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Processo nº 873/2005.
3ª Secção.
Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. A., na qualidade de detentora de uma quota na sociedade B.,
Ldª, apresentou queixa criminal contra C., igualmente sócio daquela sociedade e
da mesma sócio gerente e director geral, imputando-lhe o cometimento de factos
que, na óptica da denunciante, o tornariam incurso na autoria de um crime de
infidelidade, previsto e punível pelo artº 224º do Código Penal.
Por despacho proferido em 14 de Outubro de 2004 pela
Procuradora-Adjunta em funções junto do Tribunal de comarca de Ponta Delgada,
foi determinado o arquivamento do inquérito, já que, em síntese, foi entendido
que, a haver prejuízo – o que se não verificaria no caso concreto –, ele
incidiria sobre o património da B. e, sendo o denunciado ilícito um crime
semi-público, tão só a esta sociedade caberia legitimidade para deduzir a queixa
crime, além de que a conduta do denunciado não integrava a prática do crime em
causa.
Vindo então a denunciante requerer a sua constituição como
assistente e requerer a abertura da instrução, o Juiz de instrução criminal
daquele Tribunal de comarca, por despacho de 7 de Janeiro de 2005, admitiu-a a
intervir nos autos como assistente e determinou a abertura da instrução.
Desse despacho recorreu o denunciado para o Tribunal da Relação
de Lisboa.
Na resposta à motivação, a denunciante, em dados passos, fez
escrever: –
“(…)
11. A ora recorrida, age enquanto sócia, ainda que minoritária, de uma entidade
jurídica que havia confiado a disposição de interesses alheios (para utilizarmos
a formulação legal) ao arguido, e que somente perante a passividade da
sociedade, entidade que no entender do recorrente, seria a única a ter interesse
directo, tem interesse directo.
12. O entendimento perfilhado pelo recorrente, permite que tal como neste caso
concreto, os sócios maioritários, gozassem de imunidade perante este e se calhar
outros, tipos legais de crime, na medida em que a detenção da maioria do capital
permite-lhes determinar[ ] a vontade da sociedade, que no caso concreto seria a
de não apresentar queixa.
13. parece-nos assim óbvio, que não obstante a formulação restritiva dos arestos
doutamente citados nas alegações de recurso, à recorrida cabe um interesse
directo ou ainda que reflexo ou indirecto, merecedor da tutela jurídica e em
concreto da tutela penal.
14. Ao entender-se em sentido diverso, em nossa modesta mas firme opinião, está
o tribunal a violar o princípio do acesso ao direito e à justiça, plasmado na
primeira parte do nº 1 do artº 20º da C.R.P., ao impedir que os sócios
minoritários gozem de tutela jurídico-penal sobre os crimes praticados pelos
sócios maioritários,
15. Sendo certo que de todo não se espera a revogação do despacho recorrido,
certo é que caso tal aconteça desde já se arg[ú]i a inconstitucionalidade
material do artº 68º nº 1 do CPP, na interpretação que nega o interesse dos
sócios nos crimes praticados contra a sociedade, por violação do disposto no
artº 20º nº 1 da C. R. P.
Pelo que se formulam as seguintes CONCLUSÕES:
(…)
g) A recorrida tem por isso interesse directo em agir e é afectada no seu
património e na confiança que depositava no arguido, confiança esta que
constitui igualmente um bem jurídico tutelado pela norma do artº 224º do CP.
h) Ao entender-se em sentido diverso, está a negar-se a tutela jurídico-penal
dos sócios minoritários em relação ao crime p. p. pelo artº 224º do CP.
i) Pelo que o entendimento de que o artº 68º nº 1 al. a) do CP que negue o
acesso aos tribunais no caso concreto, viola o disposto na primeira parte do nº
1 do artº 20 da C.R.P., pelo que se arg[ú]i a inconstitucionalidade material
desta norma caso tal entendimento venha a ser perfilhado.
(…)”
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 22 de Setembro de
2005, concedeu provimento ao recurso, determinando a revogação da decisão
impugnada por outra que não admitisse a denunciante a intervir nos autos como
assistente.
A esse aresto foi carreada, no que ora releva, a seguinte
fundamentação: –
“(…)
2. – Em conformidade com o art. 68 nº 1 al. a) CPP podem constituir-se
assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem
esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos
interesse[s] que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que
maiores de 16 anos.
Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis
proteger consagrou-se, ou melhor, manteve consagrado o conceito restrito de
ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior
no domínio do CPP de 1929 (cfr. v. g. na doutrina Beleza dos Santos, ‘Partes
Particularmente Ofendidas em Processo Criminal’, RLJ, ano 57, Figueiredo Dias,
‘Direito Processual Penal’, 1º vol., p. 505-506 e 512-513; Cavaleiro de
Ferreira, ‘Curso de Processo Penal’, I, p. 129; com significado, na
jurisprudência, o Ac. do STJ de 66.1.5. BMJ 153-133).
Neste conceito de ofendido não cabem, por isso, o titular de interesses mediata
ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de
interesses morais. Podem estes ser lesados e nessa qualidade sujeitos
processuais como partes civis mas não constituir-se assistentes.
Ora, esta circunstância desde logo afasta a possibilidade de a queixosa vir a
constituir-se assistente.
Ainda que nos ocupássemos do interesse jurídico-penal a que a aplicação daquele
conceito de ofendido poderia levar no caso concreto, mesmo que procurássemos
precisar qual o bem jurídico que as normas invocadas protegem o certo é que
sempre depararíamos com a questão da titularidade desse bem. Ainda que não
pública ou não exclusivamente p[ú]blica ela não seria decerto pertença da
queixosa mas sim da sociedade de que era sócia.
Admitindo, que o interesse protegido nos crimes de infidelidade não é só o
património do titular afectado directamente com a conduta do arguido mas também
a ‘confiança no tráfico jurídico’ (José Ant[ó]nio Barreiros, Crimes Contra o
Património, U.L., 1996, 211), sempre haveria de concluir-se que, no caso
concreto, o património que está em causa, aquele que merece a protecção da norma
é evidentemente o da sociedade ‘B., Lda.’ da qual era gerente a queixosa e não,
claro está, de uma forma directa o património desta na qualidade de sócio.
Lesada seria, por conseguinte, a sociedade e não, directamente, qualquer dos
seus sócios. O direito aos ganhos da sociedade, bem como o direito ao seu
bom-nome e à sua valorização, enquanto factores de valorização da quota são
decerto respeitáveis e atendíveis mas são apenas interesses mediatos ou
indirectos dos sócios.
Neste sentido, decidiu v. g. o Ac. Rel. de Coimbra de 90.5.23, CJ 3/90-73
(precisamente em relação a um crime de infidelidade), seguindo aliás o
ensinamento de Figueiredo Dias, no domínio do CPP de 1929, ensinamento esse que,
como já se deixou dito continua inteiramente válido. Partindo do conceito de
ofendido a que já se aludiu conclui aquele Autor (‘Direito Processual Penal, I,
p. 513) que: ‘Não podem deste modo intervir no processo penal como assistentes,
v. g. o mero detentor ou possuidor da coisa furtada ou desencaminhada, uma vez
que o interesse protegido pela incriminação do furto ou do abuso de confiança é
só o do proprietário; o enganado, se não for simultaneamente o patrimonialmente
lesado por um crime de burla; o processualmente lesado por falso testemunho, por
isso que a incriminação protege só o interesse da administração da justiça; o
sócio de uma sociedade por quotas por crime patrimonial cometido contra a
sociedade como tal;’. Neste sentido cfr. Ac. da RL de 10/04/91, Base de Dados da
DGSI, nº JTRL00017901 ‘(…) Se o titular do interesse assim definido é uma
sociedade o sócio não pode constituir-se assistente’.
Aliás, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem-se orientado no
sentido de negar aos sócios legitimidade para se constituírem assistentes nos
processos em que a ofendida é a sociedade – Ac. STJ, de 20 de Janeiro de 1998,
Col. Jur., Ano VI, Tomo I – 1998, pag. 164.
De facto, sendo a sociedade pessoa jurídica distinta dos sócios, os seus
interesses, designadamente patrimoniais são diferentes dos interesses dos sócios
individualmente considerados de forma que a afectação daqueles só de forma
mediata e indirecta poderão constituir prejuízo para estes.
Ora, estando em causa um alegado crime [d]e infidelidade administrativa
relativamente a interesses patrimoniais de sociedade, é o património desta o bem
jurídico tutelado pela incriminação e, como tal, será esta a titular do
interesse imediata e directamente tutelado pela norma incriminadora.
É certo que no caso de infidelidade administrativa relativamente a sociedade,
qualquer dos sócios da sociedade em causa poderá ter sofrido danos da actuação
do arguido, podendo defender-se que a confiança depositada no agente pelos
sujeitos passivos do crime é também tutelada pela norma incriminadora, na medida
em que esta valora expressamente esta situação ao acrescentar ao tipo a quebra
dessa confiança depositada naquele que, por lei ou por acto jurídico, ficou
encarregue de dispor dos interesses patrimoniais alheios causando[-]lhes
intencionalmente prejuízo importante com grave violação dos seus deveres.
Só que esses prejuízos serão uma consequência indirecta ou reflexa da mesma
actuação, tal como poderão ter tido prejuízos por exemplo os trabalhadores que
eventualmente poderiam ter perdido o posto de trabalho, em consequência da
actuação do arguido, pelo que aceitar-se o entendimento de que os sócios da
sociedade seriam protegidos de modo particular pela incriminação, constituindo a
violação daquela relação de confiança um dos objectos imediatos deste crime,
acarretaria, necessariamente, uma ampliação do conceito de ofendido, para
efeitos de direito penal, podendo, no caso concreto, abranger todos os titulares
de direitos que assentaram os seus interesses e expectativas naquela relação de
confiança, como por exemplo, os credores da sociedade, não se vislumbrando
qualquer inconstitucionalidade material do artº 68º, nº 1 al. a) do CPP,
nomeadamente a invocada pela queixosa, por violação da primeira parte do nº 1 do
artº 20º da C.R.P.
Assim sendo, imputando-se ao arguido o crime de infidelidade administrativa pela
administração da sociedade B., L.da, era esta e não os sócios a única titular do
interesse directa e imediatamente protegido pela incriminação: o seu património.
Por isso, só esta podia constituir-se assistente, por só ela preencher a
previsão do artigo 68º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.
Assim, em virtude de a queixosa A. não intervir nos autos na qualidade de legal
representante da sociedade ofendida, não tem legitimidade para participar
criminalmente contra o arguido pela prática do crime de infidelidade, nem tem,
na invocada qualidade de sócia da sociedade pretensamente ofendida, legitimidade
para se constituir assistente, estado-lhe, por isso, igualmente vedada a
possibilidade de requerer a abertura de instrução.
(…)”
Notificada do aresto cuja fundamentação acima se encontra
extractada, veio a denunciante juntar aos autos requerimento por via do qual
manifestou a sua vontade de recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e intentando a
apreciação da “inconstitucionalidade material do artº 68º nº 1 al. a) do CPP, na
interpretação de que não admite um sócio de sociedade comercial por quotas como
assistente perante a prática de um crime de infidelidade administrativa p.p.
pelo artº 224º do CP”.
O recurso foi admitido por despacho lavrado em 13 de Outubro de
2005 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa, vindo os autos
a ser remetidos ao Tribunal Constitucional em 25 seguinte.
2. Determinada a feitura de alegações, veio a recorrente
apresentar a que elaborou, nos seguintes termos: –
“(…)
Do objecto
1. O presente recurso, interposto ao abrigo do artº 70º nº 1 al. b)
da LTC, constante da Lei nº 28/82, de 1 5 de Novembro, com a redacção dada pela
Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, tem por objecto a decisão do Venerando Tribunal
da Relação de Lisboa, na parte em que não considerou a inconstitucionalidade do
artº 68º nº al. a) do CPP conjugada com o artº 224º do CP, por violação do
disposto no artº 20º nº 1 da C.R.P.
2. Ou seja, a interpretação que considera que a queixosa não pode constituir-se
assistente pelo crime de infidelidade administrativa p.p. pelo artº 224º do CP,
na medida em que o bem jurídico protegido seria o património da própria
sociedade, pelo que só esta poderá constituir-se assistente.
Das alegações
3. Salvo o devido respeito e melhor opinião, continuamos a sufragar a tese de
que tal entendimento contraria o princípio de que a todos é garantido o acesso
aos tribunais para tutela dos seus direitos e interesses legalmente protegidos,
conforme dispõe o artº 20º nº 1 da C.R.P.
4. Não questionamos que o bem jurídico protegido em primeira linha pelo preceito
incriminador do artº 224º do CP seja o património da sociedade enquanto pessoa
jurídica.
5. O que questionamos, e aqui o reiteramos, é que tal entendimento deixa
desprotegidos os sócios minoritários que reflexamente são atingidos também no
seu património. Senão vejamos,
6. no caso concreto, a queixosa é titular de uma quota minoritária, sendo que os
sócios maioritários são o arguido e sua esposa, que jamais aprovariam qualquer
deliberação no sentido de participar criminalmente contra si próprio.
7. Por outro lado, a provarem-se os factos constantes da queixa, o arguido
ter-se-á locupletado em prejuízo dos interesses da sociedade, da qual ele e a
esposa são sócios maioritários, empobrecendo a sociedade, mas enriquecendo o seu
património pessoal.
8. O mesmo já não se poderá dizer da queixosa, que tendo investido o capital e
depositado no arguido a sua confiança, vê diminuído o seu património, bem como a
confiança naqueles que tinham a seu cargo a gestão da sociedade.
9. Mais grave do que isso, vê-se impossibilitada da tutela do seu direito,
porquanto os meios processuais à sua disposição, quer de natureza cível, quer de
natureza criminal, a manter-se o entendimento em causa, esbarram na necessidade
de maioria dos votos.
10. O, aliás douto, acórdão da Relação de Lisboa, referindo as posições
doutrinais divergentes a propósito do conceito de ofendido na vigência do CPP de
1929, (por um lado: José António Barreiros in Crimes Contra o Património, U.L.,
1996 P. 211 que defende um conceito amplo de ofendido e sentido inverso: Beleza
dos Santos, ‘Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal’, RLJ, ano
57), perfilhando o conceito restrito de ofendido para efeitos do disposto no
artº 68º nº 1 al. a) do CPP, refere que este conceito não fere o disposto no
artº 20º nº 1 da C.R.P., deixando porém em aberto a questão da tutela dos
direitos dos sócios minoritários.
11. Ou seja, o próprio acórdão reconhece que a posição da queixosa será
merecedora de tutela judicial, mas que não esta não poderá ser obtida por via do
conceito restrito de ofendido, que no caso concreto caberia em primeira linha à
sociedade.
12. Mais referindo que esta posição não fere o princípio de que todos têm o
direito ao recurso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos previsto no artº 20º nº 1 da C.R.P.
13. Mais uma vez, salvo o devido respeito, enveredou-se por um caminho fácil que
não deu resposta [à]s legitimas pretensões da queixosa. Isto é, por um lado
diz-se que os direitos da queixosa são merecedores de tutela judicial, mas por
outro fecha-se a porta pela via da legitimidade para se constituir assistente no
crime de infidelidade administrativa p.p. pelo artº 224º do CP.
14. Ora, assim sendo cumpre questionar em que medida o direito penal tutela o
património dos sócios minoritários e a confiança que estes depositaram naqueles
que gerem os seus interesses e (parte) do seu património.
15. É justamente essa falta de tutela que gera, por um lado, a certeza de
desprotecção judicial, e por outro, a sensação de impunidade daqueles que, sendo
detentores da maioria do capital, podem praticar crimes contra a sociedade e
reflexamente contra o património dos seus sócios.
16. Pelo que, não nos restam dúvidas que o entendimento perfilhado, do artº 68º
nº 1 al. a) do CPP conjugado com o artº 224º do CP viola o princípio plasmado no
artº 20º nº 1 da C.R.P.
17. Os sócios maioritários não podem praticar ilícitos criminais e ficarem
protegidos pela força da sua participação social. O direito penal não tutela só
interesses particulares estando igualmente subjacente os interesses da
comunidade, na vertente da prevenção geral positiva
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão,
deverá o presente recurso ser julgado procedente e por via dele ser julgado
inconstitucional o entendimento perfilhado na primeira instância e mantido pelo
Venerando Tribunal da Relação de Lisboa do artº 68º nº 1 al. a) do CPP conjugado
com o artº 224º do CP, por violação do princípio constitucional vertido no artº
20º nº 1 da C.R.P.”
Por seu turno, o Ex.mo Representante do Ministério Público junto
deste Tribunal, concluiu do seguinte jeito a sua resposta à alegação da
recorrente: –
“1 – A norma do artigo 68º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal,
interpretada como não conferindo legitimidade para se constituir assistente, em
processo penal por crime de infidelidade previsto e punido pelo artigo 224º do
Código Penal, a quem simplesmente seja titular de uma quota de uma sociedade,
mas que não representa esta, cujo património foi lesado, não é inconstitucional.
2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso”
De sua vez, o denunciado não apresentou resposta à alegação.
Cumpre decidir.
3. Como deflui do requerimento de interposição do vertente
recurso e da alegação produzida pela recorrente, esgrime a mesma no sentido de o
artº 68º, nº 1, alínea a), do Código Penal – na dimensão interpretativa de
harmonia com a qual não tem legitimidade para ser admitido como assistente um
sócio de uma sociedade comercial por quotas em processo criminal em que se
indicia o cometimento de um crime de infidelidade administrativa previsto no
artº 224º do mesmo corpo de leis – é incompatível com o disposto no nº 1 do
artigo 20º da Lei Fundamental.
De acordo com a decisão impugnada, o não reconhecimento de
legitimidade ao sócio, nas ditas condições, advirá da circunstância de este não
ser titular dos interesses imediata e directamente tutelado pela norma
incriminadora, já que tais interesses radicam, isso sim, na própria sociedade.
Não incumbindo a este Tribunal censurar a interpretação do
direito infra-constitucional neste particular (isto é, e mais concretamente,
aferir da bondade do raciocínio levado a efeito pela decisão recorrida no
sentido de entender que o ilícito em questão se perspectiva como visando a
tutela dos interesses directos da sociedade indiciariamente vítima desse
ilícito), a questão que se coloca residirá, assim, em saber se, perante o
desenho dos interesses que levaram o legislador a instituir o mencionado
ilícito, é afrontadora do nº 1 do artigo 20º da Constituição a não conferência
de legitimidade ao sócio da sociedade para se constituir assistente.
Aquele normativo constitucional, como sabido é, reconhece aos
cidadãos dois direitos fundamentais conexos, mas distintos: o direito de acesso
ao direito e o direito de acesso aos tribunais.
Todavia, a estatuição destes dois direitos não implica, global e
incondicionadamente, que “a todo e qualquer interessado seja sempre conferida
legitimidade para agir em juízo, desencadeando autonomamente os meios
processuais adequados à protecção jurisdicional do seu interesse”, tal como se
expressou o Acórdão deste Tribunal nº 258/88 (publicado in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. XII, pág. 725).
Por isso, é de entender cabe na liberdade de conformação do
legislador ordinário a indicação dos precisos requisitos da legitimidade da
intervenção das «partes» nas várias espécies processuais. Ponto é, contudo, que
o ordenamento preveja formas de defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos, ainda que algumas delas, por visaram a protecção de interesses
tutelados de forma mais directa do que outros (verbi gratia, cuja lesão se não
apresenta como imediata mas tão só indirecta ou reflexa), inculquem uma mais
actuante intervenção perante as específicas características de cada sorte de
processo.
Daí que não se vislumbre como censurável que o legislador
processual criminal, ponderando os interesses tidos em mente pelo legislador
substantivo penal ao proceder à criminalização de dada actuação, venha confinar
a intervenção de quem é directamente lesado nos interesses que o tipo visou
especialmente proteger, para poder actuar, na qualidade de assistente, no
processo criminal. E, consequentemente, não se afigura como passível de um juízo
de enfermidade constitucional a definição contida no artº 68º, nº 1, alínea a),
do Código Penal e que comporte a interpretação tal como foi levada a efeito pela
decisão recorrida.
3.1. É evidente que, como realçam Leal Henriques e Simas Santos,
in Código de Processo Penal Anotado, I Vol. 1996, pág. 318, “saber quais são
esses interesses é o que constitui aqui o principal problema, pois o legislador
não se comprometeu com qualquer definição ou indício caracterizador da figura.
Segundo alguma doutrina, um primeiro indício resultará da própria sistematização
da parte especial do Cód. Penal, que está efectivamente organizada de acordo com
um critério que tem a ver com os interesses especialmente protegidos. Portanto,
é pela norma incriminadora que se vê qual o interesse que a lei quis proteger ao
tipificar determinado comportamento humano como criminoso. Definido o interesse
há que identificar o titular desse interesse”.
Efectivamente, como tem sido sustentado pela doutrina (cfr. v.
g., Beleza dos Santos, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 57, 2, 19 e
segs. e 70; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal I, 126 a 131;
Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, 512 e 513; e Germano Marques da
Silva, Curso de Processo Penal I, 307 a 316) o ofendido com legitimidade para se
constituir assistente não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da
infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico
imediato da infracção, pelo que, em tal sustentação, não se integram no âmbito
do conceito de ofendido –para efeitos de se aferir essa legitimidade – os
titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou
vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os
próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente.
Neste particular, salienta Damião da Cunha, in Revista Portuguesa
de Ciência Criminal, Ano 8, Fasc. 4.º, Out-Dez., A Participação dos Particulares
no Exercício da Acção Penal, pág. 630, que esta especificação “refere-se a um
problema de legitimidade material – ou seja, a necessidade de se afirmar que a
pessoa que se constitui como assistente seja o titular do interesse que a lei
especialmente quis proteger com a incriminação”.
3.2. De outro lado, este Tribunal teve já oportunidade de se
pronunciar, por mais de uma vez, sobre a compatibilidade com a Constituição da
interpretação normativa do artigo 68º, nº 1, alínea a), do diploma adjectivo
criminal, interpretação essa que, tendo em atenção determinados tipos de
ilícitos – e considerando os interesses que presidiram à respectiva instituição
–, vinha a não permitir, quanto a eles, a intervenção de determinados
interessados, não directamente afectados pela incriminação, como assistentes.
(cfr. Acórdãos números 672/95, publicado na II Série do Diário da República de
20 de Março de 1996, 647/98, idem, idem, de 3 de Março de 1999, 579/2001, idem,
idem, de 15 de Fevereiro de 2002, 76/2002, idem, idem, de 5 de Abril de 2002, e
162/2002, idem, idem, de 31 de Maio de 2002).
É certo que em nenhum dos exemplificativamente citados arestos se
postava um ilícito tal como o agora em apreciação.
Todavia, a corte argumentativa que neles foi carreada para fundar
o juízo de não desconformidade constitucional servirá, também ela, para o caso
em presença.
Na verdade, o acórdão ora sob censura descortinou como interesse
ou bem jurídico directamente protegido pelo tipo do artº 224º do Código Penal, o
património da sociedade. E fê-lo, certamente, tendo em conta, não só a própria
letra do preceito, como os ensinamentos da doutrina que, quer directamente a
propósito do aludido preceito, quer a propósito da legitimidade para
constituição como assistente, são sustentados.
Neste ponto, não se deixará de citar de novo Leal Henriques e
Simas Santos ( in obra referida, 946), que se expressam no sentido de ser
“necessário que se tenha verificado um prejuízo patrimonial para o titular dos
interesses confiados” ao agente, sendo o património relevante o pertença da
sociedade e não o dos seus sócios que a integram.
Esta ideia – de atribuição de «titularidade de interesses» – é,
aliás, a que mais recentemente se colhe de Figueiredo Dias e Anabela Miranda
Rodrigues, A sociedade portuguesa de autores em Processo Penal, in “Temas de
direito de autor III”, 1989, e segs., para quem ela é relacionada “com a
susceptibilidade do bem jurídico poder ser corporizado num concreto portador” e,
também – conquanto dirigida às incriminações que se surpreendem no Código das
Sociedades Comerciais – por Susana Aires de Sousa [Direito Penal das Sociedades
Comerciais, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, Tomo I, 2002, que
diz que “neste sentido aponta também o bem jurídico, objecto de protecção das
normas previstas naqueles artigos do CSS. Estamos (…) perante um bem jurídico
supra-individual, comum a todas as incriminações. Esse bem é a sociedade
comercial enquanto instrumento económico. (…) Só indirecta ou mediatamente se
previnem determinados interesses individuais tais como os interesses dos
credores, dos sócios, dos accionistas, de terceiros e da própria economia
pública. Bem jurídico cujo reflexo constitucional se pode encontrar no art. 86.º
da nossa Constituição ao definir ‘o estatuto da empresa provada enquanto
instituto da organização económica”].
Por outro lado, reforçando a ideia de que os próprios bens
jurídicos a salvaguardar pelo direito penal não o são em todas as frentes,
convém não deixar passar em claro a advertência feita por Jackobs, apud Costa
Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma perspectiva
jurídico-criminal, Coimbra Editora, 1996, pág. 179, de harmonia com a qual “as
normas não podem proteger um bem jurídico contra todos os riscos, mas apenas
contra os que não são consequência necessária do contacto social permitido”
(negrito acrescentado).
A asserção, resultante da citação que se fez em último lugar, tem
aqui cabimento de oportunidade em face da postura da recorrente, que sustenta a
enfermidade constitucional da dimensão interpretativa sufragada pela decisão
impugnada, já que questiona em que medida, a acolher-se essa dimensão, poderia o
direito penal tutelar o património dos sócios minoritários.
Na verdade, é realidade assente que o direito penal só é (ou só
deve ser) chamado a intervir enquanto ultima ratio ou, se se quiser, ele só faz
sentido, de um ponto de vista de adequação e proporcionalidade, se outros meios
ou instrumentos ínsitos no ordenamento jurídico se não mostrarem suficientemente
capazes de prover à defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.
Uma determinada conduta só terá, pois, dignidade penal quando
ofenda a dignidade do bem jurídico que se quer proteger com determinada norma
penal e quando essa conduta se revista de danosidade social. Ora, se o bem
jurídico protegido no Capítulo e Título do Código Penal onde está inserido o
tipo de crime de infidelidade de que curamos, é o bem jurídico do acervo
patrimonial da sociedade, há que concluir que, com o eventual preenchimento do
tipo de crime em questão, o que se lesa directamente, no caso, é aquele
património e não, também directamente, o património de todos os sócios dela.
Esses patrimónios, a serem lesados, sê-lo-ão, mas de modo reflexo ou indirecto.
E, mais importante, o que é certo é que o ordenamento jurídico
não deixa desprotegidos esses patrimónios dos sócios, que poderão socorrer-se de
outros instrumentos processuais para alcançar a defesa dos respectivos
interesses.
O que, com a dimensão interpretativa em causa, unicamente se veda
é que, em sede de processo crime e mediante o recurso a uma figura de auxiliar
da entidade a quem, constitucional e legalmente, impende a obrigação de exercer
a acção punitiva do Estado, haja actuação dos detentores desses interesses que,
reflexamente, poderão ter sido «tocados» pela actuação do indiciário agente do
ilícito a que se reporta o artº 224º do Código Penal.
A corroborar a dicotomia entre interesses directa e
indirectamente (ou reflexamente) postos em causa pela incriminação como conditio
da legitimidade para intervenção como assistente nos processos criminais,
recordem-se as palavras utilizadas no já mencionado Acórdão nº 579/2001, segundo
as quais “a lesão dos bens jurídicos particulares que se pode surpreender pela
tipificação consagrada (…) apenas mediata ou indirectamente constitui a ratio
daquele preceito”, e que, nessa “senda, é de considerar como não feridente da
Lei Fundamental uma norma que unicamente atenda, para efeitos de permissão na
constituição do ofendido como assistente, à circunstância de aqueles direitos ou
interesses serem a razão directa e imediata (ou seja, o leit motiv situado em
primeira linha) que levou o legislador à tipificação da infracção criminal”.
A mesma linha de raciocínio, aliás, foi seguida no também citado
Acórdão nº 162/2002, em que se colocava uma situação em que se não negava que
tivesse havido lesão nos interesses da então recorrente, mas em que os
interesses visados proteger directamente pela norma incriminadora eram, em
primeira linha, interesses de outrem.
3.3. É certo que, de entre as garantias de defesa postuladas pela
Constituição como devendo ser asseguradas pelo legislador ordinário, se conta
(cfr. nº 7 do artigo 32º) a de o ofendido ter o direito de intervir no processo,
nos termos da lei.
Simplesmente, da literalidade daquele preceito constitucional
retira-se, desde logo, que a intervenção do ofendido foi relegada para a lei
ordinária.
E, de outra banda, o que se não pode deixar de considerar é que,
como facilmente se extrai da mencionada literalidade, também a Lei Fundamental
não define o que deve ser perspectivado como ofendido, não se antevendo, sem
mais, que, com tal expressão, desejou ela abarcar todos os lesados pela
actividade delituosa (aqui se compreendendo, pois, aqueles cujos interesses tão
só fossem indirecta, mediata ou reflexamente postos em causa com aquela
actividade) e, maxime, quando pertençam a outrem os interesses ou direitos que,
com a criminalização de tal actividade, se desejaram tutelar.
4. Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso,
condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça
em vinte unidades de conta.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2006
Bravo Serra
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício