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Processo n.º 948/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A., notificado do Acórdão n.º 93/2006, que indeferiu
reclamação para a conferência, por ele deduzida ao abrigo do disposto no n.º 3
do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), da
Decisão Sumária do relator, de 12 de Dezembro de 2005, que decidira, no uso
da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do objecto
do presente recurso, veio arguir a nulidade daquele Acórdão, por excesso de
pronúncia, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo
Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 69.º da LTC, com os fundamentos seguintes:
“O reclamante interpôs recurso para o TC da norma do artigo 669.º, n.º 2, do
CPC, interpretada no sentido de não permitir que o tribunal a quo se pronuncie
sobre uma questão de constitucionalidade imputada a uma dimensão normativa desse
preceito.
O Venerando Tribunal Constitucional não tomou conhecimento da
constitucionalidade desta norma, invocando que a questão de constitucionalidade
que havia sido posta ao Tribunal a quo – e de que este não conheceu! Nem para a
considerar manifestamente improcedente! – seria manifestamente improcedente.
O douto Acórdão esclarece, e bem, que «o recorrente entende que (...) a
utilidade (do recurso) deve ser vista à luz da repercussão que um eventual
provimento do recurso de constitucionalidade teria na específica decisão (‘ou
sub‑decisão’) contida no acórdão recorrido, enquanto decidiu que no incidente de
pedido de reforma da decisão judicial, previsto no n.º 2 do artigo 669.º do CPC,
não podia apreciar questões de constitucionalidade dirigidas às normas
reguladoras desse incidente».
Concluiu, no entanto, que o interesse processual se deve aferir em face da
susceptibilidade de a pronúncia do Tribunal Constitucional se «projectar
utilmente sobre a decisão quanto ao mérito da causa», entendendo esta como o
desfecho da acção e não a concreta decisão judicial recorrida!!!
É bom de ver que não é esse o sentido que se deve emprestar à exigência de
«utilidade» no conhecimento do recurso, sob pena de se tornarem ininteligíveis
todas as decisões desse Tribunal que recaiam sobre decisões jurisdicionais que
não ponham termo à causa em questões de mérito.
Admite o recorrente que esse Tribunal possa configurar e reconfigurar os
pressupostos do recurso de constitucionalidade numa dada interpretação das
normas legais pertinentes; discorda, porém, no presente caso, que o juízo
lavrado na decisão ora reclamada possa ser feito sem pôr em crise normas
fundamentais que delimitam o poder jurisdicional do juiz, ainda que do Tribunal
Constitucional.
Entende o recorrente, nessa medida, como já havia exposto sem que o Venerando
Tribunal Constitucional se referisse a esse problema no douto acórdão
reclamado, que o Tribunal ao indeferir a reclamação com base na argumentação
que expôs está manifestamente a conhecer de uma questão de que não podia tomar
conhecimento.
De facto, o douto Acórdão, para indeferir a reclamação, toma conhecimento de um
problema de constitucionalidade estranho ao objecto do recurso. É certo que o
julga manifestamente improcedente, mas esse juízo é sempre um juízo de
conhecimento do mérito da questão.
Basta atentar no teor do artigo 78.º‑A, n.º 1, da LOFTC, para ver que assim é,
porquanto aí se distinguem as situações em que não pode conhecer‑se do objecto
do recurso daquelas onde se admite que por decisão sumária se tome conhecimento
por ser uma questão simples ou pelo facto de a questão ser manifestamente
infundada.
Assim, ao tomar conhecimento de uma questão de constitucionalidade exógena ao
objecto do recurso, o Tribunal Constitucional, que está vinculado ao pedido e à
delimitação do objecto do recurso pelo recorrente, toma conhecimento de uma
questão sobre a qual não podia pronunciar‑se.
O juízo de «manifesta improcedência» implica o conhecimento do objecto de um
recurso, seja ao nível ao tribunal recorrido (artigo 76.°, n.º 1, da LOFTC),
seja ao nível do Tribunal Constitucional (quando o recurso é admitido).
A delimitação do objecto do recurso é da exclusiva competência do recorrente,
não se admitindo que o Tribunal possa ex officio conhecer de uma questão de
constitucionalidade que não lhe foi posta.
Sob pena de nulidade, pois vai claramente para além do seu poder jurisdicional!
O objecto do recurso interposto era a norma do artigo 669.º, n.º 2, do CPC,
interpretada no sentido de não permitir que o tribunal a quo se pronuncie sobre
uma questão de constitucionalidade imputada a uma dimensão normativa desse
preceito.
E apenas dele se podia conhecer.
Daí que ao dizer‑se que a questão de constitucionalidade que o tribunal a quo
deveria ter apreciado é manifestamente improcedente, esse Venerando Tribunal
está a ir muito além do objecto do recurso que havia sido interposto, posto que,
em qualquer circunstância, o julgamento de manifesta improcedência só poderia
fazer‑se em três circunstâncias: a) No tribunal recorrido, aquando a decisão do
pedido de reforma e nulidade; b) No tribunal recorrido se tivesse sido
interposto recurso para o TC relativo à questão manifestamente improcedente
(artigo 76.º, n.º 1, da LOFTC); c) No Tribunal Constitucional se o recurso
tivesse sido admitido (artigo 78.º‑A, n.º 1, da LOFTC).
Como é bom de ver … nenhuma destas circunstâncias se verifica: a da alínea a),
porque o Tribunal a quo disse tão‑só que não tinha de conhecer da questão; e a
das alíneas b) e c), porque, singelamente, não foi interposto qualquer recurso
que tivesse por objecto uma questão de constitucionalidade manifestamente
improcedente!
Termos em que, julgando‑se procedente a arguida nulidade, V. Ex.as estarão a dar
um exemplo de boa administração da justiça – séria, independente, humilde e
sujeita à lei.
Sabendo‑se que esse Venerando Tribunal não se ocupa de questões académicas,
permita‑se, no entanto, ao reclamante, configurar, como entende que devia ser
configurado, o caso dos autos:
Se o recurso interposto fosse admitido e a norma sindicada fosse julgada
inconstitucional, qual seria a repercussão na decisão recorrida? Decerto que se
vincularia o Tribunal a quo ao conhecimento dessa questão. E nesse momento
ser‑lhe‑ia possível considerar a questão que devia ter apreciado como
manifestamente improcedente, e, em consonância, indeferir um «eventual» recurso
para o TC.
Em todo o caso cumpria‑se a lei: vinculava‑se o tribunal a quo a pronunciar‑se
sobre a questão de constitucionalidade que lhe havia sido posta.
Ou seja, a lei admite que o recurso para o TC seja indeferido com base na
manifesta improcedência, mas em caso algum permite que o tribunal a quo se
auto‑desonere do conhecimento de uma questão de constitucionalidade e que o TC
tome conhecimento de uma questão estranha ao objecto do recurso.”
2. A representante da Fazenda Pública, notificada da
dedução de arguição de nulidade, apresentou a seguinte resposta:
“1. O douto acórdão objecto do presente pedido de reforma recaiu sobre
reclamação para a conferência interposta de decisão sumária que havia decidido
não conhecer do objecto do recurso interposto do douto Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo que recaiu sobre pedido de aclaração e reforma de
Acórdão do mesmo Supremo Tribunal Administrativo, pedido no qual o recorrente
suscitou a inconstitucionalidade do artigo 669.º do CPC, numa concreta dimensão
normativa.
2. Sobre a inconstitucionalidade suscitada, a decisão recorrida considerou que
esse meio processual, de pedido de aclaração e reforma, não comporta a suscitada
emissão de pronúncia sobre inconstitucionalidade.
3. Na douta decisão sumária proferida nos autos, o Venerando Tribunal
Constitucional considerou que «tem sido uniformemente entendido que, proferida
a decisão final, a arguição da sua nulidade ou pedido da sua aclaração,
rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão
de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional
não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a
torna obscura ou ambígua, nem envolve lapso manifesto».
4. E a mesma douta decisão sumária, ponderando que «a pretensão de alargamento
da aplicação do artigo 669.º, n.º 1, do CPC para além das situações
excepcionais nele contempladas, quando o recorrente já beneficiou de um duplo
grau de jurisdição, é algo que não encontra na Constituição, designadamente seu
artigo 20.º, o necessário suporte», considerou manifestamente infundada esta
questão de inconstitucionalidade que o recorrente pretendia ver apreciada e que
não existia utilidade processual relevante no conhecimento do recurso.
5. O recorrente apresentou reclamação para a conferência.
6. O douto Acórdão n.º [93/2006], de 7 de Fevereiro de 2006, indeferiu a
reclamação, julgando que «Na verdade, não resultando da Constituição – mesmo no
âmbito do processo tributário – a consagração, em todos os casos, de um duplo
grau de jurisdição, carece manifestamente de base a tese de que, após ter sido
assegurado, no caso, esse direito de recurso, a Constituição ainda imporia, não
só previsão do incidente pós‑decisório da reforma da decisão judicial
(incidente que, como já se referiu, representa um desvio ao princípio da
estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do
juiz quanto à matéria da causa), mas a sua previsão com o específico fundamento
pretendido pelo recorrente».
7. Vem agora o recorrente arguir a nulidade do douto Acórdão, insurgindo‑se
contra o entendimento de que o interesse processual se deve aferir em face da
susceptibilidade de a pronúncia do Tribunal Constitucional se «projectar
utilmente sobre a decisão quanto ao mérito da causa», entendendo esta como o
desfecho da acção e não a concreta decisão judicial recorrida.
8. Alega o recorrente que o Tribunal, ao indeferir a reclamação, está a conhecer
de uma questão de que não podia tomar conhecimento, incorrendo em excesso de
pronúncia, invocando, para tanto, que o juízo de manifesta improcedência
implica o conhecimento do objecto do recurso seja ao nível do Tribunal
recorrido seja ao nível do Tribunal Constitucional (quando o recurso é
admitido).
9. Pretende o recorrente, em última análise, que o Tribunal Constitucional se
pronuncie no sentido de ordenar ao Tribunal recorrido que conheça da
inconstitucionalidade suscitada no pedido de reforma da decisão que sobre este
recaiu.
Mas não tem razão, porquanto:
10. A pronúncia do Venerando Tribunal Constitucional, ao longo das
sucessivas decisões proferidas no presente recurso, vem reiterando que é
infundada a questão de inconstitucionalidade que o recorrente pretendia ver
apreciada, quer ao considerar, em decisão sumária, que não existe utilidade
processual no conhecimento do objecto do recurso, quer ao decidir em Acórdão que
«carece minimamente de base a tese de que após ter sido assegurado, no caso,
esse direito de recurso, a Constituição ainda imporia, não só a previsão do
incidente pós‑decisório da reforma da decisão judicial mas a sua previsão com o
específico fundamento pretendido pelo recorrente».
11. É manifesto que a pronúncia do Tribunal, no douto Acórdão de 7
de Fevereiro de 2006, recai precisamente sobre a verdadeira questão em que o
recorrente mostra o seu interesse, a qual é a reapreciação da decisão com o
específico fundamento pretendido.
12. Pelo que o douto Acórdão não incorre em excesso de pronúncia.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
3. O Acórdão n.º 93/2006, ora arguido de nulo por
excesso de pronúncia, ocupou‑se, como lhe cumpria, da apreciação das críticas
dirigidas pelo recorrente contra a Decisão Sumária do relator de não
conhecimento do objecto do recurso, por inutilidade nesse conhecimento, tendo
indeferido tal reclamação com a seguinte fundamentação:
“2. A divergência fundamental entre o entendimento seguido na
Decisão Sumária reclamada e a tese defendida pelo recorrente respeita à
seguinte questão: relativamente a quê se deve aferir a utilidade do conhecimento
do recurso de constitucionalidade?
O recorrente entende que essa utilidade deve ser vista à luz da
repercussão que um eventual provimento do recurso de constitucionalidade teria
na específica decisão (ou «sub-decisão») contida no acórdão recorrido, enquanto
decidiu que no incidente de pedido de reforma de decisão judicial, previsto no
n.º 2 do artigo 669.º do CPC, não podia apreciar arguições de
inconstitucionalidade dirigidas às próprias normas reguladoras desse incidente.
A ser assim, a razão estaria da parte do recorrente, pois se o Tribunal
Constitucional desse acolhimento à referida «quarta questão de
inconstitucionalidade», julgando inconstitucional a norma do artigo 669.º, n.º
2, do CPC, «quando interpretada no sentido de não permitir que o juiz se
pronuncie sobre uma questão de constitucionalidade imputada a uma dimensão
normativa desse mesmo preceito», é óbvio que a decisão recorrida, nessa parte,
teria de ser reformulada em conformidade com esse juízo de
inconstitucionalidade.
No entanto, o interesse processual no conhecimento do recurso de
constitucionalidade deve, antes, ser aferido face à susceptibilidade de a
pronúncia do Tribunal Constitucional «se projectar utilmente sobre a decisão
quanto ao mérito da causa» (para usar a formulação do Acórdão n.º 159/93), isto
é, sobre o desfecho da acção, e não restritamente sobre a concreta decisão
judicial recorrida, nem, muito menos, sobre uma parte desta decisão. Isto é: a
utilidade processual deve ser aferida relativamente ao processo (à causa), não
se reportando apenas à decisão recorrida.
Ora, no presente caso, como se demonstrou na Decisão Sumária ora
reclamada, mesmo que se viesse a entender, contrariamente ao entendimento
seguido pelo tribunal recorrido, que podia ser apreciada a questão de
inconstitucionalidade reportada à própria regulação do incidente de reforma de
decisões judiciais, o certo é que tal nenhuma repercussão poderia ter, quer no
sentido final do acórdão recorrido, quer no desfecho da causa, uma vez que
surgia como manifestamente infundada a questão de inconstitucionalidade que se
pretendia ver apreciada: a aludida «terceira questão de inconstitucionalidade»,
também reportada ao artigo 669.º, n.º 2, do CPC, mas agora na dimensão «que se
condense num critério normativo que determine a impossibilidade de reforma da
decisão nos casos em que, cabendo ao juiz realizar oficiosamente todas as
diligências que se lhe afiguram úteis para conhecer a verdade relativamente
aos factos alegados ou de que oficiosamente se pode conhecer, não constem do
processo os elementos necessários para fundar a decisão do tribunal,
designadamente quando da decisão consta que dos autos não constam elementos
susceptíveis de conduzir a solução diversa».
Na verdade, não resultando da Constituição – mesmo no âmbito do
processo tributário – a consagração, em todos os casos, de um duplo grau de
jurisdição, carece manifestamente de base a tese de que, após ter sido
assegurado, no caso, esse direito de recurso, a Constituição ainda imporia, não
só a previsão do incidente pós‑decisório de reforma da decisão judicial
(incidente que, como já se referiu, representa um desvio ao princípio da
estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do
juiz quanto à matéria da causa), mas a sua previsão com o específico fundamento
pretendido pelo recorrente.
Improcedem, assim, na totalidade, as objecções dirigidas pelo
recorrente contra a Decisão Sumária reclamada.”
Entende‑se que, ao assim argumentar e decidir, o Acórdão
n.º 93/2006 não incorreu em excesso de pronúncia. Ele moveu‑se exclusivamente no
âmbito da apreciação da correcção do juízo – constante da Decisão Sumária
reclamada – de inutilidade do conhecimento do objecto do recurso de
constitucionalidade. Compete a todos os tribunais, incluindo o Tribunal
Constitucional, julgar findos causas e incidentes sempre que o respectivo
conhecimento se mostre inútil, sob pena de violação da proibição da prática de
actos inúteis. E, como é óbvio, na determinação da existência de utilidade no
prosseguimento de certo litígio ou seus incidentes, ocorre sempre a formulação
de juízos de prognose quanto à evolução que teria o processo se se entendesse
prosseguir a sua tramitação “normal”, juízos de prognose que incorporam a
antevisão das decisões que viriam a ser proferidas.
O Acórdão reclamado – ao confirmar a Decisão Sumária de
não conhecimento, por inutilidade, do objecto do recurso de constitucionalidade
– não desbordou os limites dessa sua competência. Tendo por segura a manifesta
improcedência da “terceira questão de constitucionalidade”, cujo conhecimento
constituiria o único efeito da eventual procedência do recurso tendo por objecto
a “quarta questão de constitucionalidade”, entendeu‑se ser inútil o conhecimento
deste último recurso.
É inteiramente lícito ao recorrente discordar desse
entendimento, sustentando que o mesmo encerra um erro de julgamento. Mas não é
correcto considerar que se tenha incorrido em excesso de pronúncia, ao apreciar
questão inserida na apreciação da questão da utilidade do conhecimento do
recurso.
4. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
arguição de nulidade.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Março de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos