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Processo n.º176/05
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
“1. A., melhor identificado nos autos, foi julgado no Tribunal Judicial da
Comarca de Alcobaça, no processo comum singular n.º 133/02.9TAACB do 2º Juízo,
tendo sido condenado, por sentença de 8 de Janeiro de 2003, pela prática de um
crime de lenocínio, previsto e punido pelo artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal,
na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução
pelo período de 3 (três) anos.
O arguido interpôs recurso do despacho proferido em audiência de julgamento
(fls. 401), que indeferiu a nulidade arguida quanto à busca realizada aos
quartos, anexos à discoteca, onde ocorriam os actos sexuais, e ainda da sentença
condenatória.
2. Na motivação do recurso intercalar o recorrente sustentou o seguinte [segue
transcrição das conclusões da motivação do recurso]:
‘1. Conforme resulta do douto despacho, de que se recorre, e da douta sentença,
já proferida, nos quartos anexos à discoteca travavam-se actos sexuais entre
pessoas do sexo feminino e masculino.
2. No momento da realização da busca as testemunhas B. e C. foram surpreendidas,
por elementos da polícia, a manter relações sexuais com indivíduos do sexo
masculino.
3. Os actos praticados nos quartos anexos à discoteca eram do foro íntimo dos
cidadãos.
4. Este espaço, fechado e reservado, deverá ser considerado como habitação ou
sua dependência fechada para os efeitos do n.º1 do art. 177 do CPP.
5. Na verdade, os art. 26.º e 34.ºda CRP, não se confinam apenas em proteger o
domicílio em sentido civi1ístico, mas sim com uma dimensão mais ampla abrangendo
também todo o espaço fechado e vedado a estranhos, onde recatada e livremente,
se desenvolve uma série de condutas e procedimentos característicos da vida
privada e comum.
6. Concatenando os autos resulta ser entendimento da Polícia Judiciária, do MP e
do Juiz que a busca àquele local necessitava de autorização judicial.
7. A busca realizada fora do prazo estabelecido na Constituição e Código de
Processo Penal (artigo 34.º, n.º 3 e 177.º, n.º 1, respectivamente) equivale à
inexistência de ordem judicial.
8. Acresce que a autorização do arguido não legitima a realização da busca,
porquanto não é ele o portador do direito à reserva da privacidade e intimidade.
9. Este direito é pertença das pessoas que, naquele momento ocupavam os quartos,
pois, só assim esse direito terá conteúdo.
10. Dir-se-á ainda que o arguido podia autorizar a realização da busca à
discoteca e já não aos quartos.
11. Mesmo a entender-se que, sendo o arguido arrendatário do local buscado,
tinha a sua disponibilidade, sempre se diria que o consentimento para a
realização da busca necessitava da autorização das pessoas que naquele momento
possuíam legalmente os quartos.
12. Por outro lado o vício da não autorização judicial ou o consentimento das
pessoas que o podiam dar, constitui uma nulidade insanável porquanto, sendo o
direito à privacidade e intimidade protegidos constitucionalmente, são
directamente aplicáveis.
13. De resto estes vícios contendem a substância – direitos liberdade e
garantias – e não com meros procedimentos processuais.
14. Sempre se dirá que a violação do disposto no art. 126.º do CPP, decorrendo
de uma proibição constitucional (art. 26.º e 34.º, da CRP), não segue o regime
previsto no art. 118.º, do mesmo Código.
15. Com efeito, nesta perspectiva, estar-se-ia perante uma proibição de prova e
por isso também invocável a todo o tempo.
16. É esta a melhor interpretação a dar aos art. 118.º, 126.º e 177.º, do CPP,
pois, a dar‑se‑lhes outra então essas normas são inconstitucionais por
contenderem com o estatuído nos art. 18.º,26.º,32.º e 34.º, da CRP.’
Quanto ao recurso da decisão condenatória, concluiu o recorrente que [segue
transcrição das conclusões da motivação do recurso]:
«1. O recorrente manifesta interesse no seu recurso intercalar, dando assim
cumprimento ao disposto no art. 412.º, n.º 5 do CPP
2. Pretendia o arguido impugnar a matéria de facto dada como provada. Todavia,
não o pode fazer adequadamente, uma vez que, o depoimento da testemunha B.
apresenta partes omissas.
3. Com efeito, como resulta das transcrições efectuadas por uma empresa
escolhida pelo tribunal, várias das respostas dessa testemunha são
imperceptíveis.
4. Em consequência se invoca a irregularidade da falta de gravação das partes
aludidas que determinaram a invalidade da audiência de julgamento, bem como a
respectiva acta e sentença.
5. A busca à discoteca … não foi validada pelo tribunal estando inquinada de
nulidade absoluta.
6. É esta a melhor interpretação a dar aos art. 126.º, 174.º e 177.º, todos do
CPP, pois outra interpretação colide com o disposto nos art. 18.º, 32.º e 34.º
da CRP.
7. Dos factos dados como provados não resultam preenchidos todos os elementos
do tipo de ilícito previstos no art. 170.º, n.º 1 do CPP.
8. Com efeito, não se deu como provado que o arguido tenha fomentado a prática
da prostituição.
9. Também da matéria assente não resulta que o recorrente tenha favorecido ou
facilitado essa actividade.
10. A conduta do recorrente enquadra-se mais no que se designa por rufianismo.
11. Sempre se dirá que o art. 170.º n.º1 do CPP é inconstitucional.
12. O bem jurídico protegido, pela referida norma, é a autodeterminação sexual
ou residualmente a moral e os bons costumes.
13. Resulta do art. 18.º n.º2, da CRP, que os direitos, liberdades e garantias
se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos.
14. As violações morais não conformam a lesão de um autêntico bem jurídico, não
podendo, por isso, integrar o conceito material de crime.
15. Por outro lado a liberdade sexual não se mostra ofendida pelas condutas
cominadas no art. 170.º n.º 1.
16. É esta a melhor interpretação a dar à norma citada, pois, a dar-se-lhe outra
a mesma padece de inconstitucionalidade material por contender com o estatuído
no art. 18.º, n.º 2, da CRP;
17. Por dever de patrocínio sempre se dirá que a pena aplicada ao recorrente se
mostra exagerada.
18. O arguido conta 50 anos de idade, sendo primário.
19. Confessou parcialmente os factos.
20. Está familiar e socialmente inserido.
21. Não se vislumbram motivos para a pena se afastar do mínimo legal».
O Ministério Público respondeu pugnando pela improcedência dos recursos.
3. Por acórdão de 10 de Novembro de 2004, o Tribunal da Relação de Coimbra
decidiu julgar improcedente o recurso do despacho proferido em audiência de
julgamento, a fls. 401, que indeferiu a nulidade arguida quanto à busca
realizada aos quartos anexos à discoteca/“boite” a que se referem os autos, bem
como o recurso do acórdão [sentença] condenatório, confirmando‑o nos termos em
que foi proferido.
Este aresto fundamentou-se no seguinte:
«(…)
I. Recurso que indeferiu a nulidade da busca
a) Da nulidade da busca e tempestividade da sua arguição.
O despacho que indeferiu a nulidade constante de fls. 401 e 402, foi proferido
na audiência de julgamento de 19/12/2003, na sequência da arguição ali feita
pelo defensor do arguido.
A busca foi efectuada em 7/09/2001.
Do elenco das nulidades insanáveis, constantes do art. 119.º, do CPP, as quais
podem ser declaradas em qualquer fase do procedimento, não consta a arguida
nestes autos.
Não se tratando de uma nulidade prevista no artigo atrás mencionado, a mesma,
dizendo respeito à fase de inquérito, devia ter sido arguida até 24/06/2003,
data em que ocorreu o encerramento do debate instrutório, conforme consta de
fls. 274 e segts., por força do art.120.º, n.º 3, al. C), do CPP.
O arguido interveio na instrução e nada requereu quanto à busca efectuada.
Assim, ficou preterida a oportunidade de arguição da aludida nulidade.
Mas mesmo que a arguição fosse tempestiva, a busca nunca seria nula.
Não pode ser nula a busca efectuada, ao abrigo do art. 126.º, n.º 3, do CPP,
enquanto método proibido de prova, uma vez que não estamos perante prova obtida
mediante intromissão na vida privada ou no domicílio e além disso foi realizada
com o seu consentimento, o que nunca foi posto em causa.
Salvo o devido respeito pelo parecer do ilustre Prof. D., junto de fls. 528 a
561, os quartos aos quais as “alternadeiras”, B. e C., entre outras, se
deslocavam com seus clientes, para com eles praticarem actos sexuais, não podem
ser considerados como domicílio ou habitação.
E não podem ser considerados como domicílio ou habitação, pois as mesmas não
residiam ali e não recebiam ali os clientes, como se refere no douto parecer.
As ditas alternadeiras “angariavam” os clientes na discoteca ou mais
precisamente “boite” e depois dirigiam-se para os “anexos”ou “reservados”, sem
os quais não fazia sentido a actividade do arguido.
De tal forma os anexos, onde funcionavam os quartos para as práticas sexuais,
faziam parte da “boite” que estavam ligados com acesso directo, como decorre das
declarações da testemunha E. (Inspector da Polícia Judiciária e que participou
na busca à discoteca …), o qual relatou que, no decorre desta, “viu um casal a
sair de uma casa de banho, desconfiou e, com o capitão F., introduziram-se nela,
constataram que as instalações sanitárias davam acesso a uns anexos traseiros
onde se encontravam quartos.
Depois, refere ainda que tendo-se deslocado aos quartos, entrou num deles, tendo
vislumbrado despidos um homem e uma mulher deitados na cama, ele por cima dela.
O arguido vem acusado da prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo art.
17.º, do CP, por profissionalmente e com intenção lucrativa, fomentar, favorecer
ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição.
É claro que a actividade de prostituição se desenvolve no estabelecimento
discoteca ou boite, do qual fazem parte o espaço onde convivem as prostitutas
com os clientes, ouvindo música e consumindo bebidas e os anexos com quartos que
têm por finalidade destinarem‑se à prática de sexo.
A busca obedeceu aos requisitos legais:
a) Foi ordenada pelo juiz competente (fls. 71) e mediante mandado de busca (fls.
79), nos termos do art. 174.º, n.º 2 e 3, do CPP.
No despacho em apreço escreve-se que se ordena a busca estabelecimento comercial
“… e instalações anexas, sito na E. N. n.º , …, gerido por A.”.
b) Não está sujeita ao limite temporal, para a sua realização, isto é entre as
7 e as 21 horas, estipulado no art. 177.º, n.º 1, do CPP, por não estarmos
perante uma busca domiciliária. C) O arguido consentiu expressamente na busca,
apesar de ordenada pela autoridade judiciária competente, conforme decorre do
auto de fls. 82.
d) A busca não tinha que ser validada pela autoridade que a ordenou, pois não há
norma que imponha tal formalidade.
Concluímos assim que ainda que fosse tempestiva a arguição da nulidade da busca,
a mesma não estaria ferida de qualquer nulidade, improcedendo assim o recurso
interposto do despacho que a indeferiu.
II. Recurso do acórdão condenatório
a) Da irregularidade da gravação do depoimento da testemunha B. e sua relevância
para a decisão
(…)
b) Da validação da busca pelo tribunal recorrido
Esta questão encontra-se prejudicada por ter sido analisada atrás no recurso que
apreciou a arguição da nulidade da busca.
c) Da verificação dos elementos constitutivos do crime de lenocínio, p. e p.
pelo art. 170.º, do CP.
Pratica este tipo legal de crime:
“Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou
facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos
sexuais de relevo…”.
Não faz sentido a motivação de recurso do arguido nesta parte, quando escreve
nas conclusões n.º 7 e n.º 8, a fls. 499:
“(…)
7. Dos factos dados como provados não resultam preenchidos todos os elementos do
tipo de ilícito previstos no art. 170.º, n.º 1 do CPP.
8. Com efeito, não se deu como provado que o arguido tenha fomentado a prática
da prostituição.
9. Também da matéria assente não resulta que o recorrente tenha favorecido ou
facilitado essa actividade”.
Por certo o arguido só escreveu estas conclusões por não ter lido atentamente a
matéria de facto dada como provado, pois esses elementos objectivos e
constitutivos do tipo legal de crime de lenocínio, p. e p. pelo art. 170.º, n.º
1, do CP, resultam claramente dos pontos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13,
15, 16.
Inequivocamente que o arguido exercia a actividade de exploração da prostituição
em estabelecimento comercial do qual era proprietário e gerente, ao qual ele
próprio chama de “boite”, quando da mesma faz publicidade no jornal … ,
publicando um anúncio a dispor-se a aceitar “acompanhantes para boite de luxo,
com excelente ambiente, óptimas percentagens, pago diário (ponto 15).
Entre a abundante factualidade acima descrita que evidencia a prática do crime
pelo qual foi condenado o arguido, podemos referir, para contrariar a
sustentação do recorrente o seguinte:
Por cada relação sexual, de meia hora, a empregada ou “alterne” costumava
cobrar, por ordem do arguido, a quantia de 10.000$00, a qual era paga ao balcão
(ponto 11).
Desse dinheiro, a empregada entregava 5.000$00 ao arguido (ponto 12).
O arguido controlava esta actividade e respectivos ganhos através da sua
inscrição em folhas de papel onde colocava o nome da “alterne”, do número dos
trabalhos efectuados e das quantias recebidas (ponto 13).
Ao fomentar e favorecer a descrita prostituição bem como a prática de outros
actos sexuais de relevo, agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, com
o intuito concretizado de satisfazer os interesses lascivos de terceiros e de
obter para si lucros à custa da exploração sexual das mulheres que para si
trabalhavam na discoteca “…” o que fazia profissionalmente (ponto 16).
Obviamente que o arguido fomentou, favoreceu e facilitou a prática da
prostituição.
Com o seu comportamento, praticou assim o arguido o crime de lenocínio, p. e p.
pelo art. 170.º n.º1, do CP.
*
d) Da inconstitucionalidade do art. 170.º, n. ° 1, do CP.
Alega o recorrente que o art. 170.º, n.º 1 do CPP é inconstitucional.
Fundamenta a sua posição no facto de que o bem jurídico protegido, pela referida
norma, é a autodeterminação sexual ou residualmente a moral e os bons costumes.
Citando o art. 18.º, n.º 2, da CRP, refere que os direitos, liberdades e
garantias se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos.
Partindo do princípio de que as violações morais não conformam a lesão de um
autêntico bem jurídico, não podendo, por isso, integrar o conceito material de
crime, conclui que a liberdade sexual não se mostra ofendida pelas condutas
cominadas no art. 170.º, n.º 1. Discordamos, do entendimento defendido pelo
recorrente quanto à inconstitucionalidade da incriminação prevista no art.
170.º, n.º 1 do Código Penal.
Tal questão foi recentemente alvo de decisão do Tribunal Constitucional –
Acórdão n.º 144/2004, de 10-3-2004, disponível no site oficial do Tribunal
Constitucional – que conclui pela não inconstitucionalidade do referido preceito
por violação, designadamente, do art. 18.º, n.º 2 da Constituição.
Refere-se no mencionado acórdão que, “subjacente à norma do art. 170.º, n.º 1,
está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas
análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição
relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são
situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (…). Tal
perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma
Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa
humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de
acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa
qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser
utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele,
desde logo, o artigo 1.0 da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na
igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal
ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I série, de 26 de Julho de 1980),
bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e
Exploração da Prostituição de utrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991)”.
Assim, a intervenção do Direito Penal não pode ser visto como uma mera tutela
jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores
essenciais do direito e com as suas finalidades específicas num Estado de
Direito.
O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da
liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem –
cfr. Acórdão citado.
No entender do Tribunal Constitucional a incriminação prevista no art. 170.º,
n.º 1, do Código Penal corresponde a uma opção de política criminal justificada,
sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como
lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se
dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência, pelo que não
considera tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens
jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade.
Segundo o referido acórdão, “o entendimento subjacente à lei penal radica, em
suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a
sexualidade humana como modo de subsistência, protecção directamente fundada no
princípio da dignidade humana”.
Salvo o devido respeito pela tese perfilhada pelo Prof. D., no seu parecer de
fls. 528 a 561, junto aos autos pelo arguido, segue-se o entendimento de que na
incriminação do crime de lenocínio não é colocado em causa o carácter
subsidiário do direito penal, nem se configura como excessiva a restrição
imposta a qualquer direito ou expressão de liberdade, com protecção
constitucional, do agente da infracção penal, não representando o respectivo
sancionamento penal qualquer violação do princípio da proporcionalidade
consagrado no art. 18.º, n.º 2 da Constituição.
Nestes termos, discordando da motivação de recurso do arguido, a incriminação do
crime de lenocínio, p. e p. pelo art. 170.º, do CP, não sofre da
inconstitucionalidade alegada, pois não viola o art. 18.º, n.º 2, da CRP.
*
e) Da adequação da pena aplicada.
(…)»
4. Notificado, veio o recorrente apresentar os requerimentos de fls. 731 a 733 e
de fls. 734 a 755, respectivamente, de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional e de arguição de nulidade do acórdão da Relação, com fundamento
em omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código
de Processo Penal.
Por acórdão de 2 de Fevereiro de 2005, o Tribunal da Relação de Coimbra,
considerando que a arguição de nulidade do acórdão prejudicava a interposição do
recurso constitucionalidade, por este só dever ser interposto depois de
estabilizada a instância na Relação, apreciou a reclamação e julgou improcedente
a nulidade invocada, confirmando integralmente o acórdão reclamado.
5. Inconformado, veio o recorrente interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, nos termos do requerimento de fls. 776 a 781.
Admitido o recurso e remetidos os autos ao Tribunal Constitucional, o relator
proferiu despacho convidando o recorrente “a identificar a decisão recorrida e
concretizar o objecto do recurso, indicando com precisão quais as normas e/ou
interpretações normativas que efectivamente pretende ver apreciadas, as peças
processuais em que suscitou tais questões e as respectivas normas ou princípios
constitucionais que julga terem sido violados”, tendo, em resposta, sido
apresentado o requerimento de fls. 796 a 806, no qual o recorrente concluiu a
sua pretensão nos seguintes termos:
«1- O arguido suscitou a inconstitucionalidade material das normas constantes do
n.º 1 do art.º 170.º do C.P., e dos artigos 118.º, 126.º e 177.º do CPPO, no seu
recurso intercalar (19/1/04), o qual veio a ser decidido por decisão proferida
no dia 10/11/04, e de que agora se recorre.
2- A norma constante do art.º 170.º, n.º 1 do C.P., cuja inconstitucionalidade
se suscita, não protege bem jurídico com dignidade penal.
3- Na verdade os comportamentos subjacentes àquela norma prendem-se com a
liberdade e a autodeterminação sexual que enquanto cometidos livremente não têm
tutela constitucional.
4- De resto as violações morais não comportam a lesão de um autêntico bem
jurídico não podendo por isso integrar o conceito material de crime.
5- A circunstância de a actividade de facilitar, promover ou fomentar a
prostituição, ser levada a cabo com intenção lucrativa, não viola bem jurídico
algum pelo que as razões da sua inconstitucionalidade permanecerem.
6- O douto acórdão interpretou a norma constante do art.º177.º, n.º 1 do CPP com
o sentido de que os quartos anexos a uma discoteca onde se praticam relações
sexuais não integra o conceito de domicílio.
7- As normas constitucionais – artigo 26.º e 34.º - estendem o domicílio a uma
dimensão mais ampla tendo por objecto todo o espaço fechado onde se travam
relações privadas e/ou íntimas.
8- Ora as relações sexuais, praticadas num espaço reservado, constituem o núcleo
essencial da privacidade humana.
9- A interpretação acolhida pelo douto acórdão contende, pois, com o estatuído
nos artigos 26.º e 32.º da CRP, inquinando aquela norma de inconstitucionalidade
material.
10- De resto um espaço fechado onde se travem relações sexuais é insusceptível
de ser violado, mesmo pela autoridade judicial.
11- Com efeito, o direito à intimidade do cidadão protegido pelo artigo 26.º,
n.º 1 da CRP, não estando regulado na lei processual penal a sua invasão.
12- Assim, sendo o direito à intimidade um direito autónomo e não estando a sua
violação prevista na lei processual penal, a invasão desse direito a coberto do
artigo 177.º do CPP inquina esta norma de inconstitucionalidade material.
13- O douto acórdão interpretou as normas constantes dos artigos 126.º e 177.º
do CPP com o sentido de que o titular do bem jurídico protegido, no caso
concreto, era o arguido A. e por isso podia consentir na realização da busca.
14- Tal interpretação contende com os artigos 26.º e 34.º da CRP porquanto o
direito protegido é o daqueles que no momento ocupam os espaços (quartos)
reservados e onde se travam as relações sexuais.
15- Também o douto acórdão interpretou as normas constantes dos artigos 118.º,
126.º e 177.º, do CPP com o sentido de que a arguição desse nulidade é
intempestiva encontrando‑se sanada.
16- Entendemos que a melhor interpretação dessas normas é aquela que propende no
sentido de estarmos face a uma proibição de prova e logo arguível a todo o tempo
sob pena de aquela interpretação ser inconstitucional por contender com as
normas constantes dos artigos 26.º a 34.º da CRP.
17- Com efeito, o entendimento do douto acórdão cerceava de forma
desproporcionada o direito de o arguido se defender.
18- O arguido arguiu a inconstitucionalidade material das normas constantes dos
artigos 8.º, 97.º, n.º 4, 379.º, n.º 1, al. C) do CPP na medida em que se venha
a considerar que o douto acórdão não se pronunciou sobre alguma das
inconstitucionalidades suscitadas pelo recorrente.
19- Esta questão foi suscitada no requerimento enviado no dia 22/11/04 e
decidida por acórdão proferido no dia 2/2/05.
20- O recorrente tem o direito de ver decididas todas as questões por si
suscitadas sob pena de se restringir substancialmente o seu direito ao recurso e
ao contraditório.
21- Considerando que o douto acórdão de que se recorre não se pronunciou sobre
alguma das questões levantadas então as normas, cuja constitucionalidade
oportunamente se suscitou, são inconstitucionais por contenderem com o estatuído
nos artigos 32.º, 202.º e 204.º da CRP.»
6. Entende-se ser de proferir decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo
78º‑A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, como se passa a fundamentar.
7. Como resulta do requerimento de interposição de recurso de fls. 776 a 781,
complementado com o requerimento de aperfeiçoamento de fls. 796 a 806, o
recorrente interpõe recurso do acórdão da Relação de 10 de Novembro de 2004,
relativamente ao qual pretende que seja apreciada a inconstitucionalidade das
normas dos artigos constantes do n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, e dos
artigos 118.º, 126.º e 177.º do Código de Processo Penal, e do acórdão do mesmo
Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, que indeferiu as nulidades assacadas ao
primeiro aresto, sendo nesta parte o recurso reportado à apreciação das normas
dos artigos 8.º, 97.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo
Penal.
Porém, com excepção da norma do n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, de que se
tomará conhecimento, não pode tomar-se conhecimento do objecto do recurso quanto
às restantes normas invocadas pelo recorrente, que são as constantes do ponto
“II – Nulidades das buscas realizadas aos anexos da Discoteca …” do requerimento
de aperfeiçoamento, – ou seja, as dos artigos 118.º, 126.º e 177.º do Código de
Processo Penal, e dos artigos 8.º, 97.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, alínea c), do
mesmo diploma –, porquanto não foram aplicadas como ratio decidendi pelas
decisões recorridas.
8. Nesta parte do requerimento invoca o recorrente que a decisão recorrida
interpretou a norma do artigo 177.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “com o
sentido de que os quartos anexos a uma discoteca onde, além do mais, se travam
relações sexuais entre indivíduos, não integra o conceito de vida privada ou
domicílio”, violando os artigos 26.º e 34.º da Constituição, e as normas dos
artigos 126.º e 177.º do mesmo diploma “com o sentido de que o titular do bem
jurídico protegido, no caso concreto, era o arguido A., que consentiu na busca”
e não os indivíduos que ocupavam os quartos anexos onde se travavam as relações
íntimas.
Não obstante a decisão recorrida ter apreciado tais questões, decidiu-as em
segundo plano, como mero obiter dictum, pois entendeu que não podia conhecer da
nulidade invocada com fundamento na violação destes preceitos porque a mesma
estava sanada.
A este respeito, considerou a Relação que estava preterida a oportunidade de
arguição da nulidade em causa, porque a mesma não constava do elenco das
nulidades insanáveis, previstas no artigo 119.º, do Código de Processo Penal, as
quais podem ser declaradas em qualquer fase do processo, e como dizia respeito à
fase de inquérito, devia ter sido arguida até 24 de Junho de 2003 (data em que
ocorreu o encerramento do debate instrutório, conforme consta de fls. 274 e
segts.), por força do disposto no artigo 120.º, n.º 3, alínea c), do Código de
Processo Penal, o que não sucedeu, pois “o arguido interveio na instrução e nada
requereu quanto à busca efectuada”.
Mesmo que, por hipótese, o Tribunal Constitucional viesse a dar razão ao
recorrente quanto às questões suscitadas relativamente à interpretação destas
normas dos artigos 126.º e 177.º, a eventual decisão de inconstitucionalidade
não teria qualquer efeito útil no processo, já que a decisão de não conhecimento
da nulidade sempre se manteria com fundamento na aplicação das normas dos
artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, que não foram impugnadas.
9. Invoca ainda o recorrente a inconstitucionalidade das normas dos artigos
118.º, 126.º e 177.º, “com o sentido de que a aplicação dessa nulidade é
intempestiva encontrando-se sanada”.
Ora, o acórdão recorrido para chegar à decisão de não conhecimento da nulidade
resultante da violação dos artigos 126.º e 177.º do Código de Processo Penal,
aplicou as normas dos artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal,
enquadrando a “nulidade” na alínea c) do n.º 3 deste último preceito,
considerando-a sanada. E, como se viu, estas normas não integram o objecto do
recurso. Não fez referência ao artigo 118.º do mesmo Código.
Assim, não se pode afirmar que a decisão recorrida tenha aplicado aquele
conjunto normativo com a interpretação indicada pelo recorrente.
Resta acrescentar, a este respeito, que a apreciação do acerto da decisão quanto
à subsunção da questão da validade da prova, em resultado da eventual violação
do artigo 126.º e 177.º do Código de Processo Penal, ao regime da “arguição e
sanação das nulidades” previsto nos artigos 119.º a 122.º, com eventual
menosprezo do n.º 3 do artigo 118.º do mesmo Código, não integra o âmbito do
recurso de constitucionalidade, que não é concebido para o controlo da decisão
judicial em si mesma considerada, ainda que por referência a normas ou
princípios constitucionais, mas, apenas, para apreciar a conformidade à
Constituição das normas em que a decisão recorrida tenha fundado a decisão do
caso (ou que tenha afastado desse papel, por julgá-las inconstitucionais).
10. Coloca também o recorrente a questão da inconstitucionalidade das normas dos
artigos 8.º, 97.º, n.º 4, e 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo
Penal, “na medida em que se venha a considerar que o douto acórdão não se
pronunciou sobre alguma das inconstitucionalidades suscitadas pelo recorrente”.
Ora, a decisão recorrida, no caso o acórdão da Relação de 2 de Fevereiro de
2005, não aplicou as normas com semelhante interpretação, pois indeferiu o
pedido de arguição de nulidades com o fundamento de que se “abordaram e
decidiram todas as questões que havia a decidir”, embora em sentido contrário à
pretensão do recorrente, não perfilhando do mesmo entendimento.
Não se surpreende, pois, na decisão recorrida o entendimento de que o Tribunal
não tem que decidir as questões suscitadas pelo recorrente. O que ali se diz é
que não tem que o fazer com o sentido que o recorrente pretende, o que é coisa
diferente. O problema da discordância do recorrente quanto ao sentido da decisão
e ao acerto dos seus fundamentos não constitui uma questão de
constitucionalidade normativa de que cumpra conhecer, como já se referiu.
11. Resta, assim, apreciar a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo
170.º, n.º 1 do Código Penal, a qual tem o seguinte teor [redacção da Lei n.º
65/98, de 2 de Setembro]:
«Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou
facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos
sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.»
Entende o recorrente, em síntese, que tal norma não protege bem jurídico com
dignidade penal, porquanto os comportamentos que lhe estão subjacentes se
prendem com a liberdade e a autodeterminação sexual que, enquanto cometidos
livremente, não têm tutela constitucional. E, acrescenta, que “as violações
morais não comportam a lesão de um autêntico bem jurídico não podendo por isso
integrar o conceito material de crime”.
Na óptica do recorrente, que apela a um parecer jurídico junto aos autos,
resulta, pois, violado o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
Ora, a questão de constitucionalidade cuja apreciação é objecto do presente
recurso já foi tratada por este Tribunal nos acórdãos n.ºs 144/2004 e 199/2004
(publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Abril de 2004, e de 7 de
Dezembro de 2004), tendo-se aí concluído pela não inconstitucionalidade da norma
do n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal, que pune o crime de lenocínio.
Naquele primeiro aresto foi apreciada a alegada violação, pela norma em causa,
do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2, e dos
artigos 41.º (liberdade de consciência) e 47.º, n.º 1 (liberdade de profissão),
da Constituição da República, distinguindo-se as questões de constitucionalidade
de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma.
Depois de se identificar o bem jurídico protegido pela norma, concluiu-se que o
legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal
como o que ela prevê – e isto, tomando-se já em conta a redacção do artigo
170.º, n.º 1, do Código Penal, na versão resultante das alterações introduzidas
pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.
Por sua vez, o acórdão n.º 196/2004, acolhendo esta doutrina, apreciou a mesma
norma em confronto com os parâmetros constitucionais dos artigos os artigos 58.º
(direito ao trabalho), 26.º, n.º 1 (direitos à livre expressão da sexualidade, à
vida privada e à identidade pessoal) e 27.º, n.º 1 (direito à liberdade),
concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade.
Acompanhando-se estes fundamentos, onde a questão em causa está devidamente
tratada, designadamente, em confronto com o artigo 18.º n.º 2 da Constituição
(confronto no qual se centra também o parecer jurídico junto aos autos), resta
reiterar o juízo de não inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 170.º
do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.
12. Nestes termos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, decide-se:
a) Julgar improcedente o recurso quanto à norma do n.º1 do artigo 170º do Código
Penal;
b) Não tomar conhecimento do objecto do recurso relativamente às demais normas
invocadas pelo recorrente.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 9 unidades de
conta.”
2. O recorrente reclamou desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo
78-ºA da LTC, nos seguintes termos:
“Inconstitucionalidade da norma do artigo 170° nº1 do Código Penal
Com efeito, entendeu a douta decisão agora reclamada, estarem verificadas as
mesmas circunstâncias em que foram proferidos os acórdãos 144/2004 e 199/2004.
Fundamentos acompanhados pela decisão sumária agora em causa.
Salvo o devido respeito, não concordamos com a decisão de não sujeitar a
conferência a argumentação do arguido, uma vez que surgiram dados novos (aos
anteriores acórdão) que não podem ser ignorados pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, a doutrina autorizada, parece ser quase unânime quanto à
inconstitucionalidade material deste artigo 170° nº 1 do C.P.
Já após a prolação dos acórdãos 144/04 e 199/04, surgiu a seguinte doutrina
- Parecer jurídico junto estes autos subscrito pelo Prof. D..
- Ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias no seu livro Direito Penal I, pág. 118 e
119 – Deste modo – contra o que julgou o TC nos seus Acs. 144/2004, de 10-03, e
196/2004, de 23-3 – a incriminação tornou-se, em nossa opinião, materialmente
inconstitucional.
A que acrescem as posições já manifestadas e autorizadas, de Maria João Antunes
no processo 130/2004 da 2ª secção deste Tribunal Constitucional e Anabela
Miranda Rodrigues no Comentário Conimbricense, entre outras citadas na obra
citada de Figueiredo Dias.
Ou seja, salvo o devido respeito, não se trata de apelar a um parecer jurídico
junto aos autos, mas sim a uma nova investida da doutrina mais autorizada a esta
questão que o recorrente quis suscitar perante este Tribunal Constitucional.
Ainda que, por outras razões, mas seguramente pelas que não quisemos deixar de
aqui mencionar, não deveria uma decisão sumaria, sem conferência, decidir de uma
matéria tão delicada e que tem merecido a maior atenção da doutrina portuguesa,
ocorrendo novos dados doutrinários já depois de proferidos os dois acórdão
referidos na decisão sumaria.
Art. 177º, tempestividade da arguição da nulidade e aplicação directa
No que respeita a este ponto, também não concordamos, salvo o devido respeito,
com a decisão sumária tomada nestes autos.
É que como se decidiu no acórdão 137/200 1 deste TC,
Finalmente, também não colhe a alegada preclusão da apreciação da questão do
“reconhecimento”, nos termos do artigo 120° do Código Processo Penal, por a
arguida não ter suscitado “adequada e tempestivamente” a nulidade do meio
probatório consistente na não observância do artigo 147º quando da identificação
por declaração da ofendida, É que, por força do disposto no n ° 3 do artigo 118°
do mesmo Código, as disposições do Título V do referido diploma legal,
respeitantes às “nulidades”, “não prejudicam as normas deste Código relativas a
proibições de prova”. Ora, o artigo 147° estabelece uma proibição de prova, ao
determinar que “o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não
tem valor como meio de prova””.
Ou seja, também neste caso, se levantou a questão de saber se perante uma prova
proibida (art.126°), é conforme a constituição, uma interpretação que limite o
valor dessa ilegalidade, uma vez que os direitos violados tem consagração
constitucional e têm aplicação directa.
Pelo que, e salvo o devido respeito, face à posição expressa no acórdão
137/2001, é semelhante á que mereceu decisão sumaria nestes autos.
Mas, com tratamento diverso ao nível o conhecimento do recurso.”
O Ministério Público responde nos seguintes termos:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante não abala os fundamentos da
decisão reclamada, face à firme e recente corrente jurisprudencial existente
quanto à norma incriminadora questionada, sem que se aleguem circunstâncias
novas que o Tribunal Constitucional não haja já ponderado adequadamente.
3 – Por outro lado, a argumentação do reclamante em nada afecta o decidido
quanto à inverificação dos pressupostos do recurso, relativamente à questão
colocada em sede de processo penal, face ao modo como o recorrente tratou de
delimitar o conjunto de normas a que o reportou. “
3. A presente reclamação não merece provimento, em qualquer das suas vertentes.
Assim:
3.1. Quanto à questão de direito substantivo
Não foi só nos acórdãos n.º 144/2004 e 199/2004, proferidos pela 2.ª Secção, mas
também no acórdão n.º 303/2004, proferido em 5 de Maio de 2004, pela 1.ª Secção,
e sempre por unanimidade, que o Tribunal entendeu que a norma do artigo 170º,
n.º 1, do Código Penal, na versão resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro,
não viola a Constituição da República Portuguesa, e, designadamente, não ofende
os princípios enunciados pelo recorrente.
Esta jurisprudência é recente, teve intervenção da maioria dos juízes que
compõem actualmente o Tribunal e ponderou o essencial dos argumentos contidos
nas contribuições doutrinárias que o recorrente invoca.
Não deixará, a este propósito, de se recordar um trecho do acórdão
n.º 144/2004, que em especial releva para o caso dos autos:
“[…] subjacente à norma do artigo 170º, n.º 1, está inevitavelmente uma
perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a
Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais
existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado
é o da exploração da pessoa prostituída […]. Tal perspectiva não resulta de
preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada
por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser
mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e
actividades cujo «princípio» seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão
(seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como
puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o
artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade
da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (Lei n.º 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em
1991, a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da
Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
[…]”.
3.2. Quanto à questão de direito processual
Não é transponível para o caso presente o entendimento que foi adoptado no
acórdão n.º 137/2001 (Diário da República, II Série, de 29 de Junho de 2001),
que o recorrente invoca.
Com efeito, diversamente do que sucedia naquele outro processo, o acórdão
recorrido adoptou o entendimento expresso de que, por falta de oportuna arguição
na fase de instrução, ficou preterida a invocação da aludida nulidade. Esse
entendimento fundou-o o acórdão recorrido nos artigos 119.º e 120.º, n.º 3,
alínea c), do Código de Processo Penal. Não cabe nos poderes cognitivos do
Tribunal Constitucional censurar o acerto desse entendimento no plano de direito
ordinário. Foi dessas normas e não dos artigos 118.º, 126.º e 177.º do Código de
Processo Penal que o acórdão recorrido retirou a conclusão de que a nulidade
estava sanada. Reportando o recorrente o entendimento de que a nulidade ficou
sanada a um conjunto normativo totalmente diverso daquele que o acórdão
recorrido aplicou para considerar precludida a correspondente arguição, não pode
conhecer-se do recurso nessa parte. Em resumo: para esta questão, o recorrente
indicou normas que não foram as aplicadas e não indicou aquelas que foram
efectivamente aplicadas para decidi-la.
De modo que, não tendo o recorrente incluído essas outras normas no objecto do
recurso que interpôs, e ficando, portanto, intocável a decisão sobre a
intempestividade da invocação da nulidade, não tem interesse conhecer da questão
de constitucionalidade do entendimento adoptado quanto ao n.º 1 do artigo 177.º
do mesmo Código.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) Ucs.
Lisboa, 6 de Março de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício