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Processo n.º 570/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O recorrente A., notificado do Acórdão n.º 612/2005,
que decidiu não conhecer do recurso de constitucionalidade por ele interposto,
veio requerer “o esclarecimento de obscuridade”, nos termos seguintes:
“Refere o douto Acórdão que o recorrente «nada aduziu que contrariasse o
entendimento, apontado no despacho do relator, de ‘não ter sido adequadamente
suscitada, pelo recorrente, perante o tribunal recorrido, uma questão de
inconstitucionalidade normativa, através de uma clara identificação da
interpretação normativa acusada de inconstitucionalidade, imputando‑se a
violação da Constituição directamente às operações de captação de imagem’, que
seria impeditiva da admissibilidade do recurso» (sic).
Daí conclui que a mera afirmação de uma tal «interpretação» dos artigos 125.° e
167.º, n.ºs 1 e 2, do CPP (que o recorrente não especificou minimamente), por
violação dos artigos 26.° e 32.°, n.º 1, da Lei Fundamental, não permitir o
Tribunal Constitucional, na hipótese de provimento do recurso, emitir decisão
no sentido de os destinatários desta, [bem] como dos operadores do direito,
ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em
causa não deve ser aplicado por violar a Constituição.
Assim não conheceu do objecto do recurso.
Ora, o recorrente, na altura que suscitou a questão da interpretação
inconstitucional no tribunal recorrido, fê‑lo com base nas normas por ele
aplicadas, referindo que «As captações de vídeo nas instituições em causa foram
feitas sem se cumprir o disposto nos artigos 1.º, 3.º, alínea b), e 112.º, n.º
2, do Decreto‑Lei n.º 231/98 e infringiu‑se o disposto no artigo 199.º, n.º 2,
alíneas a) e b), do Código Penal e, assim, os artigos 125.º e 167.º, n.ºs 1 e 2,
do CPP, por terem sido obtidas sem a vontade do arguido e como tal interpretado
inconstitucionalmente os artigos acima indicados, por violação dos artigos 26.°
e 32.º, n.º 1, da CRP».
E, posteriormente, nas suas alegações, concretizou, no seu modesto
entendimento, qual a interpretação inconstitucional de tais normas.
Corno pareceu líquido desde a sua inicial «afirmação», tudo se resumia a saber
se a captação de vídeo nas instituições em causa podiam ser efectuadas sem o
conhecimento ou vontade dos visados, sem que isso interfira com a reserva da
vida privada prevista na nossa Constituição.
E essa era a questão que, a ser procedente, tinha destinatários específicos e
entendível para os restantes operadores do direito.
Tanto assim foi que o Tribunal recorrido expressamente se pronunciou sobre a
alegada inconstitucionalidade interpretativa do artigo 126.° do CPP por violação
dos artigos 25.º, n.° 1, 26.°, n.º 1, e 18.°, n.ºs 2 e 3, da CRP.
Ora, face ao douto Acórdão ora proferido, fica‑nos a dúvida se o recorrente só
não suscitou de modo adequado tal questão no recurso interposto para o Tribunal
da Relação de Lisboa, ou, se, nas alegações por si apresentadas, careceu ainda
da mesma inteligibilidade interpretativa, e por isso mesmo o recurso não foi
conhecido.
Nestes termos, requer a V. Ex.as se dignem esclarecer a dúvida acima indicada,
que, com o devido respeito, o aliás douto Acórdão padece.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional, notificado do pedido de aclaração, respondeu que:
“1 – O pedido deduzido é obviamente insubsistente, não se entendendo minimamente
qual a dúvida ou «obscuridade» que se pretende ver esclarecida.
2 – Na verdade, afirmar que a parte não suscitou, em termos processualmente
adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa é, obviamente e pela
«natureza das coisas», insusceptível de dúvida séria ou objectiva.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O pedido de aclaração de decisões judiciais visa o
esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade de que a decisão aclaranda
padeça (a decisão é obscura quando contém algum trecho cujo sentido seja
ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações
diferentes), sendo inadmissível a sua utilização para as partes manifestarem a
sua discordância com a decisão e tentarem obter a sua alteração por supostamente
ter incorrido em erro de julgamento.
O reclamado Acórdão n.º 612/2005, dando acolhimento a
questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo relator, a que se
associou o Ministério Público, expendeu:
“Impõe‑se, antes de mais, conhecer da questão prévia de não
conhecimento do mérito do recurso por inadmissibilidade deste – «por não ter
sido adequadamente suscitada, pelo recorrente, perante o tribunal recorrido, uma
questão de inconstitucionalidade normativa, através de clara identificação da
interpretação normativa acusada de inconstitucional, imputando‑se a violação da
Constituição directamente às operações de captação de imagem» –, suscitada no
despacho do relator que determinou a apresentação de alegações e a que se
associou o Ministério Público.
Na verdade, no sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas ou a actos,
condutas ou omissões processuais.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Neste contexto, constitui orientação pacífica deste Tribunal que
(para usar a formulação do Acórdão n.º 367/94), «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição».
Como se mencionou no precedente relatório, o recorrente,
expressamente confrontado com a questão da admissibilidade do recurso e da
delimitação do seu objecto, aceitou, quanto a este último ponto, o afastamento
da dimensão normativa reportada à «ausência de autorização judicial», por não
ter sido suscitada na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa,
mas, quanto ao primeiro ponto, nada aduziu que contrariasse o entendimento,
apontado no despacho do relator, de «não ter sido adequadamente suscitada, pelo
recorrente, perante o tribunal recorrido [sublinhado agora acrescentado], uma
questão de inconstitucionalidade normativa, através de clara identificação da
interpretação normativa acusada de inconstitucional, imputando‑se a violação da
Constituição directamente às operações de captação de imagem», que seria
impeditiva da admissibilidade do recurso.
E, com efeito, não constitui suscitação adequada de tal questão
limitar‑se o recorrente a afirmar que: «As captações de vídeo nas instituições
em causa [captações efectuadas no interior de agências da Caixa Geral de
Depósito de Almada, Alverca do Ribatejo e Cova da Piedade] foram feitas sem se
cumprir o disposto nos artigos 1.º, 3.º, alínea b), e 112.º, n.º 2, do
Decreto‑Lei n.º 231/98, e infringiu‑se o disposto no artigo 199.º, n.º 2,
alíneas a) e b), do Código Penal, e assim os artigos 125.º e 167.º, n.ºs 1 e 2,
do Código de Processo Penal, por terem sido obtidas sem a vontade do arguido e
como tal interpretado inconstitucionalmente os artigos acima indicados, por
violação dos artigos 26.º e 32.º, n.º 1, da CRP». A arguição de que uma actuação
material, mesmo com relevância processual penal, é ilegal não constitui,
manifestamente, a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade
normativa. E a mera afirmação de que uma «tal interpretação» dos artigos 125.º
e 167.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal – interpretação que não se
especifica minimamente – viola preceitos constitucionais não constitui modo
adequado de suscitar tal questão, pois não permite ao Tribunal Constitucional,
na hipótese de provimento do recurso, emitir «decisão em termos de, tanto os
destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber,
sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser
aplicado, por, deste modo, violar a Constituição».”
Como se salienta na resposta do Ministério Público, a
afirmação, constante do Acórdão n.º 612/2005, ora reclamado, de que o recorrente
não identificou a interpretação normativa cuja conformidade constitucional
pretendia ver apreciada, é, em si mesma, insusceptível de ser considerada
obscura ou ambígua. O recorrente pode discordar do juízo contido nessa
afirmação, mas então está a acusar a decisão em causa de erro de julgamento, que
é figura distinta das figuras da ambiguidade ou obscuridade da decisão e só
estas são susceptíveis de fundar pedidos de aclaração.
3. Termos em que acordam em indeferir o presente pedido
de aclaração.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Janeiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Silva Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos