma Lei Fundamental.
9. O artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro, tem a seguinte redacção:
“1. O conselho de administração da RDP, E.P., determinará os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial, E.P..”
Por sua vez, o n.º 2 da mesma norma – que igualmente se transcreve em face da sua importância para o presente problema de constitucionalidade – afirma que:
“2. Os trabalhadores transferidos mantêm, perante a Rádio Comercial, E. P., todos os direitos e obrigações de que eram titulares face à RDP, E. P..”.
As disposições constitucionais consideradas violadas dispõem que:
Artigo 2.º (Estado de direito democrático)
“A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência dos poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
Artigo 47.º (Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública)
“1. Todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade.
2. Todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso”.
Artigo 53.º (Segurança no emprego)
“É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”.
Artigo 54.º (Comissões de trabalhadores)
“[...]
5.
[...]
d) Participar na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respectivo sector;
[...]”.
Artigo 56.º (Direitos das associações sindicais e contratação colectiva)
“[...]
2. Constituem direitos das associações sindicais:
a) Participar na elaboração da legislação do trabalho;
[...]”.
10. Da inconstitucionalidade formal do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
198/92, de 23 de Setembro.
10. 1. No que tange com tal problema e independentemente da formulação antecipada de um qualquer juízo de inevitabilidade quanto à classificação da norma em crise como “legislação do trabalho”, dada a circunstância de a audição das comissões de trabalhadores, inicialmente regulamentada na Lei n.º 46/79, de 12 de Setembro, se encontrar prevista para diversas situações independentes da “participação na elaboração da legislação do trabalho” (constante na “Subsecção IV” do diploma citado sob a epígrafe “Direito de participação na elaboração de legislação de trabalho e dos planos económico-sociais que contemplem o respectivo sector ou região Plano”), designadamente aquelas que concernem com o “Direito de intervir na reorganização das unidades produtivas” (disciplinado na “Subsecção III” da mesma Lei – artigos
32.º e 33.º), importa começar por acentuar que tal diploma esclarece, no seu preâmbulo, que “foi ouvida a comissão de trabalhadores da Radiodifusão Portuguesa, E. P.”. Nesta medida e considerando imediatamente o parâmetro constitucional plasmado no artigo 54.º, n.º 5, alínea d) da Lei Fundamental, há que concluir não proceder a inconstitucionalidade suscitada pelo Recorrente junto do Tribunal da Relação de Lisboa.
10.2. Mas o recorrente sustenta ainda a inconstitucionalidade da norma sindicanda à luz do estabelecido na alínea d) do n.º 5 do art.º 54º da Constituição, com base em outra argumentação. Não obstante reconhecer que “não existiu inconstitucionalidade formal da norma em análise por violação do artigo
54.º, n.º 5, alínea d) da CRP, interpretado de acordo com o direito interno”, o recorrente sustenta que “a conclusão diferente pode chegar-se juntando a esta análise o direito comunitário” – ou seja enquanto resultado da conjugação de tal preceito constitucional com o disposto no artigo 6.º da Directiva do Conselho n.º 77/187/CEE, de 14 de Fevereiro de 1977 - defendendo, dentro nesta linha de raciocínio, que a norma constitucional do art. 54.º, n.º 5, al. d), deve ser
“interpretada de forma conforme ao direito comunitário constante da directiva”
(cfr. pontos 114 e ss. das alegações, maxime 130, e pontos HH), II) e JJ) das conclusões), estando o Tribunal Constitucional está obrigado a fazer uma leitura do preceito constitucional conforme ao direito comunitário, como o impõe toda a jurisprudência do TJCE, bem como “a desencadear o reenvio a título prejudicial para o TJCE, previsto no art. 177.º do TCE” .
10.3. O mencionado artigo 6.º da Directiva n.º 77/187/CEE do Conselho, de 14 de Fevereiro de 1977, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos, dispõe que:
“1. O cedente e o cessionário são obrigados a informar os representantes dos trabalhadores afectados pela transferência, na acepção do n.º 1 do artigo 1.º, do seguinte:
- motivos da transferência,
- consequências jurídicas, económicas e sociais da transferência para os trabalhadores,
- medidas projectadas em relação aos trabalhadores. O cedente é obrigado a comunicar essas informações aos representantes dos trabalhadores em tempo útil antes da realização da transferência. O cessionário é obrigado a comunicar essas informações aos representantes dos trabalhadores em tempo útil, e em qualquer caso, antes que estes sejam directamente afectados pela transferência no que respeita às suas condições de emprego e de trabalho.
2. Se o cedente e o cessionário projectarem tomar medidas em relação aos respectivos trabalhadores, são obrigados a proceder, em tempo útil, a consultas sobre essas medidas com os representantes dos trabalhadores, tendo em vista alcançar um acordo.
3. Os Estados-membros cujas disposições legislativas, regulamentares e administrativas prevejam a possibilidade de os representantes dos trabalhadores poderem recorrer a uma instância de arbitragem para obter um decisão sobre as medidas a tomar em relação aos trabalhadores, podem limitar as obrigações previstas nos n.os 1 e 2, quando a transferência realizada provoque, a nível do estabelecimento, uma modificação susceptível de acarretar para uma parte importante dos trabalhadores desvantagens substanciais. A informação e a consulta devem incidir, pelo menos, sobre as medidas projectadas em relação aos trabalhadores. A informação e a consulta devem realizar-se em tempo útil antes de ocorrida, a nível estabelecimento, a modificação referida no primeiro parágrafo.
4. Os Estados-membros podem limitar as obrigações previstas nos n.os 1, 2 e 3 às empresas ou aos estabelecimentos que preencham, no que se refere ao número de trabalhadores empregados, as condições para a eleição ou designação de um órgão colegial que represente os trabalhadores.
5. Os Estados-membros podem prever que, no caso de não haver representantes dos trabalhadores numa empresa ou num estabelecimento, os trabalhadores afectados sejam previamente informados da iminência da transferência, na acepção do n.º 1 do artigo 1.º”.
10.4. Ora, antes de mais, cumpre notar que, no caso sub judicio, não se vislumbra sequer qualquer fundamento que justifique a chamada à colação de uma
“interpretação conforme ao direito comunitário”, porquanto, desde logo, não subsiste nenhuma antinomia entre o sentido normativo emergente da norma constitucional e aqueloutro extraível do artigo 6.º da mencionada Directiva comunitária, além de que [rectior: até porque] a ratio e a intentio normativas não são, quanto ao problema que recortam, equiparáveis.
É que, na verdade, a injunção constitucional estabelecida na alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º da nossa Lei Fundamental contende, na essência, com os requisitos conformadores da produção legiferante, estabelecendo, tout court, uma exigência quanto ao procedimento a seguir no domínio da elaboração da legislação do trabalho, não sendo possível daí extrair qualquer exigência quanto ao conteúdo material da norma que esteja em causa. Ao invés, a Directiva 77/187/CE não cuida de estabelecer quaisquer exigências ao nível do procedimento de produção legislativa, tratando, outrossim, de impor a realização de um objectivo em sede da regulamentação material do problema dos direitos dos trabalhadores no caso de transmissão do estabelecimento. Por outras palavras, de um lado está em causa “um vício relativo ao complexo de actos necessários para a produção final do acto normativo” (nas palavras de Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 2002, p. 949), do outro, o conteúdo do acto normativo, independentemente do procedimento que presida à sua criação. Em consequência, não decorre assim de tal instrumento de direito comunitário que esteja em causa um procedimento de criação legislativa que deva ser considerada na ponderação da questão de existência da alegada questão de inconstitucionalidade formal, até porque, desde logo, se trata de matéria que a directiva não aborda e que, de resto, é expressamente deixada ao cuidado do direito interno dos Estados-Membros.
10.5. Sustenta, porém, o recorrente, convocando aquela norma constante da referida Directiva, que “sofrem de inconstitucionalidade formal os diplomas que, versando sobre transformação de empresas (criando novas empresas), e procedendo por via disso, à transferência de trabalhadores, não prevejam mecanismos de consulta que permitam efectivamente chegar-se a um acordo entre a entidade patronal e os trabalhadores”.
É dentro de uma tal perspectiva de que a interpretação do preceito constitucional deve acolher, in casu, o estipulado pela Directiva, sancionando-se com “inconstitucionalidade” todas as normas que não cumpram os mencionados objectivos que o recorrente acaba, de modo indirecto, por submeter também a juízo a própria questão do (in)cumprimento do preceituado pelo direito comunitário.
Colocada assim a questão, e independentemente do problema concernente à posição relativa que as normas emanadas das instituições comunitárias ocupam no âmbito da nossa ordem jurídica e do que já se disse quanto ao âmbito material regulado pela Directiva, importa reconhecer que o que importa agora dirimir respeita directamente à determinação do estrito sentido jurídico-normativo do parâmetro constitucional, sendo em tal sede que, no âmbito do presente processo de fiscalização concreta, há que equacionar a relevância da mencionada directiva comunitária.
A argumentação do recorrente não merece, todavia, acolhimento. Desde logo há que notar que não está em causa, no recurso, uma apreciação da desconformidade do direito ordinário com as normas comunitárias, questão essa que, como se compreende, não integra a esfera de competência cognitiva deste Tribunal, importando assim concluir, dentro da problemática do equacionamento da relevância do direito comunitário como parâmetro de sindicância directa do direito interno, que a violação das normas comunitárias – aqui incluindo não apenas as vicissitudes inerentes à não transposição das directivas, como também a problemática do reconhecimento, ex vi do acquis communautaire firmado por diversas decisões do Tribunal de Justiça, do efeito directo de tais instrumentos normativos – que este problema não é susceptível de qualificar-se, recta via, como um problema de “constitucionalidade” que possa ser sindicado no âmbito da nossa jurisdição constitucional (cf., inter alia, Cardoso da Costa, O Tribunal Constitucional Português e o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, in Ab uno ad omnes – 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 1363 e ss., maxime, 1371 e ss.; Maria Helena Brito, Relações entre a ordem jurídica comunitária e a ordem jurídica nacional, in Estudos de Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 310 e ss.; António de Araújo, Miguel Nogueira de Brito, Joaquim Pedro Cardoso da Costa, As relações entre os Tribunais Constitucionais e as outras Jurisdições Nacionais, incluindo a interferência, nesta matéria, da acção das jurisdições europeias, in Estudos de Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, cit., pp. 267 e ss.; e, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, os Acórdãos n.os 326/98 - publicado no Diário da República II Série, de 14-07-1998 -, 621/98 - inédito -,
93/01 – publicado no Diário da República II Série, de 05-06-2001 - e 164/01 - inédito). Na verdade, o Tribunal Constitucional, no domínio dos recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do artigo 70, n.º 1, da LTC, limita-se a sindicar, sub species constitutionis, as decisões jurisdicionais que apliquem norma infraconstitucional cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O objecto do recurso, há-de ser, pois, uma norma, e o parâmetro de sindicância uma norma constitucional. Nesta sede, a intervenção do Tribunal passa, claro está, pela densificação interpretativa do texto constitucional, sendo forçoso reconhecer que, nesse domínio, o problema de determinação do sentido jurídico-normativo do texto constitucional não dispensa, decerto, um esforço de adequação prático-problemática do objecto interpretativo circunstancialmente em causa, não sendo de estranhar que aí se relevem as pertinentes valências jurídicas de molde a apurar e densificar o conteúdo positivo de uma dada norma constitucional. Ora, a delimitação do âmbito de relevância normativa e do específico recorte das matérias constitucionais bem como o apuramento do concreto sentido jurídico-normativo de um preceito constitucional não se encontram, em absoluto, dependentes do teor normativo plasmado nas directivas comunitárias, em termos de a inobservância das injunções constantes de tais instrumentos normativos se configurar como problema de constitucionalidade, sob pena de se extrair deles um parâmetro de fiscalização a acrescer à relevância material-normativa dos preceitos constitucionais, aditando-lhes um conteúdo normativo que, de todo, não é possível extrair destes.
10.6. Dada a conclusão a que se chegou, de a questão de inconstitucionalidade formal suscitada pelo recorrente não poder ser decidida por aplicação da transcrita norma da referida Directiva Comunitária, não pode deixar de considerar-se como não pertinente o pedido de reenvio interpretativo da mesma Directiva que foi efectuado pela recorrente e que, por isso, se indefere. A este propósito da pertinência do pedido de reenvio - e sem deixar de referir que, como se afirmou no Acórdão n.º 606/94, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º volume, p. 161 e ss., são essencialmente distintas as condições da sua admissibilidade das que recortam os recursos de constitucionalidade e que este Tribunal, no seu Acórdão n.º 163/90 (publicado no Diário da República II Série, de 18 de Outubro de 1991) reconheceu estar sujeito à obrigação de “reenvio prejudicial” para o Tribunal de Justiça no
âmbito da discussão da interpretação ou da validade de uma norma comunitária -
é caso de lembrar aqui o que se escreveu no Acórdão n.º 163/90, publicado no Diário da República II Série, de 18 de Outubro de 1991:
«Com o reenvio prejudicial, o que, pois, se pretende é conseguir uma interpretação uniforme do direito comunitário em toda a Comunidade.
O artigo 177.º do Tratado CEE permite, assim, ao juiz nacional interrogar o Tribunal de Justiça das Comunidades sobre a interpretação de determinada norma comunitária.
(...)
Quando é que, então, uma questão de interpretação de uma norma de direito comunitário se deve considerar pertinente para o efeito de dar lugar ao reenvio prejudicial?
Naturalmente, quando no tribunal reenviante correr termos um processo, mostrando-se necessária para a resolução do caso a opinião do Tribunal das Comunidades – o que pressupõe, claro é, que o caso sub judicio tenha de ser decidido de acordo com aquela regra comunitária.
É que o Tribunal das Comunidades não é uma auditoria jurídica que deva ficar sujeita às curiosidades ou às ignorâncias de quem tem legitimidade para provocar a sua intervenção – os juízes nacionais. As suas decisões hão-de ter efeito útil, o que só sucederá se elas forem relevantes (indispensáveis) para a resolução do caso que o juiz reenviante tem para decidir.
A este propósito, escreve João Mota de Campos (Direito Comunitário, II, Lisboa, p. 373):
[...] se ao TCE cabe a responsabilidade última de interpretar a norma comunitária, é ao tribunal nacional que incumbe aplicá-la ao caso concreto após ter examinado, com total independência de julgamento, se a decisão da causa que lhe é submetida comporta ou não a aplicação do direito comunitário.
Ora, se o tribunal nacional considerar que o litígio sub judice não deve ser decidido de acordo com as normas comunitárias mas tão-somente na conformidade com as disposições de direito interno, parece evidente que não lhe pode ser imposta a obrigação de solicitar a interpretação [...] de uma norma comunitária desprovida de interesse para o julgamento da causa – e isto ainda que alguma das partes a tenha indevidamente invocado e suscitado a questão da sua interpretação [...]».
Não tendo o sentido da norma constitucional de ser decidido por aplicação da norma comunitária não há, assim, que efectuar o pedido de reenvio interpretativo previsto no art.º 177º do Tratado CEE.
10.7. Resta agora considerar se foi afectado o direito constitucionalmente garantido às associações sindicais de participar na elaboração da legislação do trabalho, ex vi artigo 56.º, n.º 2, alínea a) da Constituição.
Quanto a este ponto, deve atentar-se, desde logo, na ratio decidendi que determinou o juízo de não inconstitucionalidade no Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa.
Aí se considerou que o artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 198/92, “mais não fez do que acolher e repetir estatuições da lei geral, quer no tocante à relação jurídica privada laboral (artigo 37.º da LCT.), quer no concernente à cisão das sociedades (artigo 119.º p) do Cód. Soc. Com.), nada tendo de inovador, seja para mais, seja para menos, seja de diferente...”
Como se compreende, este entendimento prejudica a procedência da alegada inconstitucionalidade formal: sustentando-se que o regime em apreciação não impõe disciplina diferente da que resulta do regime então vigente quanto à matéria de transmissão dos contratos de trabalho em caso de transmissão de parte do estabelecimento, improcederá a qualificação da norma sindicanda como legislação do trabalho para efeitos do disposto no artigo 56.º, n.º 2, al. a), da Constituição da República. Tal regime, que se entendeu aplicável à situação emergente dos autos, decorria, conforme ficou assente na decisão recorrida, do disposto nos artigos 37.º da LCT e 119.º, al. p) do Código das Sociedades Comerciais.
10.8. Ora, no Acórdão n.º 119/99, publicado no Diário da República II Série, de
2 de Julho de 1999, relativamente ao disposto no artigo 119.º, alínea p), do Código das Sociedades Comerciais, sustentou-se que:
«(...)
5. - A norma que a decisão recorrida desaplicou com fundamento na sua inconstitucionalidade é uma norma que manteve a sua redacção originária - desde o Decreto-Lei nº 262/86, de 2 de Setembro -, não constando idêntica norma do diploma que, sobre esta matéria, antecedeu o CSC - o Decreto-Lei nº 598/73, de 8 de Novembro, e que regulou a fusão e a cisão de sociedades comerciais.
Nos termos do artigo 118º do CSC, é permitido a uma sociedade destacar parte do seu património para com ela constituir outra sociedade (cisão simples) ou dissolver-se e dividir o seu património, sendo cada uma das partes resultantes destinada a constituir nova sociedade (cisão-dissolução) ou ainda, destacar partes do seu património ou dissolver-se, dividindo o património em duas ou mais partes e fundi-las com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades (cisão-fusão).
Para realizar qualquer das modalidades de cisão, o CSC impõe que a administração da sociedade cinditária ou das sociedades participantes tenham de elaborar um projecto de cisão, de onde constem para além dos elementos necessários para o perfeito conhecimento da operação quer no aspecto jurídico quer económico, os elementos referenciados nas alíneas a) a p), elementos estes que constituem, assim, 'o conteúdo mínimo do projecto de cisão de sociedades'. É assim que se deve entender a norma da 6ª Directiva do Conselho da CEE, de 17 de Dezembro de
1982, que indubitavelmente esteve na base do preceito em apreço. Com efeito, o artigo 3º da Directiva impõe a elaboração de um projecto escrito de cisão e o número 2 do preceito determina que 'o projecto de cisão indicará, pelo menos
(…)'.
No caso da sociedade em apreço, uma empresa pública, depois transformada em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, a administração elaborou um plano de cisões a realizar, fazendo corresponder cada nova sociedade a constituir a cada um dos diferentes Centros de Exploração que a RNIP detinha, sabendo-se de antemão que, após as cisões, a empresa originária se destinava a ser dissolvida, após encerramento da liquidação, nos termos do que se dispunha no artigo 10º do Decreto-Lei nº 309/94, de 2 de Dezembro.
Ora, a cisão consiste essencialmente na operação pela qual uma dada sociedade fracciona o seu património activo e ou passivo, extinguindo ou não a sua personalidade para dar origem a novas sociedades ou para juntar a parte destacada do património a outras sociedades.
Quanto à alínea p) do artigo 119º do CSC, a sua estatuição é clara e inequívoca: por um lado, enuncia um princípio de direito laboral, que, todavia, nada acrescenta aos princípios já vigentes nesse direito: os contratos de trabalho não se extinguem por força da cisão da sociedade; por outro lado, refere que neste aspecto, o conteúdo do projecto escrito de cisão tem de conter necessariamente a indicação de quem passará a deter a posição contratual decorrente dos contratos de trabalho com a sociedade ou sociedades intervenientes.
Embora seja este o conteúdo da norma que, concretamente, foi desaplicada na decisão recorrida, o certo é que, no que se refere à empresa em causa, a específica normação produzida com vista à alteração da sua natureza jurídica e
às posteriores cisões, já continha uma norma com conteúdo idêntico ao do artigo
119º, alínea p) do CSC. Trata-se do n.º 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 12/90, de 6 de Janeiro, no qual se determinava que o Conselho de Administração submeterá ao Ministro das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, 'o plano geral das cisões a efectuar, com menção e justificação dos seguintes pontos para cada uma das sociedades cuja constituição seja prevista: (…) e) Contratos de trabalho a transmitir'.
De qualquer modo, a norma do artigo 119º, alínea p), do CSC, é claramente uma norma garantística, de protecção dos trabalhadores das sociedades intervenientes na cisão: para além de impor que no projecto de cisão conste a quem fica atribuída a posição decorrente dos contratos de trabalho dos trabalhadores das sociedades intervenientes, a norma estabelece expressamente que tais contratos de trabalho não se extinguem com a cisão, devendo ser transmitidos, se se tratar de cisão total ou não, se a cisão for parcial.
Poderá considerar-se uma norma com este conteúdo, como ‘legislação do trabalho’, para os efeitos dos artigos 55º, alínea d) e 57º, nº1, alínea a), da Constituição (na versão da Revisão Constitucional de 1982?
6. - De acordo com as referidas normas, as organizações representativas dos trabalhadores (comissão de trabalhadores e associações sindicais) têm direito de
'participar na elaboração da legislação do trabalho'.
A Constituição não define o que considera legislação do trabalho, mas a lei ordinária - a Lei n.º 16/79, de 16 de Maio - que veio regulamentar o exercício do direito de participação, procurou estabelecer o conceito de ‘legislação do trabalho’, considerando que é a que 'visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores individuais, enquanto tais e suas organizações, especificando depois, exemplificativamente, nas diversa alíneas e no n.º 2 do preceito. Assim, há que incluir dentro da
‘legislação do trabalho’ normas sobre contrato individual de trabalho e relações colectivas de trabalho, organizações representativas de trabalhadores, direito à greve, salário mínimo nacional e horário nacional de trabalho, formação profissional, acidentes de trabalho e doenças profissionais e a ratificação de convenções internacionais, processo laboral, podendo, em geral, afirmar-se que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conceito abrange a legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição (cfr. os Acórdãos n.ºs 31/84, 15/88, 201/90, 93/92, 146/92 e
155/92, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', vols. 2º, pág.; 11º, pág.153;
16º, pág.493; 21º, págs 91, 613 e 677, respectivamente).
A norma constante da alínea p) do artigo 119º do CSC enuncia um dos elementos que deverão constar, nos termos do corpo do artigo, do projecto de cisão que terá de ser elaborado pela administração da sociedade a cindir. A intenção do legislador, como transparece do texto do corpo do artigo, é bem clara: trata-se de, antecipadamente à concretização da operação, reunir 'os elementos necessários ou convenientes para o perfeito conhecimento da operação visada'. E compreende-se que, tendo de haver um acordo de vontades, os participantes devem estar informados dos direitos e deveres que assumirão em consequência desse acordo. É nesse nível que se situa a exigência legal, que de forma nenhuma tem por destinatários os trabalhadores. Quanto a estes, rege o artigo 37º da Lei do Contrato Individual de Trabalho (LCIT), garantindo que a 'posição que dos contratos de trabalho decorre para a entidade patronal transmite-se ao adquirente, por qualquer título, do estabelecimento onde os trabalhadores exerçam a sua actividade ...' da qual se retira o princípio geral do direito do trabalho: o princípio da subsistência dos contratos de trabalho, independentemente de quem for, no momento, a respectiva entidade patronal.
Certo é que na alínea p) em questão se refere que os contratos de trabalho se não extinguem com a cisão. O contexto em que vem inserida esta afirmação não permite, contudo, que se atribua à alínea valor sequer confirmativo do regime geral. Nessa parte, a norma é meramente informativa, como se o legislador pretendesse lembrar a quem vai elaborar o projecto que os contratos de trabalho não podem dar-se como extintos em consequência da fusão. O projecto a elaborar não poderá entrar em linha de conta com os efeitos que, hipoteticamente resultariam da extinção de alguns contratos.
Nesta medida a alínea p) não se projecta, nem sequer reflexamente, na esfera jurídica dos trabalhadores. Só forçando a interpretação para além do que razoavelmente se extrai do texto é que se encontrará uma tutela dos mesmos, sediada no processo de formação de vontades que, inclusivamente, em face dos termos em que se propõe a realização da operação, poderão não vir a formalizar o acordo projectado.
Uma norma deste tipo não é «legislação do trabalho» para o efeito de exigir a prévia audição das organizações representativas dos trabalhadores.
Com efeito, em tal conceito tem-se considerado caberem as normas que respeitam directamente à regulamentação e efectivação de todos os direitos fundamentais reconhecidos aos trabalhadores na Constituição, mas não já as normas que apenas tutelem indirecta e reflexamente esses direitos.
Nestes termos, tem de se concluir que não se verifica no caso dos autos a inconstitucionalidade formal da norma do artigo 119º, alínea p) do CSC, ainda que do respectivo diploma que o aprovou não conste qualquer indicação de terem sido ouvidas as organizações representativas dos trabalhadores, por violação dos artigos 55º, alínea d) e 57º, nº1, alínea a), da Constituição (na versão da Revisão Constitucional de 1982)».
A argumentação plasmada no excerto transcrito do Acórdão n.º 119/99 afigura-se, mutatis mutandis, transponível para o caso sub judicio. Contudo, sempre deverá atentar-se, de iure constituto, na natureza específica do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 198/92.
10.9. O regime do direito das sociedades, decorrente do artigo 119.º do Código das Sociedades Comerciais, teria, como se entendeu no Acórdão da Relação de Lisboa, aplicação ao caso sub judicio ex vi o disposto nos artigos 3.º e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 260/76, de 8 de Abril, que regula as bases gerais das empresas públicas. O mesmo sucedendo com o artigo 37.º da LCT que se refere expressamente à hipótese de transmissão do estabelecimento.
Dispõe esta norma que “a posição que dos contratos de trabalho decorre para a entidade patronal transmite-se ao adquirente, por qualquer título, do estabelecimento onde os trabalhadores exerçam a sua actividade (...)”
(n.º 1), sendo tal regulamentação “aplicável, com as necessárias adaptações, a quaisquer actos ou factos que envolvam a transmissão da exploração do estabelecimento” (n.º 4). Tal transmissão pode, por sua vez, abranger uma multiplicidade de situações (v. g. trespasse, venda judicial do estabelecimento, alteração na sua titularidade decorrente da cisão ou da fusão de sociedades), afirmando-se para tais hipóteses um princípio, essencialmente garantístico, de subsistência dos contratos individuais de trabalho, que se mantêm nos casos
(diversificados) onde exista transmissão do estabelecimento. Nesse sentido e reconhecendo-se, como emerge da decisão recorrida, a compatibilidade deste regime geral com o estatuído no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 198/92, sempre ficaria em aberto a tarefa de concretizar, nos casos onde se estivesse perante uma cisão por destacamento, quais os contratos de trabalho que acompanham o estabelecimento.
Por sua vez e quanto à intervenção do conselho de administração da empresa cindida nessa matéria, o regime aplicável à situação dos autos, decorrente do artigo 119.º, alínea p) do Código das Sociedades Comerciais, confirma, por remissão do regime geral regulamentador do estatuto das empresas públicas, essa competência ao conferir à administração da sociedade a cindir a
“atribuição da posição contratual da sociedade ou sociedades intervenientes, decorrente dos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, os quais não se extinguem por força da cisão”.
Nestes termos, a norma em crise não estabelece qualquer alteração inovadora do regime normativo tido por aplicável ao caso concreto: nos termos conjugados do artigo 37.º da LCT e do artigo 119.º, alínea p) do CSC, o poder de, no âmbito da cisão da empresa, determinar os contratos de trabalho a transferir para a empresa cisionária sempre caberia, por remissão do estatuto das empresas públicas, à administração da empresa cindida. Assim, pelo exposto, improcede a suscitada inconstitucionalidade formal do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro.
11. O problema da inconstitucionalidade material do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro.
11.1. A norma cuja inconstitucionalidade se questiona já foi sindicada sub species constitutionis por este Tribunal no recente Acórdão n.º
194/03, publicado no Diário da República II Série, de 10 de Novembro de 2003..
Tal aresto não julgou inconstitucional o preceito em crise, tendo formulado o seu juízo com base na seguinte argumentação:
«No caso vertente, há que apreciar a constitucionalidade de uma norma segundo a qual a determinação de quais os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial, E.P. seria efectuada pelo conselho de administração da RDP, E.P., na sequência da criação daquela primeira empresa, por destaque de parte do património da segunda. Relativamente a situação paralela no direito privado – a da cisão de sociedades comerciais –, prevê o artigo 119º, alínea p) do Código das Sociedades Comerciais, a elaboração de um projecto da cisão pela administração da sociedade a cindir, projecto, esse, do qual há-de resultar a
“atribuição da posição contratual da sociedade ou sociedades intervenientes, decorrente dos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores, os quais não se extinguem por força da cisão”. Ora, num caso relativo à cisão de sociedades comerciais também de capitais públicos, e que tinham como antecessoras uma empresa pública, este Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre a conformidade constitucional desta disposição, entendida “como permitindo que a R.N.I.P. pudesse ordenar a mudança do autor para a nova sociedade resultante da cisão, a ‘Rodoviária do Sul do Tejo’”, a qual vinha impugnada por violação do princípio da segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição da República, quando entendida no sentido “de se considerar que a mudança do trabalhador deriva de uma decisão unilateral da entidade empregadora”. Fê-lo no Acórdão n.º 119/99 (publicado no Diário da República, II série, n.º 152, de 2 de Julho de 1999), que não julgou inconstitucional esta norma. E cumpre recordar o que então se disse a propósito do confronto com a garantia da segurança no emprego, não só por tal garantia ter sido invocada pelo ora recorrente perante o tribunal recorrido, como por as considerações então expendidas se afigurarem em grande medidas transponíveis para a análise da norma ora em apreço à luz do artigo 53º da Constituição:
“A Constituição, no seu artigo 53º estabelece que ‘é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.’ Esta garantia demonstra a natureza essencial do direito ao trabalho e a sua ligação à dignidade do homem, interferindo de modo directo com a ordenação das relações contratuais de trabalho. A garantia constitucional da segurança no emprego pressupõe, desde logo, a garantia da estabilidade da posição do trabalhador na relação de trabalho e a sua não funcionalização aos interesses do empregador. Daí que sejam proibidos os despedimentos sem justa causa, não podendo o trabalhador ser privado do seu trabalho por mero arbítrio patronal. Todavia, a garantia constitucional em apreço não obsta à consagração legal de certas causas de rescisão unilateral do contrato de trabalho pela entidade patronal com base em fundamentos objectivos. Também aquela garantia, se obsta a que o trabalhador seja despedido contra sua vontade, já não impede que ele se despeça unilateralmente, desde que fique ressalvado o direito da entidade empregadora a um adequado aviso ou ao ressarcimento de eventuais prejuízos. Ora, uma norma como aquela que está em causa nos autos e que se limita a estabelecer a obrigatoriedade de um projecto de cisão no qual se atribua a posição que para as sociedades envolvidas decorre dos contratos de trabalho e que expressamente se determine que tais contratos de trabalho se não extinguem por força da cisão, não pode, de todo em todo, violar a garantia da segurança no emprego, tal como resulta da norma do artigo 53º da Constituição. Com efeito, garantida que está, por força da parte essencial do referido comando normativo, a manutenção dos contratos de trabalho, que não poderão cessar pelo facto da cisão, desta transformação da entidade empregadora apenas pode resultar a transmissão dos mesmos contratos: ou de todos eles, no caso de a empresa cinditária se dissolver ou extinguir ou de parte para a ou para as novas empresas formadas pela cisão. O que significa que a mera mudança de entidade patronal continuando garantida a continuação das relações laborais, não pode violar a garantia de segurança no emprego, uma vez que não só persiste o contrato de trabalho, mantendo os trabalhadores o direito à antiguidade, à retribuição e às regalias de que gozava, como também a própria lei ordinária, ao impor a transmissão dos contratos de trabalho, não pode deixar de significar que a modificação da entidade empregadora não constitui um facto que, de per si, impossibilite a subsistência do vínculo laboral. Não ocorre, por conseguinte, a inconstitucionalidade material da norma da alínea p) do artigo 119º do Código das Sociedades Comerciais, que a decisão recorrida considerou verificada por violação da segurança no emprego, constante do artigo
53º da Constituição.”
Como já se referiu, estas considerações são transponíveis para o confronto do artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro com o artigo 53º da Constituição, pois está também aqui em questão a possibilidade de o conselho de administração da RDP, E.P. determinar quais os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial, E.P., na sequência da criação desta empresa, por destaque de parte do património da primeira. E nesse mesmo artigo ficou igualmente garantida a continuação das relações laborais, por força do n.º 2, no qual se prevê expressamente a manutenção pelos trabalhadores transferidos, perante a Rádio Comercial, E, P., de “todos os direitos e obrigações de que eram titulares face à RDP, E. P.” Também aqui não só persiste o contrato de trabalho, como os trabalhadores mantêm, por exemplo, o direito à antiguidade, à retribuição e às regalias de que gozavam, não sendo sequer discutido que a modificação da entidade empregadora não impossibilita, de per si, a subsistência do vínculo laboral. Antes este vínculo continua com a nova empresa, sendo insuficiente o argumento de que a mudança de empregador é um facto relevante, que pode afectar, no futuro, a situação dos trabalhadores, pois é preciso não esquecer que a transmissão da posição contratual se dá como consequência da cisão da anterior empresa, com constituição de uma nova, constituída por destaque da primeira, e que parcialmente lhe sucede. Não se vislumbra, pois, qualquer violação do direito à segurança no emprego na norma em causa.
5. Defende o recorrente que o artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro viola o princípio da igualdade, na medida em que se teria permitido ao Conselho de Administração da RDP, E.P., o exercício de um poder discricionário. Aquele princípio da igualdade em sentido material, enquanto princípio dirigido ao legislador, imporia que este definisse critérios para a transferência de trabalhadores. Ora, é certo que o princípio da igualdade se dirige, efectivamente, tanto ao legislador como ao aplicador e ao intérprete da lei. Tal princípio tanto proíbe que situações de relevância jurídica igual sejam tratadas diversamente, sem justificação razoável, como que não sejam realizadas diferenciações impostas pela necessidade de tratar desigualmente o que é diverso. Proíbe-se, pois, que o legislador preveja tratamentos jurídicos diferenciados sem justificação razoável, ou que uniformize a disciplina jurídica em violação de imposições de diferenciação. No presente caso, a alegação de violação do princípio da igualdade não resulta da violação de uma alegada imposição de diferenciação – de se tratar igualmente o que é desigual –, que não se vislumbra qual poderia ser no presente caso. Inversamente, porém, logo se vê ainda que da norma em apreço também não resulta qualquer tratamento diverso para os trabalhadores da RDP, E. P., mas apenas a atribuição ao conselho de administração da RDP, E. P. da competência para determinar os contratos de trabalho a transferir para a nova empresa. Não se retira, na verdade, da norma do artigo 6º, n.º 1, qualquer distinção de tratamento jurídico entre os trabalhadores em causa, mas apenas a previsão de que os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial, E.P. seriam determinados pelo conselho de administração. Não há, pois, sequer que entrar na análise de eventuais justificações para a distinção de tratamento, pura e simplesmente porque esta não resulta da norma em causa. Não pode, assim, deixar de concordar-se com o tribunal recorrido, quando afirmou que, a haver violação do princípio da igualdade, ela apenas poderia ser directamente imputável a actos do conselho de administração – aos actos traduzidos justamente na determinação de transmissão ou não dos contratos para a nova empresa – mas nunca à norma legal em causa (acrescentando, ainda, o tribunal a quo que, mesmo nesse plano, o recorrente não indicou a ocorrência de tratamento desigual de situações idênticas ou de uso arbitrário da faculdade de selecção). Como é evidente, da pura e simples atribuição ao conselho de administração do poder de decidir quais as posições contratuais que se transmitem e quais as que permanecem na RDP, E.P. não resulta, na verdade, qualquer ofensa ao princípio da igualdade, desde logo, porque não há aí qualquer tratamento diferenciado. Este tratamento diferenciado só poderia resultar dos actos praticados no exercício desta competência, e não da norma, podendo, aliás, a entidade empregadora utilizar critérios razoáveis, relacionados com as necessidades de gestão e os objectivos da nova empresa, ao proceder à determinação da transmissão dos contratos.
6. Na perspectiva do recorrente, a violação do princípio da igualdade ocorreria como consequência da falta de indicação, na norma, de critérios, ou do seu processo de definição, para a determinação dos contratos de trabalho a transferir. A norma em causa, por não conter tais critérios, não garantiria o respeito pelo princípio da igualdade. Trata-se, assim, como se vê, de um argumento que se situa, não no plano da falta de justificação de um tratamento diferenciado pela própria norma, mas no de uma omissão, que impediria que a observância da igualdade ficasse assegurada – ou, por outras palavras, de uma omissão que permitiria a violação do princípio da igualdade. Este argumento é, porém, improcedente, não só porque o princípio da igualdade não vincula apenas o legislador, mas também os órgãos da administração que actuam no exercício de competências legalmente atribuídas, como porque, se consequente, levaria à afirmação da violação do princípio da igualdade por todas as normas que atribuem a tais órgãos competência para tomar decisões mais ou menos discricionárias, sem desde logo fixarem critérios que garantam que as decisões a tomar observarão o princípio da igualdade.
Trata-se, pois, de um argumento que transpõe para o plano das exigências à norma aquilo que o princípio da igualdade só pode exigir ao aplicador do direito, no momento da concretização da lei, pelo exercício da competência que esta lhe atribui, e que não pode acolher-se.
O mesmo pode, aliás, dizer-se da alegação de que a norma em crise violaria o artigo 112º, n.º 6, da Constituição da República, que veda que a lei atribua “a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
Na verdade, essa norma confere ao conselho de administração competência para determinar os contratos de trabalho que se transferem. Mas não pode acompanhar-se a afirmação de que, com essa determinação, se está a interpretar ou a integrar a norma, tal como quando se exerce uma competência legalmente conferida se não está a preencher qualquer lacuna ou por outra forma a integrar ou interpretar a norma atributiva de competência. A escolha de quais os contratos de trabalho que se transferem representa, antes, o exercício da competência atribuída pela norma em causa, que não determinou a transferência dos contratos de trabalho, e antes se limitou a atribuir ao conselho de administração competência para decidir quais se transferem – isto é, tal escolha constitui justamente a execução ou concretização que não cabe já ao legislador.
Posição diversa, segundo a qual o artigo 6º, n.º 1 contende com o artigo 112º, n.º 6, só poderia resultar do entendimento de que a norma do artigo 6º, n.º 1, previu logo a transferência de certos contratos de trabalho, e que a determinação de quais eram – ou dos critérios, técnicos ou de gestão, para tal, naturalmente ligados às características e objectivos da empresa a criar –, teria também de ser efectuada pelo legislador. A verdade, porém, é que pode mesmo duvidar-se, pelo contrário, de que o legislador, ao prever a criação da Rádio Comercial, E.P., por destaque da RDP, E.P., pudesse estar em posição de, desde logo e em abstracto, determinar que contratos se deveriam transferir, ou, mesmo, os critérios decisivos para essa transmissão, pois esta deveria naturalmente obedecer a critérios técnicos e de gestão que só podem ser precisados considerando a realidade concreta dos objectivos, da situação e dos recursos humanos das empresas em causa. Seja como for quanto a esta possibilidade, é, porém, certo que a atribuição, ao conselho de administração da empresa a criar, do poder de determinar que contratos se transfeririam não pode considerar-se violadora do artigo 112º, n.º
6 da Constituição da República, pois trata-se tão-só do poder para executar a lei, no exercício da competência que esta atribuiu (e não de a interpretar, integrar ou modificar). Não se verificando a violação, pela norma em análise, nem da garantia da segurança no emprego, nem do princípio da igualdade, nem do princípio da legalidade, há, por conseguinte, que negar provimento ao presente recurso.».
O entendimento firmado em tal jurisprudência deve, quanto à matéria aí considerada, reiterar-se no presente caso concreto.
11.2. Cumpre agora apurar da (in)compatibilidade constitucional da norma em crise com o artigo 47.º da Constituição da República, importando assim indagar se o artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro – que, como se referiu, confere ao conselho de administração da RDP, E.P. a possibilidade de determinar quais os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial, E.P. na sequência da criação desta empresa, por destaque do património da primeira –, contende com a “Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública”, tutelada pelo artigo 47.º da Lei Fundamental.
Segundo a perspectiva sufragada pelo Recorrente, a norma sindicanda contende com o direito fundamental agora em apreciação na medida em que permite que “por livre arbítrio do C.A., de uma empresa cesse um vínculo laboral, sem justa causa, e nasça um outro sem intervenção de qualquer das partes que ficarão vinculadas” por se “impôr a um jornalista (...) uma relação laboral, não só com uma entidade empregadora desconhecida, como principalmente com um projecto editorial não definido (...) o que, inequivocamente viola o princípio da liberdade do trabalho (...) que consagra a possibilidade do trabalhador escolher não só o local de trabalho, como a própria actividade a prestar”.
11.2.1. No que concerne, em primeiro lugar, ao parâmetro jusfundamental circunstancialmente em causa, importa começar por reter, como vem sendo salientado pela doutrina constitucionalista, que o seu âmbito normativo se espraia numa diversidade de dimensões constitutivas, prefigurando-se, assim, como um direito complexo, cujo sentido tutelar não é absolutamente mono-núclear. De todo o modo, as raízes fundamentadoras que suportam o tronco basilar da liberdade de escolha de profissão acabam por estar ineliminavelmente ligadas à tutela da dignidade ética da pessoa humana, constituindo um aspecto irredutível do livre desenvolvimento da sua personalidade e um meio de tutela específica da liberdade individual de cada um. Tal entendimento é igualmente acolhido na Alemanha, onde, a propósito da Freie
Wahl des Berufs, des Arbeitsplatzes und der Ausbildungsstätte, se vem salientando – muito por responsabilidade da jurisprudência do Bundesverfassungsgericht – o carácter polimórfico deste direito fundamental, sem o qual o “desenvolvimento pessoal livre não seria imaginável” (cf. Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 19.ª ed., 1993, Heidelberg, pp. 417 e ss., que menciona diversas decisões do Tribunal Constitucional Federal), a par, também, do que sucede em Itália onde igualmente se enfatiza que a Constituzione tutela “un diritto alla scelta dell’attività lavorativa e del modo di esercitarla” como um “meio fundamental de actuação do direito ao desenvolvimento da personalidade” (cf. Grandi/Pera, Commentario breve alle leggi sul lavoro, 2.ª ed., Padova, 2001, p. 25 e ss., onde se menciona expressamente a orientação jurisprudencial da Corte Costituzionale relativamente ao artigo 4.º do texto constitucional italiano.
Posto tal pressuposto ontológico – e axiológico –, há que apurar, com interesse para a matéria dos autos, qual o âmbito normativo de tutela que está subjacente à consideranda imposição constitucional.
Ora, segundo o entendimento manifestado por Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra,
1993), a liberdade de profissão “enquanto direito de defesa (...) significa duas coisas: (a) não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão;
(b) não ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos. Mas o direito de escolha livre da profissão apresenta também uma dimensão positiva, conexionada com o direito ao trabalho e com o direito ao ensino, e que consiste designadamente em: (a) direito à obtenção dos requisitos legalmente exigidos para o exercício de determinada profissão, nomeadamente as habilitações escolares e profissionais; (b) direito às condições de acesso em condições de igualdade a cada profissão (...). A liberdade de escolha de profissão tem vários níveis de realização, não podendo naturalmente consistir apenas na liberdade de poder escolher livremente a profissão desejada. Os principais momentos são os seguintes (a) obtenção das habilitações (académicas, técnicas, etc.) necessárias ao exercício da profissão; (b) ingresso na profissão; (c) exercício da profissão; (d) progresso na carreira profissional”. Na mesma linha, Jorge Miranda (in Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3.ª edição, Coimbra, 2000) esclarece que “a liberdade de trabalho é (...), qualificadamente, liberdade de profissão ou liberdade dirigida a uma actividade com relevância económica identificada por factores objectivos sociais e jurídicos. E revela-se tanto liberdade de escolha quanto liberdade de exercício de qualquer profissão, visto que uma pressupõe a outra (...). [§] A liberdade de escolha de profissão decompõe-se em: 1.º direito de escolher livremente, sem impedimentos, nem discriminações, qualquer profissão; 2.º) direito de acesso à formação escolar correspondente; 3.º) direito de acesso à preparação técnica e
às modalidades de aprendizagem e de prática profissional que sejam necessárias;
4.º) direito de acesso aos requisitos necessários à promoção na carreira profissional e de obter as necessárias habilitações; 6.º) direito de mudar de profissão. (...) [§] Quanto à liberdade de exercício, por seu turno, ela desdobra-se em: 1.º) direito de obter, sem impedimentos, nem discriminações, as habilitações legais (que não somente escolares) e os restantes requisitos para o exercício da profissão; 2.º) direito de adoptar a modalidade jurídica de exercício da profissão que se prefira, contanto que compatível com a natureza das coisas e com os circunstancialismos económico-sociais; 3.º) direito de escolher o lugar, no país ou no estrangeiro, de exercício da profissão (sem prejuízo das limitações decorrentes do trabalho subordinado); 4.º) direito de prática não só de actos materiais mas também de actos jurídicos, sejam actos constitutivos de relações de trabalho (...), sejam actos impostos pela necessidade de exercício profissional (...), e, bem assim, direito de prática de actos jurídicos de desvinculação de relações de trabalho, observadas as respectivas regras; 5.º) inviolabilidade do domicílio profissional (...); 6.º) direito de sigílio profissional no âmbito correspondente à natureza e à deontologia de cada profissão; 7.º) direito de inscrição – e de não inscrição – em associações sindicais e de participação, através delas, na organização e na promoção da profissão; 8.º) quando se trate de trabalhadores por conta de outrem, direito de inscrição – e de não inscrição – em associações sindicais e de participação, através delas na contratação colectiva e na organização económica e social do País; 9.º) direito de não ser privado, senão nos casos e nos termos da lei e com todas as garantias, do exercício da profissão”.
Por sua vez e no que tange com a jurisprudência deste Tribunal, a liberdade de profissão foi caracterizada, no Acórdão n.º 46/84 (publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de 1984), como consistindo no direito de escolher a forma de actividade que se preferir, a implicar a faculdade de se mudar de trabalho, quando se desejar, e a compreender a possibilidade de ajustar o que mais convier, tanto no que toca à duração da jornada de trabalho, como no que respeita à retribuição ou a quaisquer outras condições. Tal entendimento foi sucessivamente densificado em ulteriores decisões, como se deu conta no Acórdão n.º 187/01 (publicado no Diário da República II Série, de
26 de Junho de 2001): “a liberdade de escolha de profissão ou trabalho, consagrada no artigo 47º, n.º 1, da Constituição, é um direito subjectivo – e não só uma garantia ou fundamento da organização económica –, que não tem apenas uma dimensão negativa, de 'direito de defesa', mas inclui uma dimensão positiva ligada ao 'direito ao trabalho' (v., por exemplo, o Acórdão n.º 328/94, in ATC, vol. 27º, pp. 963 e ss.). Por outro lado, inclui também um aspecto de liberdade de exercício da profissão, sem a qual a liberdade de escolha de nada valeria
(para a inclusão da liberdade de exercício, v., por exemplo, o Acórdão n.º
446/91, in ATC, vol. 20º, pp. 217 e ss., sobre o exercício da profissão de técnico da construção civil em Lisboa), e deve ser entendida em sentido amplo, de tal forma que, quando uma profissão (...) pode ser exercida de forma independente ou por conta de outrem, e ambas as formas de exercício assumem relevância social, a escolha de uma ou outra está também abrangida no âmbito de protecção do direito consagrado no artigo 47º, n.º 1 (...)”.
11.2.2. Emerge, assim, das considerações supra tecidas que a delimitação do
âmbito material de tutela do mencionado dispositivo constitucional, no que respeita ao caso decidendo, vai para além do estrito direito de acesso a uma profissão – e, nessa linha, o “direito-liberdade” [cf. G. Pera, “Professione e lavoro (libertà di), in Enciclopedia del Diritto, vol. XXXVI, Milão, 1987, pp.
1033 e ss.], a todos reconhecido, “de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho” visa, prima facie, a tutela de uma liberdade individual independentemente da subsistência de um concreto vínculo de natureza laboral –, envolvendo também o domínio do exercício concreto de uma profissão, bem como a liberdade de contratar – ou não contratar – com uma concreta entidade empregadora.
Ora, é neste domínio particular que se torna pertinente equacionar a resposta constitucionalmente adequada para aquelas situações onde exista, sem
(necessidade de) acordo do trabalhador, uma “transferência” do contrato de trabalho para uma “nova” entidade patronal.
Assim, fora dos casos onde se verifique uma verdadeira cessão da posição contratual que importa a modificação subjectiva na titularidade da relação jurídica – prefigurando-se inalterado o conteúdo do contrato, mantendo o trabalhador “perante o novo empregador (cessionário) (...) a mesma categoria, antiguidade, vencimento, etc., que tinha na relação com a anterior entidade patronal (cedente)” (cf. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, Coimbra,
2002, p. 681 e ss.) – com o assentimento do trabalhador, a nossa legislação laboral admite, nos casos onde exista uma transferência do estabelecimento
(artigo 37.º da LCT), uma subrogação ex lege (cf. Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, p. 90), ou, por outras palavras, uma “transferência da posição contratual [-laboral] ope legis” (cf. Pedro Romano Martinez, Op. cit., p. 682), que prescinde do assentimento do trabalhador, que vê a relação jurídica emergente do seu contrato de trabalho deslocar-se para a esfera de uma nova entidade patronal, distinta daquela com quem o trabalhador configurou inicialmente a sua relação laboral.
Este regime apresenta uma dúplice justificação: por um lado, pretendem-se acautelar os interesses do cessionário em receber uma empresa funcionalmente operativa, mas, por outro lado – e como foi acentuado no âmbito do direito comunitário pela directiva 77/187/CEE, e, posteriormente, pelas directivas 98/50/CE e 2001/23/CE –, a manutenção dos contratos de trabalho existentes à data da transferência para a nova entidade patronal pretende proteger os trabalhadores, garantindo a subsistência dos seus contratos – que se impõem inelutavelmente à nova entidade patronal – e a manutenção dos seus direitos quando exista uma “transferência do estabelecimento” – como esclarece Pedro Romano Martinez (Op. Cit., p. 686), “transmitido o estabelecimento, o cessionário adquire a posição jurídica do empregador cedente, obrigando-se a cumprir os contratos de trabalho nos moldes até então vigentes. Isto implica não só o respeito do clausulado de tais negócios jurídicos, incluindo as alterações que se verificaram durante a sua execução, como de regras provenientes de usos, de regulamento de empresa ou de instrumentos de regulamentação colectiva (...); no fundo, dir-se-á que a transmissão não opera alterações no conteúdo do contrato”.
Foi exactamente neste sentido que também Mota Pinto (op. Cit., p.93) respondeu à questão de saber “como explicar (...) que a lei permita que se imponha ao trabalhador um novo patrão, se é certo que, na vida real, isso pode não ser indiferente? Trata-se, por um lado, de proteger os interesses da empresa e os interesses gerais ligados à continuação da laboração das unidades económicas em caso de mudança de titular, e, por outro, de estabelecer uma situação de equilíbrio, visto que o trabalhador também é beneficiado pelo facto de as relações laborais se imporem ao novo empresário”.
Tal problemática – aqui considerada ainda genericamente –, não é, de resto, totalmente inédita em sede jurisdicional, maxime no âmbito da jurisprudência deste tribunal, como, com propriedade, assinala Vítor Nunes de Almeida (“A manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, estabelecimentos ou partes de estabelecimentos”, in Estudos em homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 89 e ss. esp.te 92 e ss.):
«A questão reportou-se a uma trabalhadora de uma empresa de limpezas que trabalhava nas instalações de uma outra empresa que, por concurso, adjudicou tais serviços de limpeza a uma terceira empresa, que recusou receber a trabalhadora em causa, por esta pretender um novo contrato e um horário menor.
Da decisão das instâncias houve recurso para o Tribunal Constitucional que, por decisão de Secção (Acórdão n.º 392/89, de 17 de Maio de
1989, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., T. II, pág. 1035), julgou inconstitucional a cláusula da respectiva convenção colectiva que impunha a continuação dos trabalhadores no seu local de trabalho, qualquer que fosse a concessionária da execução do serviço de limpeza, por violação do artigo 61.º, n.º 1, da Constituição (...).
Em sentido contrário da tese que estruturou o referido acórdão, veio a ser proferido pelo Tribunal Constitucional o Acórdão n.º 249/90, de 12 de Julho de 1990 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16.º vol., pág. 761) em que se decidiu não julgar inconstitucional uma norma em tudo idêntica à anteriormente apreciada pelo Acórdão n.º 392/89.
Face à oposição de jurisprudência assim gerada, houve interposição de recurso para o Plenário do Tribunal, para uniformização de jurisprudência. Na sequência deste recurso de uniformização, o Plenário do Tribunal proferiu o Acórdão n.º 431/91, de 14 de Novembro de 1991 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., pág. 453), em que, remetendo para a fundamentação do Acórdão n.º 249/90, decidiu não julgar inconstitucional a norma da cláusula convencional que determinava que as empresas que tenham ao seu serviço trabalhadores abrangidos pelo respectivo contrato colectivo e passem a prestar serviço em locais onde anteriormente operavam empresas singulares que perderam esses locais em concurso, fiquem com os trabalhadores que ali normalmente prestavam serviço. Assim, uma empresa que ganhe em concurso um dado local de limpeza é, em princípio, obrigada a ficar com os trabalhadores da empresa que anteriormente prestava esses serviços, a menos que eles não desejem manter o posto de trabalho ou mudar de empregador.».
É assim neste quadro jurídico que se impõe considerar o problema de saber se a possibilidade de ser o conselho de administração da RDP a determinar os contratos de trabalho a transferir para a Rádio Comercial, importa, ou não, uma violação da liberdade de trabalho prevista no artigo 47.º da Constituição, sendo que o problema fundamental a tratar concerne com o facto de a norma sindicanda
“garantir” a transmissão dos contratos de trabalho para uma “nova” entidade patronal, com a qual o recorrente não contratou.
11.2.3. Assim é porque, na verdade, quanto aos aspectos relacionados com o conteúdo contratual e com o concreto exercício da profissão o vínculo laboral determinante e conformador da actividade profissional exercida mantém a sua identidade material-funcional. A única alteração manifesta concerne ao facto de o contrato de trabalho transitar da empresa cindida para a cisionária, contudo, quanto ao demais, a relação jurídica de emprego – designadamente no que tange com os direitos e obrigações reciprocamente oponíveis – mantém-se substancialmente inalterada. Daí poder afirmar-se que a sub-rogação da empresa cindida, num quadro em que não se opera qualquer modificação na essência conteudística da relação laboral vigente, não importa qualquer violação da liberdade de escolha de profissão quanto aos aspectos relativos ao exercício, porquanto este mantém-se nos termos e nas condições (i. e. com os direitos e obrigações) que já afectavam a prestação de trabalho perante a primitiva entidade patronal.
Tal é, na essência, o que decorre da sub-rogação ex lege determinada pela transmissão do contrato de trabalho.
Quanto à alteração subjectiva no que concerne à entidade patronal a que a norma em questão acaba por conduzir, importa, em face da dialéctica que serve de fundamento ao regime já explanado, ter em conta não só a intentio subjacente à funcionalidade laboral da empresa cindida, como também a tutela que daí decorre em sede de manutenção dos contratos de trabalho que, de outro modo, não se manteriam.
Ora, como este Tribunal (cf. o citado Acórdão n.º 119/99) já salientou, a não cessação dos contratos de trabalho quando haja uma cisão societária (ou empresarial) e a consequente sub-rogação por parte da nova entidade patronal no estatuto jurídico-contratual decorrente do vínculo laboral entre o trabalhador e a sociedade (empresa) cindida, constitui uma garantia fundamental que se concretiza num princípio de subsistência das relações laborais oponível à transmissão do estabelecimento, sendo que ao estabelecer-se tal princípio é o próprio exercício da actividade laboral que sai tutelado em desfavor da autonomia contratual da sociedade cisionária que vê transferidos para a sua esfera jurídica os contratos de trabalho celebrados por uma empresa distinta daquela. Contudo, também não se pode duvidar que em múltiplas circunstâncias a concreta relação laboral não é marcada por uma absoluta indiferença, irrelevância ou indeterminação subjectiva da entidade patronal (cf. Júlio Gomes, O conflito entre a jurisprudência nacional e a jurisprudência do TJ das CCEE em matéria de transmissão do estabelecimento no Direito do trabalho: o art. 37.º da LCT e a directiva 77/187/CEE, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXXVIII,
1996, pp. 127 e ss.), havendo pois de equacionar em que termos tal realidade contenderá com a liberdade de profissão, dado que neste domínio se deve incluir a liberdade de contratar, assim se contemplando nesta sede a liberdade de escolha da própria entidade patronal.
Tal discussão não é, de resto, inédita no contexto do direito comunitário, tendo aí sido motivada pela interpretação da Directiva 77/187/CEE (que, entretanto, foi alterada pela Directiva 98/50/CE e, recentemente, revogada pela Directiva
2001/23/CE, de 12 de Março de 2001, que foi transposta para o ordenamento pelo artigo 2.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho)..
Basta atentar no Acórdão do Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 1992 (in Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância, 1992, pp. 6577 e ss.), suscitado por pedidos de decisão prejudicial submetidos ao Tribunal de Justiça – processos apensos C-132/91, C-138/91 e C-139/91 – pelos tribunais de trabalho alemães, para se compreender o alcance dos problemas suscitados nesta sede pela transmissão do estabelecimento. De facto, foi sugerido nessa sede pelo governo alemão que o trabalhador
“deveria ter o (...) direito de oposição porquanto o artigo 3.º, n.º 1, da directiva ao determinar a manutenção dos contratos de trabalho existentes à data da transferência para a nova entidade patronal fá-lo para proteger os trabalhadores e garantir a manutenção dos seus direitos na hipótese de transferência de uma empresa (...) [sendo que] o direito de oposição do trabalhador respeitava e consagrava a sua liberdade individual e a livre escolha de uma profissão (...)” – seguindo aqui a explanação do problema de que dá conta Júlio Gomes (Ob. cit., pp. 127 e ss.) –, tendo, por sua vez, sido sugerido pelo Advogado-Geral do processo que um tal direito de oposição não resulta do articulado da directiva, mas que também não é, in limine, excluído, porquanto,
“o direito de oposição do trabalhador, em princípio, não agrava a sua situação, bem pelo contrário”. Ora, a solução encontrada pelo Tribunal de Justiça para tal problemática foi no sentido de considerar que tal directiva não pode ser interpretada no sentido de impor ao trabalhador a continuação da relação de trabalho com o cessionário, sob pena de se colocarem em causa os direitos fundamentais do trabalhador, “o qual deve ser livre de escolher a sua entidade patronal e não pode, por conseguinte, ser obrigado a trabalhar para um empregador que ele não escolheu livremente”, sendo que, não havendo continuidade ao nível da relação laboral, caberá “aos Estados Membros determinar a sorte reservada ao contrato ou à relação de trabalho, podendo prever que nessa situação o contrato cessa por iniciativa do trabalhador, como prever que ele cessa por iniciativa do empregador, restando ainda a possibilidade de prever que o contrato ou relação de trabalho se manterá com o cedente” (cf. Júlio Gomes, op. cit., pp. 134-135. Veja-se também a análise de Liberal Fernandes – op. cit., pp. 1323 e ss. onde igualmente se considera a jurisprudência comunitária), não estando aqueles, porém, compelidos a consagrar que o contrato de trabalho deva continuar a subsistir relativamente ao cedente.
Mutatis mutandis, tais considerações emprestam ao tratamento da questão decidenda um alcance não despiciendo, carecendo, contudo, de uma perspectivação
à luz do concreto problema sub judice. Na verdade, a norma sindicanda não prevê qualquer acordo ou anuência do trabalhador quanto à continuidade da relação de trabalho com a nova entidade patronal. Contudo, como se verá, tal não basta para que se considere o preceito inquinado de inconstitucionalidade à luz do padrão normativo em apreciação, posto que a liberdade de profissão sempre ficará assegurada se o trabalhador puder desvincular-se com justa causa da sua relação laboral, seja perante a
“primitiva” entidade patronal, seja perante o empregador que emergiu da transmissão da empresa, não se excluindo igualmente que, como a doutrina vem adiantando – dando disso conta Vítor Nunes de Almeida (op. cit., p. 93) –, possa existir “um acordo entre o trabalhador e a sua entidade patronal originária para que algum ou alguns dos trabalhadores permanecessem ao serviço do transmitente”. Se o parâmetro constitucional proíbe o trabalho obrigatório no sentido de permitir ao trabalhador a escolha da entidade patronal, o seu âmbito normativo não abrange toda e qualquer subrogação legal emergente da transmissão do estabelecimento, mas tão-só as concretas situações em que o trabalhador, em consequência da modificação subjectiva sofrida pela relação laboral, e no exercício da sua liberdade de escolha, pretende desvincular-se perante a nova entidade patronal, porquanto não foi com ela que primitivamente firmou a relação de trabalho, ou se opõe a tal transmissão fazendo cessar o seu contrato de trabalho. Ou seja, a transmissão em si do contrato de trabalho para uma nova entidade empregadora, que, como se deixou exposto, serve igualmente um propósito de garantia dos trabalhadores, não contende com a liberdade de escolha de profissão. Esta só sairá radicalmente afectada se ao trabalhador for imposta a manutenção do vínculo laboral contra a sua vontade. Mobilizando aqui as diversas dimensões problemáticas postas em evidência por Júlio Gomes (op. cit., p. 167), uma coisa é a “necessidade de um consentimento do trabalhador (ou das suas estruturas representativas) para que ocorra a própria transmissão do estabelecimento – o que patentemente não é exigido nem pela directiva nem pelo direito português”, outra será o “direito do trabalhador se recusar a trabalhar para um terceiro que nunca escolheu como seu empregador”, sendo que apenas neste plano é susceptível de se compreender que a impossibilidade de recusa do trabalhador se configure, na expressão do autor citado, “numa negação frontal da sua autonomia privada, como mesmo da sua dignidade fundamental enquanto pessoa, convertendo-o, de algum modo, numa coisa, num componente do estabelecimento
(...) exposto à sorte deste”. Se, no primeiro caso, a desnecessidade do consentimento do trabalhador para a transmissão do contrato de trabalho é prefigurável como consequência da transmissão do estabelecimento – não sendo, porém, como se compreende, uma solução apodíctica –, e que, de per se, em nada contende com os invocados direitos dos trabalhadores, porquanto não afasta inarredavelmente uma pretensão destes quanto ao não prosseguimento da relação de trabalho, já quando se pretenda efectivar uma tal desvinculação, a garantia do exercício da liberdade de profissão, há-de sobrepor-se à proibição de o trabalhador por fim à concreta relação laboral, sendo que, porém, esta última dimensão extravasa da hipótese de continuidade da relação de trabalho, garantida pela norma em crise, sendo já reconduzível ao domínio da cessação da relação laboral, pelo que, em rigor, o ponto fulcral aqui em questão sempre dirá respeito não à transmissão do contrato de trabalho, mas sim o regime da desvinculação ex voluntate por banda do trabalhador.
Seja como for, no caso sub judice, como emerge dos autos, é manifesto que nunca esteve em apreciação a hipótese de o trabalhador pretender cessar, [mesmo] post transmissão do contrato de trabalho para a Rádio Comercial, o seu contrato de trabalho, não tendo aquele pretendido desvincular-se perante a nova entidade empregadora, antes tendo permanecido, independentemente da sua motivação, como trabalhador desta e mantendo o mesmo estatuto contratual. Em todo o caso, a norma sindicanda – ao dispensar o consentimento do trabalhador para a referida transmissão do contrato de trabalho – não foi controvertida em termos de impedir a desvinculação posterior ou, de uma outra perspectiva, impor, contra a vontade do trabalhador, a continuidade da prestação de trabalho junto do novo patrão. E qualquer solução quanto à sorte final do contrato de trabalho não colherá a sua base jurídica na norma que admite a transmissão do mesmo, não sendo, portanto, possível distrair tal impossibilidade da mera consideração da norma sindicanda, posto que dela não se extrai – nem o tribunal a quo sufragou em concreto tal entendimento – que o trabalhador não pudesse decidir livremente pela não transmissão do contrato, fazendo cessar o seu vínculo laboral. Conclui-se, assim, que o artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 198/92, de 23 de Setembro, enquanto norma que habilita o conselho de administração da empresa pública cindida a concretizar quais os contratos de trabalho que se transferem para a nova empresa, não contende com o direito tutelado pelo artigo 47.º da Constituição.
11.2.4. Destarte, na senda do exposto e não se verificando uma modificação do statu quo ante susceptível de pôr em causa a liberdade ou o direito do trabalhador de exercer a sua profissão de acordo com os termos contratuais que, na decorrência da actuação do salvaguardado direito de liberdade de escolha e de exercício da actividade laboral, concertou com a empresa cindida, nem estando em causa uma efectiva recusa em prosseguir o vínculo laboral perante a nova entidade empregadora, deve, como tal, julgar-se que o direito de livre escolha da profissão não resulta afectado pela norma em crise.
11. 3. Sustenta, ainda, o recorrente que “o preceito em análise ofende, ainda, o princípio constitucional da precisão ou determinabilidade das leis, concretizador do princípio do Estado de direito democrático (artº. 2°. CRP)”.
Sobre este princípio escreveu-se no Acórdão nº 285/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional 22º vol., pp.. 159 e ss.:
«Sobre o princípio da precisão ou determinabilidade das leis Gomes Canotilho
(Direito Constitucional, 5ª ed. Coimbra, 1991, pp. 376 e segs) entende que o mesmo , sob o ponto de vista intrínseco, reconduz-se às seguintes ideias: exigência de clareza das normas legais, pois de uma lei obscura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alcançar uma solução jurídica para o problema concreto; exigência de densidade suficiente na regulamentação legal, pois um acto legislativo que não contém uma disciplina suficientemente concreta ('densa', determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de:
- alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos;
- constituir uma norma de actuação para a administração;
- possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos. Pormenorizando o sentido destas linhas de força do aludido princípio, o mesmo autor sublinha que estamos perante uma situação que tem a ver com as relações
'legiferação-aplicação da lei'. Com efeito a indeterminabilidade normativa pode significar delegação de competência de decisão, isto é, pode traduzir-se em situações onde a lei deixa à administração amplos poderes de decisão, reconduzindo-se assim a um problema de distribuição de tarefas entre o legislador e o aplicador das leis. Na decorrência deste ponto de vista, o citado autor refere que 'o controlo destas 'normas abertas' deve ser reforçado'. Elas podem, por um lado, dar cobertura a uma inversão das competências constitucionais e legais; por outro lado, podem tornar claudicante a previsibilidade normativa em relação ao cidadão e ao juiz. De facto, as cláusulas gerais podem encobrir uma 'menor valia' democrática, cabendo, pelo menos, ao legislador, uma reserva global dos aspectos essenciais da matéria a regular. A exigência de determinabilidade das leis ganha particular acuidade no domínio das leis restritivas ou de leis autorizadoras de restrição.' E, mais adiante, escreve-se no mesmo acórdão:
'Reconhece-se, sem dificuldade, que o princípio da determinabilidade ou precisão das leis não constitui um parâmetro constitucional 'a se', isto é, desligado das matérias em causa ou da conjugação com outros princípios constitucionais que relevem para o caso. Se é, pois, verdade que inexiste no nosso ordenamento constitucional uma proibição geral de emissão de leis que contenham conceitos indeterminados, não é menos verdade que há domínios onde a Constituição impõe expressamente que as leis não podem ser indeterminadas, como é o caso das exigências de tipicidade em matéria penal constantes do artigo 29º, nº 1 da Constituição, e em matéria fiscal (cfr. artigo 106º da Constituição) ou ainda enquanto afloramento da princípio da legalidade (nulla poena sine lege) ou da tipicidade dos impostos (null taxation without law).».
No caso sub judicio – além de ser manifesto não estarmos perante tais matérias onde deva valer uma exigência de tipicidade e de se dever renovar aqui o sentido jurídico-normativo firmado no aresto supra transcrito –, é manifesto que a norma confere ao conselho de administração competência para determinar os contratos de trabalho que se transferem, daí resultando – como se considerou no já citado Acórdão n.º 194/03 – que a “escolha de quais os contratos de trabalho que se transferem representa, antes, o exercício da competência atribuída pela norma
(...) constitui[ndo] justamente a execução ou concretização que não cabe já ao legislador”. Trata-se assim de uma norma atributiva de uma competência claramente delimitada e delineada e que, como também se salientou no último aresto mencionado, só perante “a realidade concreta dos objectivos, da situação e dos recursos humanos das empresas em causa” seria possível cumprir.
11.4. Por último, o recorrente sustenta também que:
“(...) III) (...) o artº. 6°. do DL 192/98 viola o artº. 6°. da Directiva
77/187/CEE (aplicável à cisão ex vi do artº. 11º. da 6ª. Directiva do Conselho), o qual, na medida em que contém disposições (cujo conteúdo é preciso e
(in)condicional, consagra o direito dos trabalhadores à informação e à consulta; JJJ) Ora, tais direitos são oponíveis à R., uma vez que esta era uma empresa pública, o que para efeitos de aplicação do direito comunitário equivale ao Estado; KKK) Ao decidir como decidiu, o Acórdão sob censura, do Tribunal da Relação de Lisboa, violou o disposto no art. 207º da CRP.”
Tal questão – que não constava, de resto, do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal – não é, como já se deixou enfatizado no ponto 10.5. susceptível de se recortar como um problema de inconstitucionalidade normativa, não estando, assim, abrangido pelo âmbito de competência cognitiva que autoriza a intervenção do Tribunal Constitucional.
C. Decisão
12. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) não proceder ao reenvio da questão prejudicial para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias; b) negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente com 20 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Tal como no Acórdão nº 194/2003, entendo que foi violada uma dimensão do princípio da igualdade que se articula com a segurança jurídica e com a própria segurança no emprego e que consiste na directa vinculação dos órgãos da administração de uma empresa à lei ou, pelo menos, a critérios por eles pré-definidos em matérias que impliquem a persistência ou a configuração da relação laboral. Sendo necessária a transferência de contratos de trabalho de uma empresa pública para uma nova empresa constituída com património da primeira, num processo de privatização, o valor da segurança do emprego não impede, em si mesmo, que tal transferência se processe através de uma decisão unilateral da entidade empregadora (tal como foi ponderado no Acórdão nº 119/99 que assinei). Todavia, entendo que isso não implica que o Conselho de Administração de uma empresa possa, independentemente de critérios objectivos e não discricionários, decidir sobre tais transferências. A necessidade da enunciação de tais critérios não é preenchida com o mero cumprimento implícito dos deveres gerais de imparcialidade dos órgãos da administração. Na verdade, estando em causa a segurança do emprego, não podem esses órgãos agir sem definição prévia, comunicável, dos critérios objectivos que fundamentam a transferência dos contratos. Se o fizerem, estará irremediavelmente violada a proibição de arbítrio. Assim, quando o legislador confere ao Conselho de Administração o poder de decidir, sem enunciar critérios, quais os contratos a transferir, autoriza o exercício de um poder discricionário – o que, nesta matéria, em que em última análise está em causa uma relação social quase vital, significa admitir a qualificação dos trabalhadores como “peças descartáveis” e transferíveis. O argumento de que o Conselho de Administração sempre estaria vinculado, nos actos praticados, à não violação da igualdade é inconsequente, pois se não é prescrito pela lei um critério na selecção dos trabalhadores a transferir não se poderá invocar tal critério dessa lei para apelar à violação da igualdade. E deste modo, o princípio da igualdade fica irremediavelmente despojado de conteúdo material. Assim, entendo como circular o discurso jurídico do mesmo Acórdão, pois transfere para um território inexistente, em que nenhum trabalhador teria possibilidade de invocar a violação da igualdade, a impugnação de um acto com aquela importância.
Maria Fernanda Palma