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Processo n.º 771/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 17 de Outubro de 2005, que decidiu, no
uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do
objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional – ao abrigo
do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e f), da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC) –, do acórdão de 24 de Maio de 2005 do Supremo Tribunal de Justiça, que
negara a revista por ela deduzida contra o acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa, de 26 de Fevereiro de 2004, que, por seu turno, negara provimento à
apelação da sentença de 17 de Novembro de 2002 da 9.ª Vara Cível da Comarca de
Lisboa, que julgara improcedente a acção de preferência relativamente à venda
de prédio urbano por ela intentada.
No requerimento de interposição de recurso, aduz a recorrente:
«1.º – Como decorre das alegações de recurso apresentadas, a
recorrente ali referia que o acórdão sub judice proferido pelo Tribunal a quo
consubstanciava a violação de direitos fundamentais do cidadão, nomeadamente o
direito à tutela jurisdicional efectiva a que se referem os princípios legais
consagrados nos artigos 2.°, 20.º, 202.°, n.º 2, e 203.º da CRP.
2.º – Em sede de conclusões (17.ª), a recorrente ali reclamava
perante o tribunal de recurso, no caso perante este Supremo Tribunal de Justiça,
tal vício de inconstitucionalidade da decisão recorrida por ferir os princípios
constitucionais mencionados no relatório e nas conclusões quer quanto à falta
de tutela efectiva dos direitos subjectivos da recorrente bem como da violação
da lei substantiva na interpretação que o tribunal recorrido lhe dava no que se
refere aos preceitos normativos invocados na 17.ª conclusão;
3.º – Vícios esses sobre os quais este Tribunal nem sequer se
pronunciou.
4.º – Do acórdão proferido não cabe recurso ordinário;
5.º – Quanto à decisão deste Tribunal que se pretende pôr em causa
no Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, a recorrente ali
pretende demonstrar que a decisão recorrida violou o princípio da tutela
jurisdicional efectiva, princípio esse que a norma fundamental consagra como
direito fundamental e bem assim que a interpretação da lei tal como configurada
na decisão recorrida quanto às normas a que se refere a 17.ª conclusão são
materialmente inconstitucionais, por ilegalidade da sua interpretação não
conforme com os princípios constitucionais.
6.º – Pretende assim a recorrente, através do presente recurso, a
apreciação pelo Tribunal Constitucional da questão da ilegalidade e
inconstitucionalidade na interpretação das normas acima mencionadas, por
contrárias ao princípio constitucional acima mencionado e que este Venerando
Tribunal sobre tais questões também se não pronunciou, estando também
preenchido o legal requisito a que se referem os artigos 71.º e 75.° da LTC.
7.º – A recorrente tem legitimidade para a interposição do presente
recurso, tendo em vista o disposto na alínea b) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 72.º
da LTC, o qual é apresentado tempestivamente conforme dispõe o artigo 75.º do
mesmo diploma, sendo que as alegações de recurso serão apresentadas pelo
recorrente nos termos do artigo 79.º da Lei n.º 28/82, no Tribunal ad quem, e
com efeito suspensivo nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 4, do mesmo
diploma, subindo nos próprios autos.»
O recurso foi admitido por despacho do Conselheiro Relator do
Supremo Tribunal de Justiça, decisão que, como é sabido, não vincula o
Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, de facto, entende‑se
que, no caso, o recurso é inadmissível, o que permite a prolação de decisão
sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões
de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa
constitucional alemã), ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre
os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa
daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na
primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério
normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter
de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios
normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo das
alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –,
a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a
questão de inconstitucionalidade e/ou de ilegalidade (esta com os fundamentos
elencados nas alíneas c), d) e e)) haver sido suscitada «durante o
processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu
a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2
do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua
ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais ou
ilegais pelo recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação acolhida, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal que, para
usar a formulação do Acórdão n.º 367/94: «Ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no
caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. Recordados estes critérios, torna‑se patente que o presente
recurso é inadmissível.
Na verdade, na peça indicada como sendo o local onde as questões de
inconstitucionalidade e de ilegalidade foram suscitadas (a conclusão 17.ª da
alegação do recurso de revista), o que consta é:
«17.ª – A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 223.º,
224.º, 230.º, 236.º, 238.º, 373.º, 376.º, 394.º, n.º 1, 1405.º e 1410.º do
Código Civil, artigos 156.º, n.º 1, 659.º, 660.º, n.ºs 1 e 2, e 668.º, n.º 1,
alínea d), do Código de Processo Civil, bem como o disposto nos artigos 20.º,
202.º, n.º 2, e 203.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que,
analisando e interpretando a lei perante tais factos, a decisão a proferir
deveria concluir pela procedência da acção, por ser esse o corolário lógico e
legal decorrente da prova que os autos fornecem, devendo por isso no tribunal
a quo ter sido revogada a decisão proferida em 1.ª instância.»
Como é patente, a violação da lei ordinária e da lei constitucional
é imputada, pela recorrente, não a qualquer norma ou interpretação normativa,
mas à própria decisão judicial então impugnada, em si mesma considerada, o que
não constitui objecto idóneo do recurso para o Tribunal Constitucional,
determinando a sua inadmissibilidade.
Acresce que o recurso previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC só cabe das decisões que hajam aplicado norma cuja ilegalidade haja sido
suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas
c), d) e e), a saber: (i) violação de lei com valor reforçado; (ii) violação,
por norma constante de diploma regional, do estatuto da região autónoma ou de
lei geral da República [esta última figura foi eliminada na revisão
constitucional de 2004]; e (iii) violação, por norma emanada de um órgão de
soberania, do estatuto de uma região autónoma – sendo inequívoco que nenhuma
destas situações se verifica no presente caso.
Surgindo como manifesto que a recorrente não suscitou, perante o
tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade ou de
ilegalidade «agravada», não se justifica, por representar acto inútil que a lei
proíbe, a formulação de convite à recorrente, nos termos do n.º 6 do artigo
75.º‑A da LTC, para indicar os elementos em falta no seu requerimento de
interposição de recurso, designadamente a indicação das normas cuja
inconstitucionalidade e ilegalidade pretendia que o Tribunal Constitucional
apreciasse.
4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do disposto no artigo
78.º‑A, n.º 1, da LTC, não conhecer do objecto do recurso.”
1.2. A reclamação da recorrente apresenta a seguinte
fundamentação:
“1.º – Verifica‑se do requerimento de interposição de recurso para
este Venerando Tribunal que a reclamante ali apresenta factos e argumentos que,
no seu entender, justificam a apreciação por este Tribunal das questões de
natureza inconstitucional, contempladas na decisão recorrida, conhecidas pelo
Tribunal a quo.
2.° – Que a recorrente pretendia submeter ao conhecimento e decisão
deste Tribunal;
3.º – Justificando em tal requerimento, salvo melhor opinião, quer
os factos quer os fundamentos que justificam a admissibilidade e conhecimento de
tais questões por este Tribunal, tal como consta de tal articulado;
4.º – Sobre o qual veio a ser proferida a decisão «sumária» que o
rejeitou e, consequentemente, decidiu: «… não conhecer do recurso».
5.º – Dispõe o n.º 3 do artigo 78.º‑A da LTC que da decisão sumária
do relator pode reclamar‑se para a conferência;
6.° – O que a recorrente faz através da presente reclamação para
que, nesta sede, se decida sobre o mérito do recurso apresentado, em termos de
ser ou não admissível, em face do disposto no n.º 5 da citada norma legal.
Em face do exposto, requer a V. Ex.ªs que sobre a reclamação ora em
causa seja proferido acórdão, em conferência, sobre a sua admissibilidade ou
não, em face do disposto no artigo 78.º‑A, n.ºs 3 e 5, da LTC.”
1.3. Notificados desta reclamação, os segundos
recorridos (B. e outros) apresentaram a seguinte resposta:
“A recorrente A. vem junto desta Douta Instância alegar, em síntese, que as
instâncias judiciais violaram a CRP, nomeadamente o seu artigo 202.º, n.º 2, por
não tutelarem efectivamente os seus direitos.
Isto porque, da 1.ª instância ao Supremo Tribunal de Justiça, não foi
reconhecido o seu direito de preferência na alienação do imóvel do qual era
arrendatária. Ora,
O não reconhecimento desse direito baseou‑se nos factos provados na 1.ª
instância e confirmados pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
O Supremo, como resulta da própria lei, não sindica matéria de facto, pelo que a
decisão sobre a mesma transitou na Relação. Ou seja,
Na Relação confirmou‑se, face à factualidade apurada, que os direitos da
recorrente não eram passíveis de tutela pela simples razão de não existirem.
As instâncias não tutelaram os putativos direitos da recorrente uma vez que os
mesmos não existiam, ou, pelo menos, ela, recorrente, não logrou provar, como
lhe competia, que eles existiam.
Tão‑pouco o facto de a autora alegar não ver reconhecido o seu pedido de
alteração da causa de pedir não constitui denegação de justiça, uma vez que:
Foi reconhecido que o facto de a Relação não ter feito expressa e textual
referência a esse facto não relevava.
Mas, ainda que relevasse, nunca teria qualquer valor prático, uma vez que na
base do pedido da autora, ora recorrente em 4.ª instância (perdoe‑se a
irreverência), estavam factos que ela não logrou provar e que determinavam a
hipotética existência do direito a preferir.
Parece, deste modo, que a recorrente confunde recusa de justiça com justiça que
não lhe convém, o que nada tem a ver com direitos consagrados na CRP.
De resto, a decisão nos termos da qual o Ex.mo Relator decidiu pelo não
conhecimento do recurso, ao louvar‑se no disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da
LTC, fê‑lo, repetindo o texto legal, por o assunto ser simples e a pretensão
manifestamente infundada.
Assim sendo,
Propugnam as recorridas pela manutenção do decidido, devendo a
conferência, face ao alegado, pronunciar-se pelo não conhecimento do recurso.”
1.4. Também os primeiros recorridos (C. e outros)
apresentaram resposta, mas, não tendo procedido ao pagamento da multa devida,
nos termos do artigo 145.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, pela sua
apresentação tardia, a mesma considera‑se sem efeito.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão sumária ora reclamada decidiu não conhecer
de recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e f), da LTC,
por, quanto à alínea b), a recorrente imputar a violação da lei ordinária e da
lei constitucional, não a qualquer norma ou interpretação normativa, mas à
própria decisão judicial então impugnada, em si mesma considerada, o que não
constitui objecto idóneo do recurso para o Tribunal Constitucional,
determinando a sua inadmissibilidade; e, quanto à alínea f), por a recorrente
não ter suscitado, perante o tribunal recorrido, qualquer uma das questões de
ilegalidade “agravada” nessa alínea contempladas.
Na presente reclamação, a recorrente não esboça sequer
uma tentativa de rebater estes fundamentos, limitando‑se a requerer que a
conferência se pronuncie, por considerar que se justifica “a apreciação por este
Tribunal das questões de natureza inconstitucional, contempladas na decisão
recorrida”.
Como se ponderou no Acórdão n.º 514/2003 e reiterou no
Acórdão n.º 87/2005:
“A natureza colegial dos tribunais superiores implica que, em regra, a formação
de julgamento integre, no mínimo, três juízes e a tomada de decisão exija,
também no mínimo, dois votos conformes. Admitindo, porém, a lei, por óbvias
razões de economia e celeridade processuais, que certas decisões sejam tomadas
individualmente pelo relator, esta possibilidade não podia deixar de ser
acompanhada pela outorga à parte que se sinta prejudicada com tais decisões da
faculdade de as fazer reexaminar pela conferência, de composição colegial.
Assim sendo, a circunstância de o reclamante não ter explicitado as razões
pelas quais discorda do despacho reclamado não conduz inexoravelmente ao
indeferimento da reclamação (e muito menos ao seu não conhecimento), antes se
impõe que a conferência repondere a questão, bem podendo acontecer que, mesmo na
ausência de críticas do reclamante ao despacho reclamado, no colectivo de
juízes acabe por prevalecer entendimento diverso do inicialmente assumido pelo
relator.”
Procedendo a essa reponderação, entende‑se, porém, que,
no presente caso, pelas razões indicadas na decisão sumária reclamada – não ter
a recorrente suscitado perante o tribunal recorrido nenhuma questão de
inconstitucionalidade normativa, imputando a violação da lei e da
Constituição directamente à decisão judicial então recorrida, em si mesma
considerada, o que não constitui objecto idóneo de recurso para o Tribunal
Constitucional, e não ter suscitado, perante o tribunal recorrido, qualquer
uma das questões de ilegalidade agravada contemplada na alínea f) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC –, o presente recurso é inadmissível, o que determina o não
conhecimento do seu objecto.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2005.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos