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Processo n.º 179/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e mulher B., recorrentes nestes autos, vêm, sob invocação do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 669º do CPC, requerer a reforma do Acórdão n.º 534/2004 que, entre o mais agora não posto em causa, decidiu indeferir a sua reclamação deduzida ao abrigo do n.º 3 do art.º 78º-A da LTC contra a decisão do relator que, por seu lado, decidira não tomar conhecimento do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por falta de pressupostos processuais.
2 – Como fundamentos do pedido de reforma, os recorrentes aduzem o discurso do seguinte teor:
«1. O recurso à via judiciária, garantida pelo n.º 1 do artigo 20° da Constituição, tem sido negado aos arguidos, até à presente data, porque os Tribunais não se pronunciaram ainda., em concreto, sobre a questão central suscitada pelos arguidos: a impossibilidade de renovar o acto nulo praticado pelo assistente quando se tinha esgotado o prazo peremptório de dez dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do Código de Processo Penal.
2. A pronúncia do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional está viciada por três razões:
3. Relativamente ao 'Recurso Interlocutório', os arguidos já declararam, várias vezes, que esse recurso não foi tempestivamente subscrito por advogado, de modo que ele sempre estaria destinado a ser desentranhado dos autos e devolvido aos arguidos. Não existe neste processo, por conseguinte, recurso interlocutório nenhum de que a Relação pudesse conhecer. Destarte, não se verifica nenhuma 'omissão de cumprimento, pelo recorrente, do disposto no artigo
412°, n.º 5 do C.P.P.'.
4. O Ministério Público parte do princípio de que os arguidos recorrem do acórdão da Relação de Guimarães que teria confirmado 'a questão da preclusão da questão da convalidação da primeira acusação deduzida, em consequência de apreciação jurisdicional transitada em julgado. Ora, neste processo, não pode constar nenhuma apreciação jurisdicional porque o próprio processo, todo ele, é inexistente.
5. O único despacho que deve constar neste processo, e que deve ser proferido por qualquer Tribunal, oficiosamente, deve, apenas e só, verificar que a junção da segunda acusação particular é inadmissível e que, em consequência, este processo findou na fase de inquérito. Fica assim prejudicada a apreciação do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade da norma do n.º
4 do artigo 412° do C.P.P..
6. Por outro lado, a Relação pronunciou-se sobre questão diversa daquela que tinha sido suscitada pelos arguidos, como se pode confirmar na página 12 do acórdão, em que se transcreve uma passagem da decisão sumária anterior: 'Resulta do excerto do acórdão da Relação acima transcrito que os recorrentes suscitaram perante esse Tribunal a questão da nulidade da segunda acusação (...) (sublinhado nosso).
7. Ora, os arguidos não suscitaram nunca, perante a Relação, a questão da nulidade mas, outrossim a questão da inadmissibilidade da junção aos autos dessa segunda acusação particular.
8. Na verdade, a Relação alterou a natureza da questão suscitada numa primeira fase.
9. E depois pronunciou-se sobre essa questão diferente da suscitada pelos arguidos.
10. Ora, os arguidos não podem ser prejudicados por efeito dessa interpretação errada da alegação, ocorrida na Relação de Guimarães.
11. Quando um Tribunal se pronuncia sobre a nulidade, ou validade de um acto, ele já parte do princípio de que esse acto foi praticado validamente nos autos.
12. Não obstante, o que está em causa nos presentes autos não é um juízo sobre a validade do acto mas sim uma pronúncia sobre a admissibilidade da prática desse acto.
13. No fundo, a questão da validade encontra-se a jusante;
14. Enquanto que a decisão sobre a admissibilidade do acto se situa a montante.
15. 'In casu', a inadmissibilidade da junção aos autos da segunda acusação particular é notória, pois o assistente requereu essa junção cerca de um mês após a preclusão do prazo de 10 dias conferido pela norma do n.º 1 do artigo 285° do C.P.P..
16. E só é possível renovar o acto nulo dentro do prazo previsto para a prática desse acto por força do disposto no artigo 208° do Código de Processo Civil, conjugado com as normas dos artigos:
- 286° do Código Civil,
- 134°, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo,
- 145°, n.º 3, 201°, 202°, 203° do Código de Processo Civil,
- 410°, n.º 3 do Código de Processo Penal, e
- 107°, n.ºs 1 e 2, também do Código de Processo Penal.
17. Por outra banda, também o Tribunal Constitucional declarou no douto Acórdão n.º 27/2001, proc. n.º 189/00, no qual estava em causa um requerimento para abertura de instrução, que 'a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento, para além do prazo legalmente fixado, é sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado'.
18. Como se vê, a junção aos autos da segunda acusação particular não é admissível.
19. Como essa junção não é admissível, este processo é juridicamente inexistente.
20. Quanto ao conteúdo da decisão sumária, é de referir que o Excelentíssimo Juiz Conselheiro Relator deduziu que os arguidos pretendiam a
'alteração do julgado efectuado no acórdão recorrido' da Relação de Guimarães.
21. Ora, os arguidos sempre disseram que não pretendiam nenhuma alteração de decisões, quaisquer que elas sejam.
22. Aquilo que os arguidos requereram ao Tribunal Constitucional foi que declarasse se o Assistente podia, ou não, juntar aos autos a segunda acusação particular cerca de um mês após o esgotamento do prazo de dez dias previsto no n.º 1 do art. 285° do C.P.P..
23. O Ministério Público junto do Tribunal de Braga declarou que tal era possível e, em consequência, considerou sanada a nulidade da primeira acusação particular.
24. Não obstante, tal posição está em total contradição com aquela que o mesmo Ministério Público adoptou, face a idêntica situação, no processo n.º
189/2000, como se pode ver no douto acórdão do Tribunal Constitucional n.º
27/2001.
25. Os arguidos entendem que não é possível sanar a nulidade após o esgotamento do prazo peremptório previsto para a prática do acto, com fundamento na ponderação dos interesses respectivos do assistente e do arguido, feita pelo legislador.
26. Considerando o ordenamento jurídico no seu conjunto, atendendo ao espírito do nosso sistema e estribando-se no decidido no douto Acórdão n.º
27/2001 do Tribunal Constitucional, os arguidos entendem que o prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do C.P.P. é peremptório.
27. Após a preclusão desse prazo, o assistente já não pode renovar o acto nulo.
28. É apenas sobre esta intempestiva junção aos autos da segunda acusação particular que os arguidos pretendem obter uma pronúncia por parte do Tribunal Constitucional; ora no acórdão cuja reforma se requer, o Tribunal não se pronunciou sobre esta questão.
29. Sobre o decidido em 1ª Instância, ou na Relação de Guimarães, os arguidos não pretendem que o Tribunal Constitucional se pronuncie;
30. Todavia, como foi invocada, em todas as decisões judiciais, a questão da convalidação da segunda acusação, por efeito do trânsito em julgado do despacho de fls. 301 e 302 de 31/05/2001, do juiz de instrução, os arguidos entendem que sobre esse assunto, também devem referir as posições que eles já defenderam anteriormente:
31. A convalidação consiste em tornar válido um acto, sanando o vício que o inquinava.
32. Tal convalidação pode ocorrer, por exemplo, na venda de bens alheios, em que o vendedor é mesmo obrigado a sanar a nulidade adquirindo a propriedade da coisa.
33. Só que, em processo penal, no caso da dedução de acusação particular pelo assistente, o legislador entendeu que, estando em causa bens jurídicos pessoais, e o direito de defesa do arguido, o processo não poderia prosseguir se o assistente não demonstrasse inequivocamente que pretendia defender a sua honra, alegando os factos incriminadores.
34. Se o assistente não faz essa demonstração, o procedimento termina na fase de inquérito.
35. Assim, omitindo de deduzir acusação particular, ou omitindo a alegação dos elementos objectivos e subjectivos integradores do crime particular, o assistente pratica um acto do qual a renúncia ao exercício do direito de queixa necessariamente se deduz.
36. Quanto a esta renúncia, o disposto no artigo 116° do Código Penal, n.º 1, não deixa dúvidas:
37. O direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia expressamente se deduza.
38. O mesmo artigo, no seu n.º 2, segundo elemento, vai mais longe ainda, estatuindo que 'A desistência impede que a queixa seja renovada'.
39. Voltando agora a este caso concreto, verificamos os seguintes episódios :
40. Numa primeira sequência, o assistente deduziu tempestivamente acusação particular mas não alegou o dolo.
41. A esta ocorrência aplica-se a norma do n.º 1 do artigo 116° do Código Penal: o assistente, porque não alegou o dolo, evidenciou uma omissão da qual a desistência da queixa necessariamente se deduz; e o Ministério Público está impedido de alegar o dolo por duas razões : a. tal constituiria uma alteração substancial dos factos b. o Ministério Público não pode intrometer-se na ponderação dos, interesses respectivos do assistente e do arguido, devendo manter-se equidistante e imparcial (artigo 219°, n.º 1 da Constituição)
42. Em consequência, o Ministério Público declarou que essa acusação particular é nula, não podendo conduzir a nenhuma decisão condenatória; e disse ainda que os factos alegados pelo assistente não constituíam a comissão do crime de difamação.
43. Na segunda sequência, descobrimos uma atitude do assistente que está em contradição com a sua omissão anterior.
44. Cerca de um mês após o esgotamento do prazo de dez dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do C.P.P., o assistente foi notificado de que o Ministério Público não acompanhava a primeira acusação particular e ordenava o arquivamento do processo.
45. Desejando proceder contra os arguidos, o assistente requereu a junção aos autos da segunda acusação particular, que consiste numa versão corrigida, em que alegou o dolo, com a intenção de 'colmatar a nulidade'.
46. A junção aos autos desta segunda acusação particular é legalmente inadmissível por três razões:
a. O assistente tinha praticado, anteriormente, uma omissão (de alegar o dolo) da qual a renúncia tácita ao procedimento criminal necessariamente se deduzia. b. Essa renúncia tácita impedia que o assistente viesse renovar a anterior acusação particular já declarada nula. c. O prazo peremptório de dez dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do C.P.P. já estava esgotado, o que produz efeitos equiparáveis ao caso julgado formal.
47. Só que, surpreendentemente, o Ministério Público declarou que, face ao teor dessa segunda acusação particular, já acompanhava o assistente; e mandou juntá-la aos autos. Ora, esta insólita atitude do Ministério Público não é legalmente permitida pelas razões que antecedem.
48. Todavia, essa ilegalidade obrigou os arguidos a requerer a abertura de instrução sendo que, nesse requerimento, eles alegaram as razões pelas quais, no entender deles, o Ministério Público tinha violado a lei.
49. Face ao requerimento dos arguidos, o juiz de instrução apenas podia proferir um despacho em que declarasse extinto o procedimento e inadmissível a junção aos autos da segunda acusação particular.
50. Nenhum acto de instrução podia ser praticado, nem tão-pouco podia ser proferido despacho de teor diferente do referido.
51. Não obstante, como se pode ver no despacho de fls. 301 e 302, sucedeu que o juiz de instrução declarou sanada a nulidade e aberta a instrução em flagrante violação da lei e, pouco tempo depois, foi transferido para outra comarca.
52. A Mma. Juíza que assumiu depois a titularidade da instrução, apesar de reconhecer que a junção aos autos da segunda acusação particular não era possível, acabou por pronunciar os arguidos, em vez de declarar o processo inexistente.
53. Na verdade, o disposto no n.º 2 do artigo 122° do C.P.P. não é aplicável à admissibilidade da junção aos autos de uma acusação particular, pois ele refere expressamente que se aplica às nulidades: 'A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição (...)(sublinhado nosso).
54. No que a este caso respeita, esta norma, como é bom de ver, apenas se quer aplicar à primeira acusação particular, que tinha sido arguida de nula pelo Ministério Público.
55. A segunda acusação particular, quanto a ela, não padece de nenhuma nulidade: ela é simplesmente, inadmissível.
56. O vício da inadmissibilidade é diferente do vício da nulidade.
57. A inadmissibilidade 'in casu' resulta de um juízo sobre a legalidade, ou não, da junção aos autos de uma peça processual, e precede obrigatoriamente o juízo sobre a validade da prática desse acto.
58. Enquanto que a nulidade resulta de um juízo feito, em segundo lugar, sobre a validade do próprio acto.
59. Lamentavelmente, estes dois vícios foram confundidos pelos Srs. Magistrados das instâncias; como se pode confirmar nas decisões tomadas pelo M.P. ou proferidas pelo Tribunal, apenas se alude ao vício da nulidade.
60. Apesar de os arguidos invocarem sempre o vício da inadmissibilidade, os Senhores Magistrados decidiam sempre contra eles com fundamento na nulidade da segunda acusação particular - que consideravam sanada.
61. Uma vez que o Ministério Público junto do Tribunal Constitucional considerou que tinha ocorrido uma convalidação dos actos anteriores em consequência do trânsito em julgado do despacho de fls. 301 e 302, importa referir o seguinte:
62. Apenas se forma caso julgado relativamente a decisões que podem legalmente constar nos autos.
63. Será que esse despacho de fls. 301 e 302 pode constar nos autos?
64. Os arguidos expressamente alegam que não é possível nem legal.
65. Esse despacho de fls. 301 e 302 é um acto dependente de um acto anterior praticado pelo Ministério Público que consistiu na junção aos autos da segunda acusação particular em violação da lei processual penal.
66. É lógico que, sendo inadmissível esta junção aos autos da segunda acusação particular, como de facto é, o processo ficou paralisado no final do inquérito.
67. Em consequência, são inadmissíveis, também, os actos que dependem dessa ilegal junção.
68. Ora, um acto inadmissível não gera apenas a nulidade dos actos dele dependentes; o vício é mais grave; a inadmissibilidade, no processo penal, da segunda acusação particular, gera a inexistência dos actos subsequentes e, por conseguinte, a inexistência do próprio processo jurisdicional.
69. Como é consabido, a inexistência não pode produzir efeitos, mesmo colaterais
70. Destarte, o despacho de fls. 301 e 302, que é inexistente, não pode ter por efeito o trânsito em julgado de coisa nenhuma.
71. Dado que não pode existir no processo, esse mesmo despacho não pode transitar em julgado, nem pode produzir efeitos nenhuns.
72. Há ainda outra questão por resolver: será que um despacho, como o de fls. 301 e 302, que eventualmente transitasse em julgado, teria a virtude de convalidar a primeira ou a segunda acusação particular?
73. Mais uma vez, e com o devido respeito, os arguidos alegam expressamente que, se assim fosse, tal violaria o Estado de Direito Democrático.
74. Com efeito, o Tribunal não se pode intrometer na ponderação dos interesses respectivos do arguido e do assistente.
75. Quanto à primeira acusação particular, o assistente é o único sujeito processual que pode convalidá-la.
76. Só o assistente pode corrigir a omissão que praticou quando não alegou o dolo.
77. Mas tem que requerer a junção aos autos de nova acusação particular antes da preclusão do prazo de dez dias previsto no nº 1 do artigo 285° do C.P.P..
78. Esta iniciativa de, voluntariamente, proceder à renovação do acto nulo, tem que surgir do assistente.
79. O Tribunal, ou o Ministério Público, não podem substituir o assistente nesta iniciativa.
80. Se o fizessem, estariam a tomar partido na contenda entre o arguido e o assistente, ou seja, estariam a violar o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei e as garantias de defesa do arguido.
81. Como se vê, a primeira acusação particular não pode ser convalidada após o decurso do prazo peremptório de dez dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do C.P.P..
82. Relativamente à segunda acusação particular, o assistente pretendia que ela fosse junta aos autos cerca de um mês após o esgotamento desse prazo de dez dias.
83. Ora esse prazo é peremptório, de modo que a almejada junção aos autos não é permitida.
84. Essa segunda acusação particular não pode constar nos autos; assim sendo, a nulidade de que enferma a primeira acusação particular não pode ser sanada.
85. Esta segunda acusação particular não pode ter a virtualidade de renovar o acto nulo, anteriormente praticado pelo assistente, porque ela não é admissível no processo e, por conseguinte, não pode produzir qualquer efeito.
86. Finalmente, resta apenas descortinar se o Tribunal, oficiosamente, deve declarar a inexistência do processo.
87. Como a primeira acusação particular, acto nulo praticado pelo assistente, não foi renovada no prazo peremptório de dez dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do C.P.P., são nulos também, os actos dela dependentes.
88. A nulidade da primeira acusação particular e a inadmissibilidade da segunda acusação particular são de conhecimento oficioso.
89. Destarte, o Tribunal tem o dever funcional de declarar a subsistência de tais vícios que provocam a inexistência jurídica do processo penal.
90. Se o Tribunal não cumpre esse dever funcional, ele continua a perturbar a paz jurídica dos arguidos.
91. Tal omissão de pronúncia viola os artigos 202, n.ºs 1 e 2, 203°, 204° e 205°, n.º 1 da Constituição, na medida em que a justiça deixa de ser administrada 'em nome do povo'.
92. Ora, o Tribunal só tem legitimidade para administrar a justiça se o fizer em cumprimento da lei em vigor, votada na Assembleia da República.
93. 'In casu', os arguidos entendem que não tem cabimento proceder ao exame do conteúdo das diversas decisões judiciais porque, precisamente, nenhuma decisão judicial pode existir neste processo.
94. Tal como o próprio processo é totalmente artificial e inexistente.
95. A lei é geral e abstracta; e não há quaisquer dúvidas de que a norma do n.º 1 do art. 285° do Código de Processo Penal estabelece um prazo peremptório.
96. Os arguidos apenas pretendem saber se a violação desse prazo peremptório de dez dias para deduzir acusação particular pode ser sanado ou não.
97. No entender dos arguidos os actos e decisões posteriores à declaração de nulidade da primeira acusação particular, pelo Ministério Público, são juridicamente inexistentes; não podendo conduzir à condenação de cidadãos inocentes por um crime de difamação que nunca se verificou.
TERMOS EM QUE,
Requerem ao Tribunal Constitucional que declare se se mantém em vigor a doutrina patente no douto Acórdão n.º 27/2001, processo n.º 189/00, segundo a qual:
'O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução
- prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado'.
E, se esta doutrina se mantém em vigor:
Requerem também que o Tribunal Constitucional declare que, antes de transitar em julgado o despacho de fls. 301 e 302 dos presentes autos, já anteriormente tinha precludido a possibilidade de colmatar a nulidade arguida pelo Ministério Público relativamente à primeira acusação particular do assistente, pelo decurso do prazo de dez dias previsto no n.º 1 do artigo 285° do C.P.P. o que impede a junção aos autos da segunda acusação particular e, por conseguinte, torna inviável o prosseguimento do processo e determina o seu arquivamento.».
3 – O assistente contraditou o pedido de reforma do acórdão reclamado, dizendo que “a reclamação é meramente uma tentativa de não deixar transitar em julgado uma decisão que já foi objecto de seis decisões de Tribunais Superiores”, e pediu a condenação dos requerentes como litigantes de má fé com pagamento da indemnização a seu favor da indemnização de 2 500 Euros, a título de honorários ao seu advogado, por “decorrer com clareza que os reclamantes têm vindo a fazer do meio processual da arguição de nulidades, reclamações para a conferência, e agora a reforma do acórdão e todos os expedientes inimagináveis, um usos manifestamente reprovável, com intuitos claramente dilatórios, pelo que se lhes deve ser aplicado de pleno o disposto no art.º 456º do Código de Processo Civil quanto a litigância de má fé”.
4 – O Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal respondeu nos seguintes termos:
«1. - A reforma da sentença ou acórdão nos termos do artigo 669°, n.° 2, alínea b) do Código de Processo Civil, só é admissível quando se invoque um lapso manifesto do Tribunal, expresso na não consideração de elementos ou documentos, constantes dos autos, e que implicassem decisão diversa da impugnada.
2. - Ora, como é evidente e incontroverso - não podendo o reclamante ignorá-lo- a decisão proferida, em termos definitivos, pela conferência não assentou em qualquer lapso ou inconsideração, mas numa valoração dos pressupostos do recurso de constitucionalidade com a qual o reclamante não concorda.
3. - Traduzindo, porém, uso manifestamente abusivo do referido meio processual a dedução, sob a capa formal do pedido de reforma, de uma verdadeira impugnação contra o acórdão proferido em conferência.».
5 – Ouvidos sobre o pedido de condenação como litigantes de má fé efectuado pelo assistente, os recorrentes responderam alegando, em resumo, que com o seu pedido “o assistente pretende impedir que se torne manifesto, para o Tribunal Constitucional, que foi ele próprio quem litigou de má fé quando requereu a junção aos autos da segunda acusação particular, numa data em que o prazo de 10 dias para deduzir acusação particular se encontrava esgotado há mais de 30 dias”; que “como o processo não tem existência jurídica, após a preclusão do prazo de 10 dias previsto no n.º 1 do art.º 285º do Código de Processo Penal
[...], apenas importa aos recorrentes que os presentes autos sejam declarados inexistentes oficiosamente”; que “essa declaração oficiosa [...] deve ser proferida por qualquer Tribunal”, pelo que não o tendo ainda sido “esse dever recai agora sobre o Tribunal Constitucional”.
E terminaram pedindo, por seu lado, que o assistente seja “condenado como litigante de má fé em 2 500 Euros” e “declarado oficiosamente a inexistência jurídica do presente processo”.
6 – Ouvido novamente o assistente, agora, sobre o pedido de condenação como litigante de má fé formulado contra ele pelos recorrentes, retorquiu ele que a reclamação é meramente dilatória, correspondendo a uma tentativa de não deixar transitar em julgado uma decisão que já foi objecto de 6 decisões anteriores, e que agora não restam dúvidas que a única intenção dos recorrentes é entorpecer a acção da justiça. Acaba reiterando o pedido de condenação dos recorrentes como litigantes de má fé.
B – Fundamentação
7 – Estabelece a alínea b) do n.º 2 do art.º 669º do Código de Processo Civil (CPC) que “é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração”.
Ora, como se colhe do seu discurso argumentativo, os recorrentes não assentam o pedido de reforma da decisão na alegação de existência, no processo, de quaisquer elementos que só por si imponham uma solução diferente daquela que a decisão cuja reforma se pede decretou e cuja consideração não houvesse sido tomada em conta por manifesto ou patente lapso do Tribunal.
Os recorrentes limitam-se a discordar do juízo de valoração que o Tribunal efectuou relativamente à falta do pressuposto de utilidade do conhecimento do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade da norma constante art.º 285º do CPP assente na consideração de ela não ter constituído a ratio decidendi da decisão recorrida.
Na verdade, e independentemente de terem deixado cair outras questões decididas no mesmo aresto, contra a posição que o Tribunal tomou de considerar não ter esta norma constituído ratio decidendi da decisão recorrida por esta se haver fundamentado na consideração de dois fundamentos distintos – o abandono da questão de nulidade da segunda acusação por falta de cumprimento, no recurso interposto da sentença final, do disposto no art.º 412º, n.º 5, do CPP, relativamente ao recurso interlocutório retido, e a existência de caso julgado constituído sobre despacho que decidira essa questão - , os recorrentes sustentam, ao fim e ao cabo, que todas estas razões devem ser irrelevadas por o processo dever ser considerado juridicamente inexistente a partir da junção da segunda acusação.
A reacção dos recorrentes extravasa, pois, manifestamente o âmbito da hipótese do instituto de reforma da decisão admitido pelo art.º 669º do CPC, correspondendo antes a uma verdadeira impugnação do acórdão cuja reforma pedem.
E é essa mesma pretensão de apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma constante do art.º 285º, n.º 1, do Código de Processo Penal - que foi julgada excluída do objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade pela decisão sumária proferida pelo relator, no Tribunal Constitucional, e mais tarde mantida pelo Acordão n.º 534/2004, cuja reforma vem pedida – que os recorrentes repetem na resposta ao pedido da sua condenação como litigantes de má fé feito pelo assistente.
Por último – e sem passar em claro que a hipótese sobre que versa o Acórdão n.º 27/2001 que citam no final do seu requerimento não é paralela àquela em que se traduziria a questão de constitucionalidade, tal qual esta foi modelada pelo recorrentes, cujo conhecimento estes pretendem – importa dizer, relativamente ao pedido efectuado no final do seu requerimento, que não cabe na competência do Tribunal declarar se uma determinada doutrina afirmada em arestos anteriores se mantém.
8 – Pedem reciprocamente o assistente e os arguidos recorrentes a condenação do outro sujeito processual como litigantes de má fé.
Ambos foram ouvidos sobre a matéria dos pedidos, pelo que cumpre apreciá-los.
Dispõe o n.º 1 do art.º 456º do CPC que “tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”.
E no n.º 2, alíneas a) e d), do mesmo artigo estabelece-se que se
“diz litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave: “tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar” e “tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Não se vislumbra, minimamente, que, tendo o assistente, no recurso de constitucionalidade, a posição de recorrido, tendo-lhe a decisão da instância judicial sob recurso constitucional sido favorável (como, aliás, fora a decisão da 1ª instância por ela sindicada), e tendo-se cingido, na resposta à reclamação para a conferência e na resposta ao pedido de reforma, no Tribunal Constitucional, a defender a improcedência dos pedidos formulados pelos recorrentes e a sustentar que o uso do processo por estes feito apenas visava obstar ao trânsito em julgado do decidido em seu favor, seja possível interpretar o seu comportamento processual como evidenciando qualquer uso reprovável dos meios processuais da resposta e que o pedido de condenação dos recorrentes como litigantes de má fé se afigure, mesmo numa perspectiva simplesmente objectiva, como carecido de fundamento que não devia ignorar.
Assim sendo, indefere-se o pedido dos recorrentes de condenação do assistente como litigante de má fé.
No que tange ao pedido formulado pelos arguidos, embora estes não devessem ignorar que a sua resposta careceria de um verdadeiro fundamento, apresentando esse articulado de forma algo temerária, admite ainda o Tribunal que não se atinja uma actuação processual motivada apenas pelo fim de entorpecer a acção da justiça. Nesta perspectiva o pedido há-de, também, ser indeferido.
C – Decisão
9 – Destarte, atento tudo o exposto, decide o Tribunal Constitucional:
a) indeferir o pedido de reforma;
b) indeferir os pedidos de condenação como litigantes de má fé formulados pelo assistente e pelos recorrentes; c) condenar os recorrentes nas custas com taxa de justiça que se fixa em 20 UC.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2005
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050022.html ]