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Processo n.º 44/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
do Trabalho de Lisboa interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a sentença de 29 de Novembro de 2005 do 3.º Juízo daquele
Tribunal, que teria recusado, com fundamento em inconstitucionalidade, a
aplicação das normas constantes: (i) dos artigos 659.º, n.º 2, e 179.º, n.ºs 1 e
3, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto; (ii)
do Despacho Normativo n.º 22/87, das Secretarias de Estado dos Transportes e
Comunicações e do Emprego e Formação Profissional; e (iii) do artigo 2.º do
Regime Geral das Contra‑Ordenações (RGCO), constante do Decreto‑Lei n.º 433/82,
de 27 de Outubro.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional, na alegação apresentada, preconiza o não conhecimento do objecto
do recurso, por, em rigor, a sentença recorrida não ter, como ratio decidendi,
recusado a aplicação das aludidas normas, com fundamento em
inconstitucionalidade.
A recorrida A., L.da, não apresentou alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A sentença recorrida concedeu provimento à impugnação
judicial, deduzida por A., L.da, contra decisão do Instituto de Desenvolvimento
e Inspecção das Condições de Trabalho (IDICT), que lhe aplicou a coima de 3
(três) unidades de conta (€ 267), pela prática da contra‑ordenação prevista e
punida pelo artigo 179.º, n.º 1, do Código do Trabalho, em conjugação com o
Despacho Normativo n.º 22/87, absolvendo a impugnante, com fundamento nas
seguintes considerações:
“Estabelece o artigo 614.º do Código do Trabalho que «constitui
contra‑ordenação laboral todo o facto típico, ilícito e censurável que
consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres
a qualquer sujeito no âmbito das relações laborais e que seja punível com
coima».
Por seu turno, estipula o artigo 179.º do Código do Trabalho:
«1. Sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 173.º, em todos os
locais de trabalho deve ser afixado, em lugar bem visível, um mapa de horário de
trabalho, elaborado pelo empregador de harmonia com as disposições legais e com
os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho aplicáveis.
2. O empregador deve enviar cópia do mapa de horário de trabalho à
Inspecção‑Geral de Trabalho com a antecedência mínima de quarenta e oito horas
relativamente à sua entrada em vigor.
3. As condições de publicidade dos horários de trabalho do pessoal
afecto à exploração dos veículos automóveis, propriedade de empresas de
transportes ou privativos de outras entidades sujeitas às disposições deste
Código, são estabelecidas em portaria dos Ministros responsáveis pela área
laboral e pelo sector dos transportes, ouvidas as organizações sindicais e de
empregadores interessadas.»
Por último, dispõe o artigo 659.º, n.º 2, do Código do Trabalho que a infracção
do disposto no artigo 179.º, n.º 1, do mesmo Código constitui contra‑ordenação
leve.
Sucede, contudo, que o artigo 179.º, n.º 3, do Código do Trabalho não foi ainda
objecto de regulamentação, por não ter sido ainda publicada a portaria ali
referida.
E, por razões que nos escapam, o legislador não ressalvou a vigência (pelo menos
a título transitório) do Despacho Normativo n.º 22/87, das Secretarias de
Estado dos Transportes e Comunicações e do Emprego e Formação Profissional, de 4
de Março, que na vigência da legislação revogada pelo Código do Trabalho
regulamentava esta matéria.
Ora, em nosso entender, enquanto não se acharem definidas, pela mencionada
portaria, as condições de publicidade dos horários de trabalho em veículos de
aluguer, o artigo 179.º, n.ºs 1 e 3, e o artigo 659.º, n.º 2, não têm aplicação
a estes.
Com efeito, era o revogado Despacho Normativo que impunha às empresas que
exploram o transporte público de passageiros a obrigação de ter, no interior dos
veículos, cópia do horário de trabalho.
Por isso, só com a regulamentação do disposto no artigo 179.º, n.º 3, do Código
do Trabalho a tipicidade objectiva da contra‑ordenação prevista no artigo 659.º,
n.º 2, do Código do Trabalho ficará completa, no que toca aos veículos de
aluguer de passageiros (táxis). Na verdade, se tal infracção corresponde à
falta de afixação de horário de trabalho, na forma e local legalmente previstos,
e se a definição da forma e local previstos para tal publicidade depende da
publicação de portaria que ainda não existe, forçoso é considerar que até à
publicação de tal portaria o preenchimento do tipo objectivo desta
contra‑ordenação é impossível, por falta de um elemento objectivo do mencionado
tipo.
Neste contexto, louva‑se o IDICT de alguma jurisprudência recente do Tribunal da
Relação de Lisboa, que vem entendendo que a conduta descrita nos autos continua
a ser punível, mesmo após a entrada em vigor do Código do Trabalho.
A título de exemplo, cf. o acórdão proferido no processo n.º 2605/05.4TTLSB, no
qual o Venerando Tribunal sustentou que «ao remeter as condições de publicidade
dos horários de trabalho para portaria conjunta dos Ministros responsáveis pela
área laboral e pelo sector dos transportes, o legislador nada mais fez do que
traduzir em linguagem actual a estrutura governativa que se verificava à data da
emissão do Decreto‑Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro», para concluir, segundo
cremos, que a expressão «portaria» constante do citado artigo 179.º, n.º 3, do
Código do Trabalho pode ser interpretada no sentido de abranger também um
Despacho Normativo, no caso o já citado Despacho Normativo n.º 22/87, das
Secretarias de Estado dos Transportes e Comunicações e do Emprego e Formação
Profissional, de 4 de Março.
Contudo, a leitura do artigo 179.º, n.º 3, do Código do Trabalho subjacente a
esta posição redunda, em nosso entender, numa clara interpretação extensiva ou
mesmo na integração de uma lacuna, visto que implica a superação do sentido
possível da letra da lei. É que o referido preceito fala em portaria, e não em
despacho normativo. E, como se sabe, a portaria e o despacho normativo são
actos normativos diferentes, correspondendo a conceitos que não se confundem.
Ora, em matéria de normas sancionatórias, ainda que no plano do ilícito de mera
ordenação social, vigora o princípio da legalidade/tipicidade, do qual decorre
que não é admissível interpretação extensiva, nem integração analógica (vide
artigo 2.º do RGCO, aplicável ex vi artigo 615.º do Código do Trabalho, e
anotação ao primeiro constante do referido diploma anotado por Beça Pereira, Ed.
Almedina). Daí que não assista razão ao IDICT em sustentar que, até à publicação
da portaria a que se reporta o artigo 179.º, n.º 3, do Código do Trabalho, se
mantém em vigor o Despacho Normativo n.º 22/87 como norma regulamentadora
daquele.
Na verdade, com todo o respeito que nos merece o entendimento sustentado pelo
IDICT, entendemos que o mesmo viola o mencionado princípio da legalidade, que,
para além de expressamente consagrado em matéria de contra‑ordenações no citado
artigo 2.º do RGCO, tem também consagração constitucional, no artigo 29.º, n.ºs
1 e 3, da Lei Fundamental, sendo certo que, em nosso entender o princípio da
legalidade e tipicidade aqui consagrado se aplica não só às disposições
sancionatórias de natureza penal como a disposições sancionatórias de qualquer
outra natureza, v. g. contra‑ordenacional, disciplinar, etc. [No sentido
exposto, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 547/2001, de 7 de Dezembro
de 2001, Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 2002].
Tal significa que os artigos 659.º, n.º 2, e 179.º, nºs 1 e 3, do Código do
Trabalho, quando interpretados no sentido de que a expressão «portaria»,
constante do n.º 3 deste último, pode ser lida como «regulamento», abrangendo
por isso o mero «despacho normativo» e, por conseguinte, permitindo a
integração de elementos objectivos do tipo sancionatório em apreço com as
disposições do Despacho Normativo n.º 22/87, das Secretarias de Estado dos
Transportes e Comunicações e do Emprego e Formação Profissional, de 4 de Março,
são inconstitucionais, por violação do princípio da legalidade da sanção,
consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República.
De outra banda, também o artigo 2.º do RGCO é inconstitucional, por violação do
mesmo princípio, quando interpretado restritivamente, por forma a excluir do seu
âmbito as contra‑ordenações laborais.
Nesta conformidade, conclui este Tribunal que os factos praticados pela arguida
e dados como provados nestes autos não constituem contra‑ordenação, impondo-se
por isso a absolvição da arguida da contra‑ordenação de que vinha acusada e da
coima que lhe foi aplicada pela autoridade recorrida, com a consequente
revogação desta decisão.”
Segundo a posição defendida pelo Ministério Público, na
alegação apresentada neste Tribunal, “a questão real sub judice radica (…) em um
juízo sobre a existência de «quadro legal», conformador de acto ou conduta
ilícita, por força da sucessão de leis e caducidade de normas de execução de
diplomas revogados”, deparando‑se ao julgador duas opções: (i) ou considerava
que, no quadro jurídico decorrente do Código do Trabalho, existia a
contra‑ordenação em análise, por “repristinação” da norma regulamentar, apesar
da revogação do diploma legislativo a que dava execução, e, se nada mais a tal
obstasse, confirmaria a condenação; (ii) ou entendia que não havia sub‑espécie
legal conformadora do acto ilícito, dado que, por um lado, o Despacho Normativo
n.º 22/87 se considera automática e definitivamente revogado com a revogação do
diploma (Decreto‑Lei n.º 409/71) a que dava execução, e, por outro lado, ainda
não foi publicada a portaria de execução a que alude a nova lei (Código do
Trabalho), o que determinaria a absolvição da arguida. Tendo o juiz a quo optado
por esta segunda posição, a ratio determinante da decisão de provimento da
impugnação judicial radicou na consideração da inexistência de quadro legal de
suporte, e não na recusa de aplicação de normas com fundamento em
inconstitucionalidade, pelo que não devia este Tribunal conhecer do objecto do
presente recurso, tal como, aliás, já fora decidido, em caso idêntico, por
Decisão Sumária proferida no processo n.º 1019/05.
Com efeito, na Decisão Sumária n.º 21/2006, entendeu‑se
não tomar conhecimento de recurso interposto pelo Ministério Público contra
sentença de idêntico teor, proveniente do mesmo Tribunal, com base nas
seguintes considerações:
“4 – Como é consabido, cabe recurso para o Tribunal Constitucional
das decisões dos Tribunais que «recusem a aplicação de qualquer norma, com
fundamento em inconstitucionalidade» (artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC).
Perscrutando os fundamentos da sentença recorrida, fica claro que
sua ratio decidendi não se louva na recusa de aplicação das normas supra
referenciadas, mas na interpretação do regime legal tido por aplicável ao caso
sub judice.
É certo que o Tribunal, após a delimitação do regime aplicável,
afasta um sentido normativo que, no seu entendimento, «configura uma clara
interpretação extensiva ou mesmo a integração de uma lacuna, visto que implica
a superação do sentido possível da letra da lei», considerando inconstitucionais
os «artigos 659.º, n.º 2, e 179.º, nºs 1 e 3, do Código do Trabalho, quando
interpretados no sentido de que a expressão ‘portaria’, constante do n.º 3 deste
último pode ser lida como ‘regulamento’ e, por conseguinte, permitindo a
integração de elementos objectivos do tipo sancionatório em apreço com as
disposições do Despacho Normativo n.º 22/87 (...)».
Contudo, ao exigir que as «condições de publicidade dos horários de
trabalho do pessoal afecto à exploração dos veículos automóveis» sejam
regulamentadas por «portaria», não recusou a aplicação das referidas normas,
tendo feito, ao invés, uma aplicação do regime legal metodologicamente louvada
numa interpretação declarativa‑literal das normas em causa.
Ora, tal circunstancialismo – em que o Tribunal acolhe, entre vários
sentidos possíveis de uma norma, uma determinada dimensão normativa, afastando
outros resultados constitucionalmente censuráveis – não configura uma recusa de
aplicação de norma.”
É este entendimento que ora se reitera, conduzindo ao
não conhecimento do recurso.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em não conhecer do objecto
do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Março de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos