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Processo n.º 461/04
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Judicial da Comarca de -----------, A., escrivã auxiliar
do ----º Juízo Cível daquela Comarca, pretendeu interpor recurso do despacho da
Juíza da Comarca que, por ter desobedecido a um provimento e a uma indicação
verbal expressa, a condenou “nas custas do incidente a que deu causa, fixando em
2 Ucs a respectiva taxa de justiça – art. 16º do C.C.J. e art. 448/1 e 2 do
C.P.C.”.
Tal recurso não foi admitido, com fundamento em que “sendo o valor
da sucumbência 159,61 Euros, correspondente à condenação na 1ª instância da
recorrente em 2 Ucs, não pode haver recurso da decisão em apreço, visto aquele
valor ser inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre, ainda que o
valor da causa seja superior ao valor dessa mesma alçada” (despacho constante de
fls. 41 e seguintes dos presentes autos).
A. deduziu reclamação desse despacho, ao abrigo do disposto no
artigo 668º do Código de Processo Civil, perante o Presidente do Tribunal da
Relação de Guimarães, invocando, em síntese, as seguintes razões (fls. 2 e
seguintes):
– é sempre admissível o recurso que se fundar na violação das regras
da competência em razão da matéria;
– a inadmissibilidade legal do recurso no caso em apreço sempre
consubstanciaria uma limitação irrazoável ou desproporcionada, ferindo de
inconstitucionalidade a norma que a estabelecesse.
A propósito da razão invocada em segundo lugar, disse a então
reclamante:
“[...]
31. [...] tem a aqui reclamante como certo que, ainda que a sua conduta no caso
em apreço fosse susceptível de dar azo a um verdadeiro incidente processual do
tipo dos previstos nos cits. arts. 16° do CCJud. (na cit. redacção) e 448°, n.ºs
1 e 2 do CPCiv., nem assim poderia ela ficar numa situação de indefesa, perante
uma condenação a todos os títulos injusta!
32. A entender-se de outra forma, então estar-se-ia a dar cobertura legal a
qualquer tributação incidental, ainda que abusiva ou ilegal, conquanto a
sucumbência do visado ficasse aquém da metade da alçada do Tribunal que a
decretasse...
33. Tomando como exemplo o caso aqui retratado e levando as coisas ao absurdo,
qualquer das partes litigantes, seus mandatários, peritos, testemunhas,
funcionários judiciais, agentes de autoridade, etc., poderiam ser
inapelavelmente condenados num Tribunal por ocorrências que fossem consideradas
incidentes [...], desde que a tributação incidental assim imposta fosse inferior
a metade da alçada do tribunal [...].
34. Como é bom de ver, isso seria completamente inadmissível e contrário ao
Estado de Direito!
35. Foi justamente por isso, aliás, que o legislador processual civil, na
reforma de 95/9[6], veio estabelecer no n.° 3 do art. 456° do CPCiv. que
«independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido
recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé».
36. É que, até então, havia também que[m] usasse e abusasse das condenações por
litigância de má fé, mas sempre em cifra inferior a metade da alçada do
Tribunal, por forma a impedir – pelo menos na óptica de quem sufragasse
entendimento idêntico ao que levou ao indeferimento do recurso interposto pela
ora reclamante – a possibilidade de recurso.
37. E idênticas razões hão-de levar a que, de qualquer forma, deva também
admitir-se in casu o recurso interposto pela ora reclamante e que a Srª. Juíza
indeferiu.
38. A não se entender assim, então tem a ora reclamante como certo que é
violadora, entre outros, do princípio do Estado de Direito democrático plasmado
no art. 2° da nossa Lei Fundamental, o qual tem como corolário lógico o
princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, devidamente conjugado
com o princípio do acesso ao Direito e à Justiça, consagrado no art. 20º do
mesmo diploma, o segmento normativo que se extrai das disposições conjugadas dos
arts. 448°, n.ºs 1 e 2, e 678°, n.° 1, do CPCiv., interpretadas no sentido de
vedar a possibilidade legal de recurso ordinário, ainda que num só grau, da
decisão judicial que condene um oficial de justiça nas custas de um incidente
que lhe é arbitrariamente imputado, fixando-se a respectiva taxa de justiça em
valor inferior a metade da alçada do Tribunal, de molde a não ocorrer a
necessária sucumbência.
39. Expressamente se invoca, pois, a inconstitucionalidade dessa norma
interpretativa que, como tal, deve ser desaplicada, por forma a admitir-se
sempre o recurso oportunamente interposto pela ora reclamante.
Termos em que, e nos melhores de Direito, deve deferir-se a presente reclamação
e, em consequência, admitir-se o recurso indeferido, seguindo-se os ulteriores
trâmites.
[...].”
Através do despacho que consta de fls. 32 e seguintes, a Juíza da
Comarca de ------------- manteve o despacho reclamado.
2. O Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães desatendeu a
reclamação deduzida, pelos seguintes fundamentos (fls. 50 e seguinte):
“[...]
Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do
tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis
para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal
(artigo 678º, n.º 1, do C.P. Civil). Em matéria cível a alçada dos Tribunais de
Relação é agora de 3.000.000$00 (€ 14.963,94) e a dos tribunais de 1ª instância
é de 750.000$00 (€ 3.740,98) – art. 24º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13/01.
Ora, tendo em consideração que a «admissibilidade dos recursos por efeito das
alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada» (art. 24º,
n.º 3, da Lei n.º 3/99, de 13/01) e sendo de € 159,61 o montante da multa
aplicada à reclamante, dúvidas não há de que não é admissível o recurso
interposto pela reclamante do despacho contra ela proferido e que nesta quantia
lhe foi desfavorável.
Sustenta a reclamante que a multa que lhe foi aplicada, tendo como razão a
desobediência ao provimento n.º 11 e à expressa indicação verbal, esta sua
conduta integra uma infracção disciplinar e, por isso, fora da jurisdição da
Ex.ma Juíza, o que constitui uma situação de incompetência em razão da matéria
relativamente à qual é sempre admissível recurso nos termos do disposto no art.
678º, n.º 2, do C.P.Civil.
Mas esta argumentação não pode ser sufragada.
Na verdade, a motivação da multa infligida à Srª. funcionária judicial é «o
incidente a que deu causa, fixando em 2 Uc’s a taxa de justiça – art. 16º do
C.C.J. e art. 448º/1 e 2 do C.P.C.», da sua descrição estando arredada a menção
da prática de qualquer infracção disciplinar; e também se não pode erigir como
princípio minimamente sustentável que a decisão ora em análise aponta para a
sanção enquadrada no âmbito de uma pena disciplinar. Igualmente é demasiado
artificial a construção jurídica que acaba por concluir que a decisão da Ex.ma
Juíza se circunscreve a uma questão de incompetência em razão da matéria, pois
que, como claramente dela dimana, a punição imposta à Srª. funcionária judicial
resulta de um incidente processual a que deu causa previsto no n.º 1 e 2 do art.
448º do C.P.Civil.
Queixa-se igualmente a reclamante de que a inadmissibilidade do recurso
interposto viola os princípios de Estado de Direito democrático previstos nos
artigos 2º e 20º da CRP.
Não lhe assiste, porém, razão nesta afirmação que faz.
O direito de defesa legalmente atribuído ao cidadão não se compraz com a atitude
de tomar recorrível toda e qualquer decisão proferida no âmbito do processo.
Compete ao legislador estabelecer e concretizar o justo equilíbrio entre aquele
princípio de defesa e estoutro também relevante que é o da celeridade
processual, também delineado no interesse do indivíduo, ou seja, ao serviço da
segurança da sua liberdade.
Se é verdade que, nos termos do n.º [1] do artigo 20º da CRP, «a todos é
assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos», o certo é que
a nossa Lei fundamental não estabelece como regra programática que todas as
decisões judiciais são susceptíveis de impugnação por meio de recurso – não está
consagrado na Lei Fundamental, na área do processo civil, um direito ao recurso
absoluto ou ilimitado, pelo que é legítimo ao legislador infraconstitucional
racionalizar tal instituto processual, reservando o exercício do direito de
recorrer para os casos com maior dignidade (Ac. do Trib. Constitucional de
20.03.1996; Bol. do Min. da Just., 455, 535).
[...].”
3. A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional,
para apreciação da norma “que se extrai das disposições conjugadas dos arts.
448º, n.ºs 1 e 2, e 678º, n.º 1, do CPCiv., interpretadas no sentido de vedar a
possibilidade de recurso ordinário, ainda que num só grau, da decisão judicial
que condene um oficial de justiça nas custas de um incidente que lhe é
arbitrariamente imputado, fixando-se a respectiva taxa de justiça em valor
inferior a metade da alçada do tribunal, de molde a não ocorrer a necessária
sucumbência”, por violação do princípio fundamental do Estado de Direito
Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, e
do princípio fundamental do acesso ao Direito e aos Tribunais, consagrado no
artigo 20º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (fls. 55 e
seguintes).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 62.
4. Notificada para produzir alegações, a recorrente A. concluiu assim as
que apresentou (fls. 69 e seguintes):
“I. Resulta expressamente no despacho exarado a fls. 23 e 24 dos autos que «as
faltas cometidas» pela aqui recorrente ter-se-ão afinal traduzido na
«desobediência ao provimento e à indicação verbal expressa no sentido dos autos
serem conclusos com data do próximo dia útil», com a apontada «impossibilidade
prática» de a Sra. Juíza se deslocar, «ainda no período da manhã, às Varas
Mistas de ----------, com significativo atraso para o serviço urgente nos
Tribunais supra mencionados [de Felgueiras, Fafe e Cabeceiras de Basto]» (sic!);
II. Essas alegadas «faltas cometidas» pela ora recorrente não se traduziram,
portanto, em nenhuma ocorrência das aludidas no art. 16° do CCJud. (na redacção
então vigente, anterior ao DL. n.° 324/2003, de 27 de Dezembro), v. g., que
tivesse sido estranha ao desenvolvimento normal da lide e que devesse ser
tributada segundo os princípios que regem a condenação em custas, pois certo é
que a abertura de um termo de conclusão num processo judicial, embora não tenha
propriamente a ver com o desenvolvimento da lide, é um acto normal da
Secretaria, destinado a assegurar o expediente e a regular tramitação dos
processos pendentes, por forma a que o Juiz possa despachá-los;
III. Essas alegadas «faltas» tampouco consubstanciaram, como se prevê nos n.ºs 1
e 2 do art. 448° do CPCiv., qualquer acto ou incidente supérfluo, por
desnecessário à declaração ou defesa do direito, ou porventura causador da
repetição de diligências e/ou actos por culpa da funcionária judicial aqui
recorrente, pois a verdade é que termo de conclusão sempre teria de ser lavrado,
fosse (como foi) nesse mesmo dia, fosse com data do dia útil seguinte, como lhe
foi verbalmente indicado;
IV. Nenhuma dúvida resta, por conseguinte, de que o que realmente estava ou
poderia estar em causa na hipótese «sub judice» era uma (eventual) infracção
disciplinar cometida pela ora recorrente e consubstanciada na dita
desobediência, mas nunca um incidente passível de tributação;
V. Nos termos do E.F.J., aprovado pelo DL n.° 343/99, de 26 de Agosto, maxime
dos seus arts. 6°, n.° 3, 94°, n.° 1-al. b), e 111°, n.° 1-al. a) e n.° 3,
devidamente conjugados com os arts. 43°, n.° 1-al. g), 59°, n.° 1, e 75°, n.°
1-al. c), todos da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro (L.O.F.T.J.), a Srª. Juíza do
---° Juízo Cível da Comarca de ------------- [que só no ano de 2004 é que
assumiu a presidência do Tribunal para efeitos administrativos] não tinha
jurisdição para conhecer in casu da conduta tida como infraccional da aqui
recorrente;
VI. Semelhante vicissitude é consubstanciadora de uma verdadeira incompetência
em razão da matéria, com todas as legais consequências, nomeadamente a de haver
sempre possibilidade legal de recurso de uma decisão inquinada de tal vício,
independentemente do valor da causa e/ou da sucumbência (cfr. art. 678°, n.° 2
do CPCiv.);
VII. Ao invés de comunicar o sucedido ao C.O.J. para eventual instauração de
procedimento disciplinar, aquela Srª. Juíza achou por bem resolver ela própria o
problema, qualificando, de forma unilateral e arbitrária, a dita ocorrência como
incidente anómalo susceptível de tributação e condenou a ora recorrente nas
custas, com 2 UC’s de taxa de justiça, após o que indeferiu o recurso de agravo
por ela interposto, por não ter havido a necessária sucumbência;
VIII. Esse entendimento, estribado na norma de cariz interpretativo melhor
enunciada na conclusão que se segue, acabou por ser coonestado pelo despacho que
recaiu sobre a reclamação deduzida pela ora recorrente para o Sr. Juiz
Desembargador, Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães;
IX. Enferma, porém, do vício de inconstitucionalidade a norma que se extrai das
disposições conjugadas dos arts. 448°, n.ºs 1 e 2, e 678°, n.° 1, do CPCiv.,
interpretadas no sentido de vedar a possibilidade legal de recurso ordinário,
ainda que num só grau, da decisão judicial que condene um oficial de justiça nas
custas de um incidente que lhe é arbitrariamente imputado, fixando-se a
respectiva taxa de justiça em valor inferior a metade da alçada do Tribunal, de
molde a não ocorrer a necessária sucumbência;
X. Tal norma interpretativa, com efeito, é contrária, além do mais, [1] ao art.
2° da C.R.P., que consagra expressamente o princípio fundamental do Estado de
Direito democrático, o qual tem como corolário lógico o princípio da
proporcionalidade ou da proibição do excesso, e, bem assim, [2] ao art. 20º, n.°
1 da C.R.P., que consagra expressamente o princípio fundamental do acesso ao
Direito e aos Tribunais e segundo o qual, para além do mais, a todos deve ser
garantido o recurso, ainda que num só grau, de uma decisão judicial de natureza
sancionatória, independentemente do valor da causa e da sucumbência.
XI. De resto, e sem prejuízo das antecedentes conclusões, tem a ora recorrente
como certo que, ainda que a sua conduta no caso em apreço fosse susceptível de
dar azo a um verdadeiro incidente processual do tipo dos previstos nos cits.
arts. 16° do CCJud. (na cit. redacção) e 448°, nºs 1 e 2 do CPCiv., nem assim
poderia ela ficar numa situação de indefesa, perante uma condenação a todos os
títulos injusta;
XII. Foi justamente por isso, aliás, que o legislador processual civil, na
reforma de 95/9[6], veio consagrar no n.° 3 do art. 456° do CPCiv. a regra de
que «independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido
recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé», regra essa
cuja ratio é de índole constitucional e que não pode deixar de aplicar-se ao
caso em análise.
[...].”
Por sua vez, nas contra-alegações que produziu (fls. 108 e
seguintes), o representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional começou por precisar alguns aspectos, nos seguintes termos:
“[...]
Em primeiro lugar embora a recorrente questione a «justeza» de condenação e até
a aplicabilidade dos normativos em causa neste caso (mesmo nas alegações
apresentadas no Tribunal Constitucional) nunca o faz numa perspectiva de
inconstitucionalidade normativa.
Assim, toda essa matéria que tem a ver com os factos e a interpretação do
direito ordinário com ele conexionado, é irrelevante para o presente recurso de
constitucionalidade.
Em segundo lugar e apesar da decisão da senhora juíza referir-se sempre e
exclusivamente a custas pelo incidente, a decisão do Senhor Vice-Presidente da
Relação parece referir-se indistintamente a custas pelo incidente e multa,
quando, na verdade, estas são duas realidades processuais distintas.
Resulta expressamente dos preceitos que estão em causa neste processo que
estamos perante custas pelo incidente; porém, como a decisão recorrida é a do
Senhor Vice-Presidente da Relação terá de se fazer referência a estas duas
perspectivas.
Por último o recorrente refere a «possibilidade de recurso ordinário ainda que
num só grau».
Ora, em fiscalização concreta da constitucionalidade, a norma ou a interpretação
normativa que cumpre apreciar é aquela efectivamente aplicada, tendo
objectivamente os contornos definidos pelas circunstâncias do caso concreto.
Assim sendo, temos [que] o que está em causa neste processo é a
inadmissibilidade de um recurso da decisão de 1ª instância para a Relação.
[...].”
Pronunciando-se quanto ao mérito do recurso, o Ministério Público
formulou depois as seguintes conclusões:
“1 - A condenação em custas imposta nos termos dos artigos 448°, n.ºs 1 e 2 do
Código de Processo Civil e 16° do Código das Custas Judiciais, traduzida no
pagamento expresso em unidades de conta, recaindo sobre funcionário judicial,
responsável por processado inútil, cuja falta não foi relevada, não tem a
natureza de sanção disciplinar ou qualquer outra que imponha constitucionalmente
a faculdade de recurso.
2 - Em processo civil, não viola a Lei Fundamental o estabelecimento por parte
do legislador ordinário de limites objectivos à admissibilidade do recurso,
através da consagração de alçadas, inexistindo qualquer preceito constitucional
que imponha, em termos gerais, a «dupla instância» ou o «duplo grau de
jurisdição».
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
5. Perante o teor das contra-alegações do Ministério Público, foi
determinada a notificação da recorrente para se pronunciar sobre as questões
prévias levantadas pelo Ministério Público, susceptíveis de obstar ao
conhecimento do objecto do recurso (fls. 117).
A resposta da recorrente consta do requerimento de fls. 124 e
seguintes, no qual se sustentou que a questão de inconstitucionalidade foi
efectivamente suscitada durante o processo, bem como que no presente recurso não
estaria “apenas em causa saber se será constitucionalmente legítimo, para
efeitos de admitir ou não a interposição de um recurso ordinário, sujeitar-se ao
regime geral das alçadas uma decisão judicial que condena uma funcionária
judicial nas custas do (suposto) incidente a que (alegadamente) deu causa”, mas,
“desde logo e em primeira linha, a arbitrária qualificação do comportamento da
recorrente como incidente”.
Cumpre apreciar.
II
6. O objecto do presente recurso é o que se encontra identificado no
respectivo requerimento de interposição (supra, 3.).
A questão de inconstitucionalidade que a recorrente pretende ver
apreciada foi efectivamente suscitada durante o processo, tal como resulta do
teor da reclamação de fls. 2 e seguintes (supra, 1.). Procede, pois, a
argumentação que, a este propósito, a recorrente aduziu na resposta de fls. 124
e seguintes (supra, 5.).
Todavia, o objecto do presente recurso carece de uma delimitação
adicional, decorrente da impossibilidade de o Tribunal Constitucional conhecer
de todas as questões que o integram.
É que, como sustenta o Ministério Público nas contra-alegações (supra, 4.), os
aspectos que, no objecto do recurso, se prendem com a fixação da matéria de
facto e com a interpretação do direito ordinário não podem ser sindicados em
sede de fiscalização concreta da constitucionalidade. Na verdade, o Tribunal
Constitucional apenas tem competência para verificar se a norma ou interpretação
normativa, tal como foi aplicada pelo tribunal recorrido, contraria ou não
normas ou princípios constitucionais (cfr. artigos 70º, n.º 1, alínea b) e 71º,
n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
Assim sendo, não pode o Tribunal Constitucional, como é evidente (e
contrariamente ao sustentado pela recorrente: supra, 5.), determinar se o
comportamento da recorrente podia ou não ser qualificado como incidente – embora
possa, uma vez que tal é necessário para o conhecimento do objecto do recurso,
ponderar se a imputação a um funcionário de uma desobediência a um provimento ou
indicação verbal expressa de um juiz é de tal modo grave que impõe a
recorribilidade da correspondente decisão de condenação em custas –, ou se a
taxa de justiça foi ou não propositadamente fixada em valor inferior a metade da
alçada do tribunal, de molde a não ocorrer a sucumbência necessária para a
interposição do recurso.
O Tribunal Constitucional apenas pode averiguar se é inconstitucional a norma
que se extrai das disposições conjugadas dos artigos 448º, n.º s 1 e 2, e 678º,
n.º 1, do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de vedar a
possibilidade de recurso ordinário, ainda que num só grau, da decisão judicial
que condene um oficial de justiça nas custas de um incidente que lhe é imputado
a título de desobediência a provimento e a indicação verbal expressa.
Este, pois, o objecto do recurso.
7. Assim delimitado o objecto do recurso, verifica-se que nenhum
preceito constitucional impõe a recorribilidade de uma decisão judicial do teor
daquela que a ora recorrente pretendeu impugnar.
Na verdade, a decisão em causa não tem natureza penal, contra-ordenacional ou
transgressional, susceptível de fazer operar o disposto no artigo 32º, n.º s 1 e
10, da Constituição: como refere o Ministério Público nas contra-alegações
(supra, 4.), as custas constituem, no caso do incidente em causa neste processo,
o “preço” a pagar pelo funcionário pelo processado inútil a que o seu
comportamento deu azo, não sendo possível vislumbrar nelas qualquer natureza
sancionatória.
E a circunstância de o comportamento da recorrente que determinou a sua
condenação em custas poder eventualmente justificar uma decisão de carácter
disciplinar não altera evidentemente a natureza da decisão que, em concreto, foi
proferida: não é invulgar que um mesmo facto convoque a aplicação simultânea e
não excludente de normas pertencentes a ramos distintos do ordenamento.
Aliás, mesmo que a decisão que a recorrente pretendeu impugnar
tivesse aplicado uma multa processual, e não apenas condenado no pagamento de
custas por um incidente, a conclusão seria a mesma: a decisão não teria natureza
penal, contra-ordenacional ou transgressional, não sendo a sua recorribilidade
constitucionalmente imposta.
Como o Tribunal Constitucional já afirmou no acórdão n.º 315/92, de 6 de Outubro
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º volume, 1992, p. 323 ss):
“[...]
As sanções processuais são cominadas para ilícitos praticados no processo, cujo
adequado desenvolvimento visam promover. Com a sua estatuição, pretende-se,
conforme os casos, obter a cooperação dos particulares com os serviços
judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da
justiça ou ainda assegurar o respeito pelos tribunais [...].
[...]
[...] as sanções processuais não constituem [...] sanções criminais; elas
possuem uma natureza específica e são cominadas para ilícitos praticados no
processo, visando promover o seu normal desenvolvimento.
[...]
[...] as multas processuais [...] constituem sanções indiscutivelmente estranhas
ao direito disciplinar e ao direito de mera ordenação social.
O direito disciplinar caracteriza-se pela existência de um poder hierárquico que
o tribunal não possui, evidentemente, quando aplica multas processuais às partes
ou a outros intervenientes no processo. Tão-pouco o direito de mera ordenação
social [...] pode abranger as multas processuais – sanções historicamente
anteriores e não filiadas no direito penal.
[...]”.
No acórdão n.º 496/96, de 20 de Março (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 164, de 17 de Julho de 1996, p. 9761 ss), no qual se
concluiu no sentido da não inconstitucionalidade da norma do artigo 678º, n.º 1,
do CPC, enquanto aplicável à condenação em multas processuais de montante
inferior a metade da alçada do tribunal recorrido, o Tribunal afirmou ainda o
seguinte:
“[...]
2.2. A jurisprudência deste Tribunal, tendo presente a garantia de acesso ao
direito e aos tribunais, decorrente do artigo 20º n.º 1 da Constituição, tem
afirmado a inexistência de uma garantia generalizada de duplo grau de
jurisdição, dispondo o legislador de uma ampla liberdade de conformação no
estabelecimento de requisitos de admissibilidade dos recursos, designadamente
reportados ao valor da causa, como sucede com o estabelecimento de alçadas. O
legislador não pode, apenas, «abolir o sistema de recursos in toto» ou
limitá-lo, elevando, por exemplo, as alçadas ou a sucumbência a valores
totalmente desproporcionados, em termos tais, que «na prática, se tivesse de
concluir que os recursos tinham sido suprimidos» (Armindo Ribeiro Mendes,
Recursos em Processo Civil, 2ª ed., Lisboa 1994, p. 99 e segs.; v., por exemplo,
o Acórdão n.º 287/90, nos ATC, 17º vol., p. 159.).
Ora, no caso, encarando os valores em jogo (metade da alçada da 1ª instância
corresponde actualmente a 250.000$00, estando aqui em causa o montante de
35.000$00) não podemos dizer que do artigo 678º n.º 1 do CPC resulte, nesta
perspectiva, uma inviabilização desproporcionada do direito de recorrer.
2.3. Todavia, a indagação de constitucionalidade que o recorrente suscita, em
rigor, não tem que ver com a impossibilidade de recurso em função do valor
patrimonial envolvido, mas antes com a natureza do facto gerador da pretensão de
recorrer: a aplicação de uma multa processual. Significa isto, não esquecendo
que este Tribunal está limitado nos seus poderes de cognição à determinação da
conformidade constitucional do artigo 678º n.º 1 do CPC (v. artigo 79º-C da
LTC), que a apreciação a fazer se refere ao direito ao recurso, estando em causa
multas processuais.
[...]
A multa aqui em causa tem que ver com a junção de documentos fora do momento
processualmente estabelecido como próprio («com o articulado em que se aleguem
os factos correspondentes» – artigo 523º n.º 1 do CPC) em homenagem ao «dever de
prontidão» («dever de não procrastinar») (v. Fernando Luso Soares, A
Responsabilidade Processual Civil, Coimbra, 1987, p. 173). A condenação em multa
face a uma apresentação tardia, sempre dependente da não prova pela parte
apresentante de impossibilidade de oferecimento do documento no momento devido
(v. artigo 523º n.º 2), prende-se com o poder-dever do juiz de administrar a
justiça (artigo 156º n.º 1 do CPC), exercendo intraprocessualmente, para além da
normal função decisória quanto ao objecto da acção, uma função de direcção e
controlo manifestada genericamente no artigo 266º do CPC e em diversos outros
momentos da marcha do processo.
Esta particular vertente da actividade do juiz entende-a o recorrente como
situada fora do âmbito da actividade jurisdicional – que restringe à composição
dos litígios propriamente dita –, reivindicando para ela o regime da garantia do
recurso contencioso emergente do n.º 4 do artigo 268º do texto constitucional.
Trata-se de um entendimento que não colhe. Desde logo, porque a garantia de
recurso contencioso pressupõe a existência de um «verdadeiro acto
administrativo» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, p.939) e este, exigindo «ser praticado
no exercício do poder administrativo», exclui os «actos jurisdicionais» (Diogo
Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol III, Lisboa 1989, pp.81/82).
Depois, e este aspecto assume particular relevância, porque a função
jurisdicional não pode ser encarada da forma redutora proposta pelo recorrente.
«Não são jurisdicionais apenas os actos que se traduzem na directa resolução de
‘questões jurídicas’ de acordo com o direito material ou substantivo (privado,
criminal, administrativo ou constitucional). São-no também os actos
preparatórios dessa resolução, os quais, no seu conjunto, constituem o processo
de declaração ou cognição – ligados como se encontram, funcionalmente, àquele
final objectivo, que é a resolução de uma ‘questão de direito’. O processo,
pois, na sua fase declaratória, é um conjunto de actos jurisdicionais» (Afonso
Queiró, «A função adminis-trativa», Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano
XXIV, Janeiro/Setembro, nºs 1/3, pp.26/27).
Ora, as múltiplas faculdades em que se traduz o poder-dever do juiz de
direcção do processo, não se descaracterizam como função jurisdicional pela
circunstância de não serem uma condição necessária de composição do litígio.
Assumindo-se como faculdades atribuídas sempre com a finalidade de realizar essa
composição, integram-se plenamente na função jurisdicional, materializando-se em
verdadeiros actos jurisdicionais, relativamente aos quais a questão do direito
ao recurso não se configura, como já vimos, na lógica do texto constitucional,
como impeditiva do estabelecimento de regras quanto à impugnabilidade de
decisões.
A condenação na multa processual em causa, por provir de um juiz, não pode ser
integralmente assimilada aos actos administrativos que aplicam sanções. Até
porque a inexistência de recurso neste caso não atenta contra o direito de
acesso aos tribunais, nem contra outro direito fundamental, já que os documentos
tardiamente juntos continuam a desempenhar a sua função no processo, pois não
podem ser desentranhados por falta de pagamento da multa (cfr. os arts. 523º n.º
2 e 543º n.º 2 do CPC).
[...]”.
Em suma: da jurisprudência assinalada decorre – até por maioria de
razão, atendendo a que a decisão que aplica uma multa processual ainda tem
natureza sancionatória, pressupondo a prática de um ilícito processual – que
nenhuma censura constitucional merece a sujeição, às regras gerais relativas ao
valor da causa e da sucumbência estabelecidas no Código de Processo Civil, da
recorribilidade da decisão judicial que condene um oficial de justiça nas custas
de um incidente que lhe é imputado a título de desobediência a provimento e a
indicação verbal expressa; tal sujeição não é vedada, nem pelo artigo 32º, n.º s
1 e 10, nem pelo artigo 20º, n.º 1, ambos da Constituição. Tal solução também
não viola o princípio do Estado de Direito democrático nem o princípio da
proporcionalidade.
8. Insurge-se, porém, a recorrente contra a circunstância de a lei, ao
mesmo tempo que consagra o direito ao recurso, independentemente do valor da
causa e da sucumbência, das decisões que condenem por litigância de má fé (cfr.
artigo 456º, n.º 3, do CPC), não consagrar tal direito em relação a decisões do
teor daquela que pretendeu impugnar.
Esquece, porém, a recorrente que não só tais decisões têm natureza
diversa das decisões que condenam nas custas de um incidente (desde logo, uma
natureza sancionatória) – pelo que o paralelismo entre ambas nunca funcionaria,
nomeadamente para efeitos de invocação do princípio da igualdade –, como também
que existem razões para, excepcionalmente, consagrar o direito ao recurso,
independentemente do valor, das decisões que condenem por litigância de má fé.
Como, a este propósito, assinala Carlos Francisco de Oliveira Lopes
do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2ª ed., Coimbra,
Almedina, 2004, p. 391):
“O n.º 3 deste art. 456º, na redacção emergente do DL n.º 180/96, veio facultar
sempre o recurso, em um grau, da decisão das instâncias que condene como
litigante de má fé, independentemente do valor da causa e da sucumbência, tendo
em conta a inovatória ampliação do âmbito da litigância de má fé e a relevância
que a tal condenação, seja qual for o montante da sanção cominada, sempre se
deverá atribuir”.
Ou seja: o alargamento do direito ao recurso, nos termos do artigo
456º, n.º 3, do Código de Processo Civil, teve em vista compensar, de algum
modo, o alargamento dos casos de litigância de má fé (esta passou a englobar,
com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, o
comportamento gravemente negligente e não apenas o comportamento doloso),
justificando-se ainda pela particular repercussão social, obviamente negativa,
que pode ter a condenação de um sujeito como litigante de má fé.
Ora, se uma decisão judicial que condena um oficial de justiça nas
custas de um incidente que lhe é imputado a título de desobediência a provimento
e a indicação verbal expressa – como é o caso da decisão que a recorrente
pretendeu impugnar – pode eventualmente ter, tal como aquela que condena um
sujeito como litigante de má fé, uma repercussão social negativa, já é muito
duvidoso que espelhe a prática de um acto tão grave como aquele que subjaz a
esta condenação. E, mesmo que a gravidade seja idêntica (como a recorrente
parece sustentar), certamente que a outra razão que justifica a alargada
recorribilidade da decisão que condena por litigância de má fé nunca estaria
presente no caso daquela primeira decisão: a razão histórica que se prende com o
alargamento, no ordenamento jurídico português, dos casos de litigância de má fé
e o consequente propósito do legislador de dotar os sujeitos processuais de
acrescidas garantias perante o previsível aumento do número de condenações a
esse título.
Em suma: não procede o argumento que, alicerçado no direito ao
recurso consagrado no artigo 456º, n.º 3, do Código de Processo Civil, sustenta
a inconstitucionalidade da interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido,
pois que as razões que justificam a solução contida naquele preceito não estão
presentes no caso sub judice.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma que se extrai das disposições
conjugadas dos artigos 448º, n.º s 1 e 2, e 678º, n.º 1, do Código de Processo
Civil, interpretada no sentido de vedar a possibilidade de recurso ordinário,
ainda que num só grau, da decisão judicial que condene um oficial de justiça nas
custas de um incidente que lhe é imputado a título de desobediência a provimento
e a indicação verbal expressa;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso,
confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de
constitucionalidade.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em vinte
unidades de conta.
Lisboa,19 de Janeiro de 2005
Maria Helena Brito
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração de voto junta.)
Rui Manuel Moura Ramos (Ainda que não tenha conseguido superar as dúvidas quanto
ao carácter não sancionatório da medida do que a requerente foi objecto.)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido, por entender que, no caso em presença, a decisão recorrida não
constitui uma sanção processual (o destinatário não é parte na causa, nem
interveniente processual), e não visa a regulação dos termos processuais, tarefa
que se inclui na função jurisdicional do juiz.
Trata-se, ao contrário, que uma decisão que sanciona uma conduta praticada por
um agente administrativo no exercício das funções e por causa desse exercício,
constituindo, por isso, um acto sancionatório, disciplinar e de natureza
administrativa.
Interpretada como foi, a questionada norma viola o principio da recorribilidade
dos actos administrativos lesivos e o da proibição da indefesa contidos nos
artigos 268º n. 4 e 269 n. 3 da Constituição.
Pamplona de Oliveira