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Procº nº 184/97 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. Em 6 de Junho de 1994, o Tribunal de Círculo de Ponta Delgada - Comarca de Ribeira Grande - condenou quatro arguidos por crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 296º e 297º, nº 1, alínea a), e nº
2, alíneas c), d) e h), com referência ao artigo 298º, nº 1, todos do Código Penal, e aplicou ao arguido A., como autor material de um crime de receptação, previsto e punido pelo artigo 329º, nº 1, do Código Penal, uma pena de 15 meses de prisão e uma pena de 45 dias de multa à taxa diária de 3.000$00, pena esta que logo julgou perdoada, bem como a de um ano de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 11º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio (Lei da Amnistia).
2. Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido A. para o Supremo Tribunal de Justiça que, por Acórdão de 6 de Novembro de 1996, a confirmou integralmente. Da fundamentação deste aresto consta, entre o mais, o seguinte parágrafo:
'O facto de o recorrente ser licenciado (como consta dos autos), e funcionário superior da ................. de ................., e de estarmos perante o que a doutrina anglo-saxónica costuma designar por 'white-collar crime', não podem conferir ao arguido qualquer privilégio, antes agravando essas circunstâncias a sua responsabilidade criminal'.
3. Apresentou então o arguido pedido de aclaração daquele acórdão, o qual veio a ser indeferido, e, a seguir, recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
'A., arguido nos autos à margem identificados, não se conformando com o aliás douto Acórdão proferido, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do art. 70º, nº 1, alínea b), do 72º, nº 1, alínea a) e
75º-A, nº 1 e 2 da Lei 28/82 de 15 de Novembro, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nºs 1 e 2, da Constituição da República e bem assim do disposto no artigo 32º, nº 1, do mesmo diploma fundamental; o presente recurso é admissível, ao abrigo das disposições citadas, porquanto terão sido violadas, no entender do recorrente, no próprio Acórdão ora recorrido e não anteriormente, ao considerar a sua situação económica e social como agravante da sua responsabilidade criminal, assim interpretada e aplicando concretamente o artigo 72º do Código Penal em termos violadores daqueles dispositivos constitucionais e que eram de todo imprevisíveis para o recorrente, pelo que não os podia ter antecipadamente posto em causa, circunstância em que a admissibilidade do recurso tem sido considerada pela jurisprudência do Tribunal
'ad quem'.
4. Tal recurso não foi admitido, por despacho de 17 de Janeiro de
1997 do Conselheiro Relator, com fundamento em inverificação dos pressupostos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que o Acórdão de que se pretendia recorrer não tinha aplicado 'qualquer preceito inconstitucional, nem o recorrente, no decurso do processo, suscitou, em momento algum, a questão da inconstitucionalidade [de] qualquer disposição legal'.
5. Veio então o arguido apresentar reclamação de tal despacho para o Tribunal Constitucional, onde admite não ter suscitado antes a questão da inconstitucionalidade porque 'a violação do dispositivo constitucional apenas ocorreu na própria decisão ora recorrida, e não antes', 'surpreendendo o recorrente, como foi o caso'. E acrescenta:
'[...] Não podia, por exemplo, o requerente prever que o Acórdão recorrido viesse afirmar que era licenciado (o que simplesmente não é verdade, não consta nem podia constar dos autos)
[...] E tivesse em conta tal pseudo circunstância para graduar a pena e a responsabilidade do recorrente, como fez
[...] Para além de muito concretamente ter entendido o art. 72º do Código Penal em tais termos que a sua condição social e económica redundou em prejuízo do seu direito a um tratamento igualitário perante a lei'
6. Submetido o despacho de inadmissão do recurso à conferência do Supremo Tribunal de Justiça, veio a mesma a confirmá-lo, por Acórdão de 12 de Março de 1997.
7. O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal emitiu parecer nos seguintes termos:
'A presente reclamação carece totalmente de fundamento, já que, no âmbito do recurso interposto perante o STJ, não se suscitou qualquer 'questão nova', no que se refere à determinação da medida concreta da pena aplicada ao arguido em
1ª instância, que pudesse suportar o presente recurso de constitucionalidade: na verdade, o STJ confirmou inteiramente o acórdão recorrido, limitando-se, de passagem, a referir que - como é, aliás, óbvio - não constitui qualquer
'privilégio' para o arguido a circunstância de este beneficiar de formação superior (cfr. fls. 29 verso), o que se configura como 'obiter dictum'.
Não se fez, deste modo, da norma questionada a interpretação e aplicação pretendidas pelo ora reclamante - já que, ao confirmar inteiramente o acórdão proferido em 1ª instância, as circunstâncias agravantes da responsabilidade criminal do arguido são naturalmente as enunciadas naquela decisão, e não quaisquer outras, notoriamente prespectivadas aquando do julgamento do recurso naquele Supremo Tribunal.
Ora, relativamente às circunstâncias agravantes que efectivamente ditaram a sua condenação - que o STJ se limitou a confirmar - não curou o recorrente de suscitar, de forma tempestiva e adequada, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que pudesse suportar o recurso de constitucionalidade interposto, com fundamento na alínea b) do nº 1 do ar. 70º da Lei nº 28/82'.
8. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
9. O artigo 72º do Código Penal de 1982 - cuja conformidade com a Constituição é negada pelo reclamante - dispõe o seguinte:
'ARTIGO 72º
(Determinação da medida da pena)
1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.
2. Na determinação da pena, o tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A gravidade da falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena'.
A não especificação da norma impugnada de entre todas as que contem este preceito normativo poderia ter dado origem ao despacho de aperfeiçoamento, previsto no nº 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro), não fora o facto de o Conselheiro Relator do Tribunal a quo ter concluído que, mesmo suprindo essa falta, o recurso não preencheria os requisitos de admissibilidade.
De qualquer modo, dúvidas não há em que apenas foi colocada a questão da inconstitucionalidade da norma da alínea d) do nº 2 daquele artigo 72º, já que foi aquela norma que, segundo o reclamante, foi aplicada em termos alegadamente novos e imprevisíveis no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de que pretendeu recorrer para este Tribunal. O artigo 72º do Código Penal de 1982 foi aplicado no Acórdão de 6 de Junho de 1994 do Tribunal de Círculo de Ponta Delgada (como, expressamente, em relação ao ora reclamante decorre do que se escreve nas fls. 8 e 8v. dos presentes autos), apenas inexistindo aí qualquer referência às circunstâncias enumeradas na alínea d) daquele normativo, ao invés do que ocorre no já transcrito parágrafo do Acórdão de 6 de Novembro de 1996 do Supremo Tribunal de Justiça: questão nova - a haver alguma - é, pois, apenas a que contende com a aplicação daquela alínea.
10. Assim delimitado o âmbito da questão de constitucionalidade suscitada, há que decidir sobre o bem fundado da decisão de inadmissão do recurso, que é o que aqui está em causa. Já se viu que a razão determinante dessa inadmissão não foi de ordem formal, porquanto isso obrigaria antes a um despacho de aperfeiçoamento. Os fundamentos invocados foram dois: inaplicação de qualquer preceito inconstitucional e não invocação de qualquer questão de inconstitucionalidade durante o processo por parte do recorrente. Porque o primeiro se traduz num juízo de constitucionalidade normativa, portanto passível de aferição, em recurso, por parte deste Tribunal, só do segundo fundamento invocado poderia resultar a inadmissão do recurso. É que, de facto, entre os requisitos específicos dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, conta-se o da suscitação da questão de inconstitucionalidade durante o processo, entendido tal requisito não num sentido puramente formal, mas sim num sentido funcional - que se traduz em exigir que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal de que se recorre para o Tribunal Constitucional sobre a matéria a que respeita a questão de inconstitucionalidade suscitada.
Ora, uma vez que tal questão só foi invocada posteriormente ao Acórdão de 6 de Novembro de 1996 do Supremo Tribunal de Justiça, teve lugar em momento - em princípio - processualmente inidóneo para preencher tal requisito de admissibilidade do recurso. A isto opõe o recorrente, porém, a imprevisibilidade da questão antes da decisão recorrida, por só nesta ter tido lugar 'a violação do dispositivo constitucional', nisso indo, aparentemente, ao
encontro da jurisprudência constitucional, que admite, em situações
'excepcionais' ou 'anómalas', a invocação da questão de inconstitucionalidade mesmo após o esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo.
Não interessa, porém, passar em revista uma tal jurisprudência do Tribunal Constitucional - que, aliás, exige uma interpretação judicial 'tão insólita e imprevisível, que seria de todo o ponto desrazoável dever a parte contar (também) com ela' (na formulação do Acórdão nº 479/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992), o que, manifestamente, não está em causa: valorando-se, como manda a lei, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, sempre resultaria prejudicado, na sua óptica,
'o seu direito a um tratamento igualatário perante a lei', porquanto é da natureza de tal cláusula funcionar ora como atenuante, ora como agravante, como no seu caso. Dizendo-o mais claramente: para poder aceitar-se a excepção à regra da necessidade da invocação da inconstitucionalidade durante o processo, necessário seria que o sentido alegadamente inconstitucional da norma não fosse o que estruturalmente é e, ainda por cima, o recorrente alega ser: necessário seria que fosse outro, 'imprevisível' e 'insólito'.
11. Mas dizia-se que era dispensável certificar a óbvia incompatibilidade entre a situação em causa e as exigências formuladas nessa jurisprudência quanto à excepcional aceitação de 'recursos' de inconstitucionalidade sem prévia decisão, implícita ou explícita, sobre uma questão suscitada pelo recorrente. Cumpre, agora, explicitar porquê. Ora, se bem se atentar, o recorrente pretendeu efectivamente estabelecer a natureza
'imprevisível' e 'insólita' da decisão do Tribunal a quo - em termos que, aliás, como resulta da posição supra transcrita do Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, também não mereciam acolhimento -, invocando não a imprevisibilidade de uma interpretação normativa que reputasse desconforme com a Constituição, mas sim a atribuição de relevo a um elemento de facto inverídico e, alegadamente, não constante dos autos. Só que, como bem se sabe, objecto do recurso de constitucionalidade só podem ser normas jurídicas, sendo este Tribunal destituído de competência para ajuizar da conformidade ou desconformidade real do que se escreve nas decisões dos tribunais a quo.
12. Em suma: o que foi reputado imprevisível não foi a interpretação da norma que se pretendeu impugnar num momento processualmente inidóneo: foi o substracto fáctico supostamente subjacente à aplicação dessa norma. Porque a questão normativa, a existir alguma relevante do ponto de vista constitucional, se colocou sempre da mesma forma, do princípio ao fim do processo, a única - alegada - questão nova (que, em termos de decisão o não foi, uma vez que esta permaneceu inalterada desde o acórdão da 1ª instância) traduziu-se numa questão de conformidade entre o discurso fundamentador da decisão e a realidade fáctica subjacente. Sobre tais questões, porém, o Tribunal Constitucional nada tem a dizer, pelo que também nada tem a alterar na decisão reclamada.
III - Decisão.
13. Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, condenando-se o reclamante em custas, para o que fixa a taxa de justiça em oito Unidades de Conta.
Lisboa, 08 de Outubro de 1997 Fernando Alves Correia Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa