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Processo n.º 1024/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam em conferência na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de reclamação em que é Reclamante a A. e Reclamada B., vem a primeira reclamar, conforme previsto no artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu não admitir o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Abril de 2004, foi julgado improcedente o recurso interposto pela ora reclamante. Interposto recurso de agravo desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, a Relação de Lisboa não o admitiu, tendo a A. reclamado deste despacho de não admissão, invocando a inconstitucionalidade do artigo 754º, nº 2, do CPC, nos termos que se seguem:
'(...) a Reclamante interpôs recurso de Agravo para o Supremo Tribunal de Justiça tendo ainda requerido a reparação de nulidade por omissão de pronúncia acerca das inconstitucionalidades invocadas, recurso que, todavia, não foi admitido pelo Venerando Senhor Juiz Desembargador Relator, que fundamentou tal douta decisão ‘face ao disposto no nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil (...)’
Ora, e com o devido respeito, não se compreende a fundamentação apresentada pelo Venerando Juiz Relator, neste indeferimento, porque sobre o incidente de recusa (que não sobre a dedução de impedimento) não poderia sequer haver decisão do Mmo Juiz da comarca, por se tratar de matéria reservada ao conhecimento directo e em primeira instância do Tribunal Superior. Sem prescindir, sempre se dirá que a norma do artigo 754º nº 2 do Código de Processo Civil em que o Venerando Senhor Juiz Desembargador Relator baseia a decisão ora reclamada é inconstitucional por violação do direito ao recurso, que necessariamente integra o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, consagrado pelo artigo 20º da Constituição da República Portuguesa'.
3. Por despacho, de 24 de Maio de 2004, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu esta reclamação, com os fundamentos que se seguem:
'I. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.04.04, julgou-se improcedente o recurso interposto pela ré A. (...). Desta decisão interpôs a ré recurso de agravo, que não foi admitido, com invocação do art. 754.º, n. ºs 2 e 3 do CPC (...). Em 1ª instância, no início da audiência de julgamento foi requerido pela ré, ora reclamante, a título principal que fosse declarado o impedimento do juiz para intervir no julgamento, nos termos conjugados da alínea a) do n.° 2 do art.º 1.º do CPT e dos art.ºs 122°, n.° 1 alínea c) e alínea e) e 123°, n.° 1, 2ª parte do CPC; e a título subsidiário que o referido requerimento fosse remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa, para aí ser decidido a recusa de intervenção do juiz neste julgamento, nos termos dos art.ºs 43°, n. ºs 1 e 2 e 45°, n.° 1, alínea a) do CPP. O Mmº Juiz, por entender não se verificarem os invocados impedimentos não os declarou, e no respeitante ao pedido subsidiário foi o mesmo indeferido
1iminarmente por não ter aplicação ao caso concreto os art.ºs 43° e 45° do CPP. O acórdão da Relação confirmou esta decisão e condenou a ora reclamante como litigante de má fé, na multa de 9 UC (...). No que concerne à parte da decisão que não declarou o requerido impedimento, dispõe o art.º 123°, n.° 1, 2ª parte do CPC '(...) seja qual for o valor da causa é sempre admissível recurso da decisão de indeferimento, para o tribunal imediatamente superior...'. Assim, e por a decisão de indeferimento ter ocorrido na 1ª instância, era sempre admissível recurso para a Relação, como ocorreu nos autos. Mas da Relação não cabe recurso para este Supremo Tribunal, por a lei se bastar com o duplo grau de jurisdição (...). Não se apoiando a decisão contida neste despacho no art.º 754° do CPC, não há que confrontá-lo com a Constituição, a fim de se apurar a violação desta'.
4. A ora reclamante interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, mediante requerimento do seguinte teor:
'A. (...) não se podendo conformar com a douta decisão de Vossa Excelência que indefere a reclamação contra a não admissão de recurso, dela pretende interpor Recurso para o Tribunal Constitucional, com efeito suspensivo, para ser apreciada e declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 754° n.º 2 do Código de Processo Civil - em que, salvo o devido respeito, evidentemente se apoia a douta decisão em crise (“... da Relação não cabe recurso para este Supremo Tribunal, por a lei - precisamente o n.º 2 do artigo 754° do Código de Processo Civil, nota o signatário - se bastar com o duplo grau de jurisdição.')
-, por violação do direito ao recurso, que necessariamente integra o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, consagrado pelo artigo 20° da Constituição da República Portuguesa'.
5. A reclamante foi, entretanto, convidada, nos termos dos nºs 5 e 1 do artigo
75º-A da LTC, a indicar a alínea do nº1 do artigo 70º ao abrigo da qual pretendia interpor recurso, convite ao qual respondeu, indicando estar em causa a alínea b) da referida norma.
6. Por despacho, de 7 de Outubro de 2004, agora em apreciação, o Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, invocando o seguinte:
'Não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por a norma. do art.º 754°, n.° 2, do CPC não ter sido aplicada na decisão impugnada, o que inviabiliza qualquer ju1gamento sobre ela por parte do TC, porquanto os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental. Daí o Tribunal Constitucional só poder conhecer de uma questão de constitucionalidade quando ela exerce influência no julgamento da causa, o que não se verifica na situação dos autos'.
7. É deste despacho de não admissão do recurso que a A. vem agora reclamar, sustentando o seguinte:
'O recurso não foi admitido porque não teria sido aplicado pela decisão recorrida a norma cuja constitucionalidade se questiona. Aparentemente pretendeu o Venerando Senhor Juiz Conselheiro que a decisão recorrida é a que indefere a reclamação, sendo certo que nessa, efectivamente, não foi invocada de forma expressa a norma em causa. Porém, e para além de ser também certo que tal norma esteve, também efectivamente, na base da referida decisão, o certo é que a decisão que directamente e utilmente que a Recorrente quer atacar por ter aplicado norma que considera inconstitucional é a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que ab initio, não admitiu a recusa. Esse, com efeito, o sentido útil do recurso de constitucionalidade. Importa acrescentar, no entanto, que a douta decisão do Venerando Senhor Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça da qual se interpôs recurso de constitucionalidade, enfermava já ela própria do lapso de não ter considerado que a norma do artigo 754 n.º 2 do Código de Processo Civil cuja constitucionalidade se reclama, não havia sido aplicada na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, e, por isso, se absteve de emitir pronúncia sobre a questão da constitucionalidade levantada. Ora, salvo o devido respeito, resulta muito claramente da leitura dessa decisão que o seu fundamento expresso foi o da norma em causa: artigo 754 n.º 2 do Código de Processo Civil '.
8. Neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo-se pronunciado no sentido de que 'a presente reclamação é manifestamente improcedente', com os seguintes argumentos:
'Importa salientar, em primeiro lugar, que a decisão recorrida é obviamente a proferida pelo Presidente do STJ, como decorre expressamente do teor do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – sendo obviamente inadmissível a pretensão de, no âmbito da presente reclamação, passar a ter-se por decisão recorrida o acórdão ou decisão proferida pela Relação.
Por outro lado, é manifesto que a decisão efectivamente impugnada pela entidade recorrente se fundou, como 'ratio decidendi', não na norma constante do art.º 754º n.º 2, do CPC, mas no regime específico previsto no art.º 123.º, n.º 1, do CPC que, em sede de impedimentos, sempre estabeleceu o princípio de que o recurso se esgota com o cumprimento do duplo grau de jurisdição – o que naturalmente implica a inverificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso'.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação Como resulta de quanto fica relatado, para apreciação da questão objecto da presente reclamação importa averiguar se a decisão recorrida aplicou ou não a norma contida no artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil.
1. Porém, como questão prévia, e face ao teor da reclamação do despacho que indeferiu o requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, há que esclarecer (como doutamente assinala o Ministério Público junto deste Tribunal) que a decisão recorrida, para efeitos quer do recurso que se pretendeu intentar quer da presente reclamação, é a do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação do despacho de não admissão do recurso de agravo interposto para este Supremo Tribunal. Não pode, de forma alguma, acolher-se a tese explanada na reclamação, segundo a qual 'a decisão que directamente e utilmente a Recorrente quer atacar por ter aplicado norma que considera inconstitucional é a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que ab initio não admitiu a recusa', com o significado de que a decisão recorrida seria a do Tribunal da Relação de Lisboa. Assim, e desde logo, tal seria contrário ao teor do requerimento de interposição de recurso, dirigido ao Senhor Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do qual consta expressamente o seguinte: 'A. (...) não se podendo conformar com a douta decisão de Vossa Excelência que indefere a reclamação contra a não admissão de recurso, dela pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional (...)'
(itálico nosso).
2. Determinada a decisão recorrida – despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação do despacho de não admissão do recurso de agravo interposto para este Supremo Tribunal – importa, então, averiguar se esta decisão aplicou ou não a norma contida no artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil. Por um lado, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional a reclamante pretende que seja 'apreciada e declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 754° n.º 2 do Código de Processo Civil'; por outro, foi por considerar que esta norma não havia sido aplicada na decisão recorrida que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu pela não admissão do recurso, face à exigência contida no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC. Estabelece este preceito que só podem ser objecto do recurso ali previsto decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Com efeito, 'constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é questionada pela recorrente; a suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo; e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso cabiam (...). Esta exigência, de que a norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder reflectir-se utilmente no processo. Sendo a referência à norma questionada mero obter dictum, ou existindo na decisão recorrida outro fundamento, por si só, bastante para essa decisão, a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se reflectirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 497/99, não publicado, e, no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos nºs 367/94, Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994, 496/99, não publicado, 674/99, Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, 155/2000, Diário da República, II Série, de 9 de Outubro de
2000, e 418/01, não publicado). Cabe, pois, ao Tribunal Constitucional responder à questão de saber se a decisão recorrida aplicou ou não aquela norma do Código de Processo Civil.
11. Da análise do teor do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de indeferimento da reclamação da decisão de não admissão do recurso de agravo interposto para este Supremo Tribunal, resulta de forma inequívoca que tal despacho não só não utilizou como até afastou expressamente a aplicabilidade da norma cuja constitucionalidade a reclamante pretende ver apreciada, já que nele se pode ler que 'não se apoiando a decisão contida neste despacho no art.º 754° do CPC, não há que confrontá-lo com a Constituição, a fim de se apurar a violação desta'. Na verdade, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça pela existência de um regime especial, contido no artigo 123º do Código de Processo Civil, para a resolução da questão de saber se do acórdão do Tribunal da Relação cabe recurso de agravo para este Supremo Tribunal, considerando que tal regime especial afasta a aplicação do disposto no artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil que, por isso, entendeu não aplicar no caso em apreço.
É, pois, indiscutível que a ratio decidendi do despacho recorrido foi a aplicação do disposto no artigo 123º daquele Código e não a norma cuja constitucionalidade a reclamante pretende ver apreciada – o artigo 754º, nº 2, do mesmo diploma. Ora, não tendo a decisão recorrida aplicado a norma cuja constitucionalidade a reclamante pretendia ver apreciada, não pode admitir-se o recurso para o Tribunal Constitucional. Por outro lado, a reclamante, apesar de ter sido confrontada com a aplicação do artigo 123º do Código de Processo Civil, confinou o recurso por si interposto para este Tribunal da decisão que o aplica
à apreciação e à declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 754° n.º
2 do Código de Processo Civil. Assim, como bem se decidiu no despacho reclamado, o recurso não pode ser admitido.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2005
Maria João Antunes Rui Manuel Moura Ramos Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050025.html ]