Imprimir acórdão
Processo nº 323/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e
do Desenvolvimento Regional, foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Tribunal, de 16 de Fevereiro de 2005.
2. Por despacho do Director Regional do Ambiente e Ordenamento do Território do
Norte, de 7 de Setembro de 2000, foi revogada a licença de utilização do domínio
público marítimo nº 134/2000. Na sequência desta decisão, foi decidida a
reversão gratuita a favor da Administração das instalações fixas correspondentes
ao equipamento com função de apoio de praia, com fundamento no disposto no
artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, por despacho da
Sub-Directora Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território do Norte, de
21 de Março de 2001.
Por acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de Fevereiro de 2003, foi
negado provimento ao recurso contencioso que a recorrente interpôs do
indeferimento tácito do recurso hierárquico então interposto para o Ministro do
Ambiente.
Interposto recurso daquele acórdão para o Pleno do Supremo Tribunal
Administrativo, este Tribunal acordou em negar provimento, com os fundamentos
que se seguem:
«3.3 Vejamos, então, se assiste razão à Recorrente.
Neste particular contexto, é de realçar que a Recorrente circunscreve a sua
censura, no tocante ao Acórdão da Secção, à pronúncia nele contida a propósito
da por si suscitada questão da inconstitucionalidade do n° 1, do artigo 8° do DL
46/94, de 22-2 (cfr. a sua alegação, a fls. 147), preceito que, na sua óptica,
estaria em oposição frontal com o disposto nos nºs 1 e 2, do artigo 62° da CRP,
sendo que, o acto objecto de impugnação contenciosa ao manter na ordem jurídica
o despacho da Subdirectora Regional do Ambiente, por via do indeferimento tácito
do já aludido recurso hierárquico, acaba por enfermar de ilegalidade, por se ter
ancorado em norma inconstitucional.
Tal inconstitucionalidade decorreria, em síntese, da circunstância da a
questionada norma permitir a reversão, a título gratuito para o Estado, fora do
quadro da expropriação e da requisição, de bens pertencentes a Particulares.
Como já se viu, o Acórdão da Secção, não subscreveu a tese defendida pela
Recorrente, antes concluindo pela constitucionalidade do dito preceito, com a
consequente não procedência do vício por si arguido.
Para assim decidir, o referido aresto baseou-se no quadro argumentativo que,
seguidamente, se sintetiza:
- A licença de utilização para a exploração do “B.”, tinha sido revogado por
despacho, de 7 -9-00;
- Em face da dita revogação teriam de ser removidas do domínio público as
instalações desmontáveis e demolidas as obras executadas e as instalações,
fixas, a menos, que, como sucedeu no caso dos autos, a Administração opte pela
reversão das obras executadas e das instalações fixas, ao abrigo do n° 1, do
artigo 8° do DL 46/94;
- A Recorrente era, apenas, uma dos detentoras de uma licença (precária) de
utilização do domínio público hídrico, não se podendo, por isso, falar aqui de
direito de propriedade, pelo que se não mostra violado o artigo 62° da CRP.
Ora, efectivamente, é de coonestar o entendimento acolhido no Acórdão recorrido,
não enfermando o n° 1, do artigo 8° do DL 46/94, de 22-2, da invocada
inconstitucionalidade, não afrontando o disposto nos nºs 1 e 2, do artigo 62° da
CRP.
Em primeiro lugar cumpre salientar que, no caso em apreço, a licença de
utilização do domínio público marítimo já não se encontrava vigente na altura em
que foi proferido o despacho, de 21-3-01, da Subdirectora Regional do Ambiente
que determinou a já referida reversão dos bens em questão, uma vez que tinha
sido revogada por despacho, de 7-9-00, do Director Regional do Ambiente, com
fundamento na cessação em Janeiro de 1999 da exploração do “Café B.” - cfr . o
ponto 5 da matéria de facto dada como provada no Acórdão recorrido.
Por outro lado, uma vez revogada a licença a situação das instalações e das
obras executadas ficava sob a alçada do artigo 8° do DL 46/94, 22-2, dado que,
como é óbvio, tudo se passava como se tivesse findado o prazo da licença.
Daí que à Administração assistisse o direito de optar ou pela reversão a título
gratuito das obras executadas e das instalações fixas ou pela sua demolição.
Estamos, por isso, na 1ª hipótese perante um caso de reversão legal.
Temos, assim, que a situação em análise se reconduz ao exercício do direito de
reversão e não a uma qualquer forma de expropriação ou requisição, razão pela
qual o mencionado n° 1, do artigo 8° não pode, manifestamente, contender com as
garantias consignadas no n° 2, do artigo 62° da CRP.
E também não contraria o que vem garantido no n° 1, do artigo 62° da CRP.
Na verdade, como decorre do já atrás exposto e foi, de resto, devidamente
salientado no Acórdão recorrido, os bens em causa situam-se no domínio público
marítimo, estando a utilização deste sujeita a autorização por parte da
Administração, mediante a emissão da pertinente licença.
Sucede que, como já se viu, a dita licença foi revogada, razão pela qual a
Recorrente deixou de ter qualquer direito de utilização sobre o local em
questão, bem como sobre as construções e instalações existentes.
Acresce que, consagrando o n° 1, do artigo 8° do DL 46/94, ao lado do exercício
do direito de reversão, a demolição das obras executadas e das instalações
fixas, fácil é concluir que, caso a Administração não tivesse optado pela
reversão, ainda assim, a Recorrente sempre se veria impossibilitada de retirar
proveito dos bens em questão, na medida em que estes teriam, então, de ser
demolidos.
Refira-se, ainda, que quando a Recorrente equacionou a possibilidade de utilizar
em bem do domínio público, no caso do domínio público marítimo, necessariamente
deveria ter ponderado as diferentes variantes, entre elas os proventos que
almejava obter e a situação em que, no quadro do DL 46/94, se encontraria, uma
vez finda a licença, sendo esta por natureza precária, devendo, por isso,
proceder aos respectivos cálculos da amortização do custo das obras e
instalações.
De qualquer maneira, a Recorrente era mera detentora de uma licença precária de
utilização um equipamento com função de apoio de praia, situado no domínio
público marítimo, não sendo dele proprietária, não se podendo, por isso, falar
aqui de enriquecimento do Estado à custa do património dos Particulares.
Por último, encontrando-se a dita utilização no domínio público do Estado não
podia ser objecto de direitos privados, sendo, por sua natureza, insusceptível
de apropriação individual (cfr. o n° 2, do artigo 202° do C. Civil), ao que
acresce a circunstância de a reversão não resultar da existência de um direito
de propriedade mas dimanar directamente da lei, carecendo, assim, de sentido
aludir, a este propósito, a hipotéticas restrições ao direito de propriedade da
Recorrente, não estando o exercício do direito de reversão dependente do
pagamento de adequada contrapartida económica (indemnização compensatória).
Em suma, bem decidiu o Acórdão recorrido ao ter por não desconforme com o n° 1,
do artigo 62° da CRP o n° 1, do artigo 8° do DL 46/94, de 22-2».
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade,
requerendo a recorrente a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 8º, nº
1, do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, por violação do artigo 62º da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Notificada para alegar, conclui que:
«1. Por despacho da Exmª Subdirectora Regional do Ambiente e do Ordenamento do
Território do Norte, de 21/3/2001, foi decidida a reversão gratuita a favor do
Estado das construções e instalações fixas do estabelecimento denominado “Café
B.”, ou seja, do imóvel onde funcionou esse café.
2. O douto acórdão recorrido considera provado que a recorrente é
comproprietária do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia e
concelho de Póvoa de Varzim com o artigo matricial n° …., situado na praia de …,
na Avenida …, da mesma freguesia e concelho – imóvel esse que foi construído em
1940, pelos falecidos sogros da recorrente e pais dos demais comproprietários e
é constituído por cave, rés do chão e 1º andar.
3. A opção constitucional pela integração sistemática do «Direito de Propriedade
Privada» no título dos «Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais» não
lhe retirou a sua dimensão fundamental de liberdade e, nessa medida, ao direito
de propriedade privada é unanimemente reconhecida, pela Doutrina e pela
Jurisprudência Constitucional, natureza análoga à dos direitos, liberdades e
garantias, pelo que o direito de propriedade privada goza, nos termos do artigo
17.º da Constituição, do regime dos Direitos, Liberdades e Garantias.
4. Assim sendo, as restrições ao direito de propriedade privada têm de respeitar
os requisitos definidos pelo artigo 18.º, n.º2 da Constituição da República
Portuguesa: além de previsão expressa na Constituição, terão de limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos, e não poderão diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial
do direito fundamental em causa.
5. Invoca a entidade recorrida que a reversão tem acolhimento legal no disposto
no artº 8° n° 1 do Decreto-Lei n° 46/94 de 22 de Fevereiro.
6. Este normativo, ao permitir a reversão a título gratuito para o Estado dum
edifício, portanto, sem pagamento de qualquer contrapartida para a entidade
particular desapropriada, viola o Direito de Propriedade consignado no art.º 62°
n° 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
7. Efectivamente, de acordo com a Constituição, ninguém pode ser privado do seu
direito de propriedade sem que ocorra utilidade pública e sem que seja paga a
correspondente indemnização.
8. A norma do art.º artº 8° n° 1 do Decreto-Lei n° 46/94 de 22 de Fevereiro é
assim inconstitucional, por estar em oposição frontal com o preceituado no art.º
62° n° 1 e 2 da Constituição da República».
4. Notificado o recorrido para alegar, concluiu que:
«a) A Recorrente foi detentora de uma licença precária de utilização, logo, não
constitutiva de direitos, de “um equipamento com função de apoio de praia” que,
por se encontrar no domínio público do Estado, não pode ser objecto de direitos
privados, sendo inapropriável;
b) O direito de propriedade, constitucionalmente consagrado, não é absoluto,
estando limitado, no caso dos autos, pelo artº 84° da CRP, que elenca os bens
que pertencem ao domínio público e outros que a lei possa vir a classificar como
tais;
c) É o que sucede com o DL n° 46/94;
d) Os bens do domínio público podem ser objecto de exploração económica por
entidades privadas, em regime de licença ou concessão;
e) Tal foi o caso dos autos;
f) Inexistindo, por força do n° 2 do artº 202° do CC um direito à propriedade do
“equipamento com função de apoio de praia”, o invocado direito de propriedade
não goza do regime de tutela dos direitos, liberdades e garantias;
g) A reversão prevista no art° 8° n° 1, do DL n° 49/94, não é reconduzível a uma
expropriação por utilidade pública;
h) Esta, como medida ablatória que é da propriedade e dos direitos dela
decorrentes, para além de pressupor a propriedade do bem a reverter, depende de
prévia prolação de um acto de declaração de utilidade pública;
i) Já a aludida reversão não assenta num direito de propriedade e decorre
directamente da lei.
j) A reversão a favor da Administração, a título gratuito, da utilização do
domínio público hídrico aqui em causa (“equipamento com função de apoio de
praia”), não está sujeita ao pagamento de uma indemnização.
k) Inexiste a alegada inconstitucionalidade do n° 1, do art° 8° do DL n° 46/94,
por violação do artº 62° da CRP».
II. Fundamentação
1. A recorrente pretende a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 8º, nº
1, do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, por violação do artigo 62º da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
É o seguinte o teor da norma questionada:
«Artigo 8º
Decurso do prazo
1 – Findo o prazo da licença, as instalações desmontáveis devem ser removidas
pelo respectivo titular no prazo que lhe for fixado; as obras executadas e as
instalações fixas devem ser demolidas, salvo se a Administração optar pela
reversão a título gratuito a seu favor, sem prejuízo de legislação especial.
2 – (…)».
2. Alega a recorrente que tendo o direito de propriedade privada natureza
análoga à dos direitos, liberdades e garantias, a reversão a título gratuito
para o Estado dum edifício (sem pagamento, portanto, de qualquer contrapartida
para a entidade particular desapropriada) viola o artigo 62º, nºs 1 e 2, da CRP.
Pois, “de acordo com a Constituição, ninguém pode ser privado do seu direito de
propriedade sem que ocorra utilidade pública e sem que seja paga a
correspondente indemnização”.
Como se escreveu no Acórdão nº 353/2004 (Diário da República, II Série, de 28 de
Junho de 2004),
«O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde
1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa
medida, nos termos do artigo 17º da Constituição, da força jurídica conferida
pelo artigo 18º e estando o respectivo regime sujeito a reserva de lei
parlamentar (…).
Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou
conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, uma vez que nem todas elas se podem considerar como tal (…).
Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias, faz, seguramente, parte (…) o direito de cada um a não ser privado da
sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública – e, ainda assim, tão-só
com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62º, nºs 1
e 2, da Constituição). Trata-se, aqui, justamente de um aspecto verdadeiramente
significativo do direito de propriedade e determinante da sua caracterização
também como garantia constitucional – a garantia contra a privação –,
autonomizada no nº 2 do artigo 62º».
Porém, no caso em apreço, não está em causa este aspecto do direito de
propriedade privada e a garantia constitucional que lhe está associada, por via
do disposto no nº 2 do artigo 62º da CRP, já que lhe é aplicável o regime geral
dos bens do domínio público (artigo 84º, nº 1, alínea a), da CRP) e, em
especial, o preceituado no Decreto-Lei nº 46/94. Diploma que estabelece o regime
da utilização do domínio hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água (do
domínio público hídrico e do domínio hídrico privado estabelecido no artigo
1385º e ss. do Código Civil), ao qual sucederá a Lei da Água, aprovada pela Lei
nº 58/2005, de 29 de Dezembro (cf. a alínea c) do nº 2 do artigo 98º).
3. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 103/99 (Diário da
República, II Série, de 1 de Abril de 1999), «a característica essencial do
regime dos bens do domínio público é o facto de, enquanto se mantiverem aí
integrados, estarem submetidos a um regime de direito público, que o mesmo é
dizer terem um estatuto jurídico de dominialidade. Encontram-se, por isso, fora
do comércio jurídico privado – o que significa que não podem ser objecto de
propriedade privada ou de posse civil, nem de contratos de direito civil,
designadamente de venda ou de permuta. Mais: tais coisas são imprescritíveis e
inalienáveis.
Dispõe, na verdade, o artigo 202º, nº 2, do Código Civil que se consideram fora
do comércio jurídico (recte, do comércio jurídico privado) ‘as coisas que não
podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram do domínio
público e as que, por sua natureza, são insusceptíveis de apropriação
individual’».
Da caracterização do regime jurídico da dominialiadade através da noção de
“extracomercialidade de direito privado”, nomeadamente por via da nota da
“inalienabilidade”, decorre, pois, que “relativamente aos bens submetidos ao
mesmo encontra-se subtraída qualquer possibilidade de alienação a favor de
particulares, ou, mais genericamente, da constituição iure privato de direitos
subjectivos privados sobre bens do domínio público”, tendo vindo a ser associada
à regra da inalienabilidade “a impossibilidade de constituir direitos reais
privados a favor de particulares sobre bens do domínio público”. (Ana Raquel
Moniz, O Domínio Público. O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade,
Almedina, 2005, pp. 416 e 423 e s.).
Como salientam Gomes Canotilho/Vital Moreira, «o direito à propriedade, enquanto
direito de acesso a ela (i. é, de não ser impedido de adquiri-la), não implica
que todos os bens devam ser susceptíveis de apropriação privada. Seguramente que
não é ilegítimo colocar fora do alcance da propriedade privada certos tipos ou
classes de bens, e é a própria Constituição que desde logo assim procede em
relação aos bens do domínio público (arts. 84º e 168º-1/x), categoria esta cujo
sentido pré-constitucional – seguramente acolhido na Constituição – importa
precisamente a impossibilidade de apropriação privada» (Constituição da
República Portuguesa Anotada, 1993, anotação ao artigo 62º, ponto VI.).
4. A referida extracomercialidade de direito privado não obsta, contudo, à
comercialidade de direito público. “Isso significa que os bens dominiais
constituem objecto de actos e negócios jurídicos sob a égide do Direito
Administrativo – entre os quais (…) [a] utilização privativa dos bens dominiais,
explorações do domínio público e mutações dominiais – a ponto de se poder falar
já de uma ‘exploração do domínio público’ (…), na qual convergem as ideias de
fruição, utilização e valorização dos bens” (Ana Raquel Moniz, ob. cit., p. 441
e ss.). E daí que o Decreto-Lei nº 46/94 preveja, com limites temporais, a
utilização privativa do domínio hídrico (marítimo ou hidráulico), titulada por
licença ou por contrato de concessão (artigos 5º, 6º e 9º, nº 1), e que, mais
recentemente, vá no mesmo sentido a Lei nº 58/2005 (artigos 59º, 67º, nº 2, e
68º, nº 6).
No âmbito dos poderes desta utilização privativa do domínio hídrico, é
admissível que o titular da licença de utilização (ou do contrato de concessão)
coloque sobre a parte dominial que é objecto de tal licença (ou contrato)
instalações fixas ou desmontáveis ou que sobre ela execute obras, o que levanta
a questão de saber se tais instalações ou obras passam a integrar o domínio
público, designadamente através da invocação do princípio da acessão, ou se
sobre elas incide o direito de propriedade privada daquele titular (sobre isto,
cf. Ana Raquel Moniz, A Concessão de Uso Privativo do Domínio Público: Um
Instrumento de Dinamização dos Bens Dominiais, em curso de publicação, ponto
3.1.1).
Com Freitas do Amaral podemos afirmar “que ao utente do domínio pertence o
direito de propriedade sobre as construções e instalações é ponto que não
resulta expressamente, por via de regra, da lei ou dos títulos constitutivos.
Mas deduz-se com muita segurança do facto de neles se dispor que, findo aquele
prazo, tais obras e instalações reverterão gratuitamente para a Administração.
Por maioria de razão se há-de concluir no mesmo sentido, quanto à aparelhagem
móvel e às instalações desmontáveis, se acaso se estabelecer que o particular
pode retirá-las a final” (A Utilização do Domínio Público pelos Particulares,
Lisboa, 1965, p. 211 e s. No mesmo sentido, Ana Raquel Moniz, A Concessão…,
ponto 3.1.1., dando como exemplo a instalação de um restaurante sobre uma praia,
e, particularmente, nota 98).
Ora, resulta, precisamente, do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 46/94 que,
findo o prazo da licença, as instalações desmontáveis devem ser removidas pelo
respectivo titular no prazo que lhe for fixado e que as obras executadas e as
instalações fixas devem ser demolidas, salvo se a Administração optar pela
reversão a título gratuito a seu favor (cf. o artigo 11º do mesmo diploma para
os casos de contrato de concessão), dispondo neste mesmo sentido o artigo 69º,
nº 2, alínea b), da Lei 58/2005.
5. No caso em apreço, os titulares da licença de utilização colocaram sobre o
domínio público marítimo instalações fixas correspondentes a equipamento com
função de apoio de praia, tendo sido decidida a reversão gratuita de tais
instalações a favor da Administração (em 21 de Março de 2001), por aplicação do
disposto no artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 46/94, na sequência da revogação
daquela licença (em 7 de Setembro de 2000), por comportamento imputável aos
titulares («cessação em Janeiro de 1999 da exploração do “Café B.”»).
Posta a questão de saber se a norma ao abrigo da qual foi decidida a reversão
gratuita daquele equipamento, a favor da Administração, desrespeita o artigo 62º
da CRP, importa concluir pela negativa, ainda que se defenda que as instalações
fixas em causa pertenciam em propriedade privada aos então titulares da licença
de utilização do domínio público marítimo. Ainda que se aceite a existência de
uma sobreposição de estatutos – de domínio público sobre a parte do domínio
hídrico objecto da licença de utilização e de domínio privado sobre as
instalações fixas colocadas sobre esta parte dominial –, quando esteja em causa
uma licença de utilização do domínio público marítimo, atribuída nos termos do
Decreto-Lei nº 46/94.
A razão da não violação do disposto no artigo 62º da CRP está na circunstância
de a propriedade daquelas instalações ser uma propriedade temporária, por força
de uma licença de utilização do domínio hídrico conferida a título precário
(artigo 6º daquele diploma), que faz coincidir o termo da propriedade privada
com o da licença de utilização dominial (no sentido desta coincidência, Freitas
do Amaral, ob. cit., p. 211). Trata-se aqui de um desvio, especialmente previsto
na lei (artigo 1307º, nº 2, do Código Civil), a uma das facetas mais
características da propriedade privada – a sua perpetuidade (assim, Oliveira
Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra Editora, 2000, p. 458 e ss., autor que
dá como exemplo de “propriedade temporária” os casos em que, “nos termos de uma
concessão, se estipula que os imóveis construídos pelo particular revertem para
a Administração findo o prazo da concessão”).
Nos presentes autos, na medida em que a propriedade das instalações fixas
correspondentes a equipamento com função de apoio de praia terminou com a
revogação da licença de utilização de domínio público marítimo, não houve, por
conseguinte, qualquer privação do direito de propriedade privada, consagrado no
artigo 62º da CRP, quando foi decidida a reversão gratuita de tais instalações a
favor da Administração. A garantia constitucional contra a privação da
propriedade privada existiu apenas até à revogação daquela licença.
6. Para além de, no limite, se poder ver na gratuitidade da reversão uma
contrapartida pela utilização privativa do domínio público (que acresceria ao
pagamento da taxa que a lei prevê expressamente no artigo 5º, nº 3, do
Decreto-Lei nº 46/94), importa ter presente, por um lado, que, muito embora a
atribuição de licença de utilização privativa do domínio hídrico seja
temporalmente limitada (artigo 6º do Decreto-Lei nº 46/94), tais limites têm
também em conta o período que se considera ser necessário para amortizar os
investimentos associados (assim, Freitas do Amaral, ob. cit., p. 235.
Expressamente no sentido de dever ter em conta tal período vai o disposto no
artigo 67º, nº 2, da Lei nº 58/2005); e, por outro, que é juridicamente
aceitável que haja reversão gratuita, quando o termo da licença de utilização do
domínio hídrico ocorra antes de findar o prazo inicialmente fixado, por
revogação motivada por comportamento do titular (cf. artigo 12º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 46/94 e 69º, nº 4, da Lei nº 58/2005).
Em face do exposto, importa concluir que não há razões, do ponto de vista
jurídico-constitucional, para conceder provimento ao presente recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se em 20 (vinte) unidades de conta a taxa de
justiça.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena de Brito
Artur Maurício