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Processo n.º 386/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, A., S.A. deduziu,
nos termos dos artigos 276º e 278º, n.º s 3 a 5, do Código de Procedimento e de
Processo Tributário (CPPT), reclamação da decisão proferida em 22 de Outubro de
2004 pelo Chefe do Serviço de Finanças de Tondela, que ordenara a citação da
reclamante para a execução fiscal, nos termos e com as formalidades prescritas
no artigo 190º do CPPT (fls. 32 e seguintes).
O representante da Fazenda Pública respondeu (fls. 54 e seguintes),
sustentando que a reclamação devia ser julgada improcedente.
O Ministério Público emitiu parecer (fls. 58) no sentido de que a reclamação
devia ser devolvida para subir, se fosse caso disso, a final.
Por sentença proferida em 6 de Janeiro de 2005 (fls. 59 e seguintes), o juiz
do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu indeferiu a reclamação, pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
No caso dos presentes autos o acto reclamado é o despacho que ordena a citação
da Reclamante, despacho que por si só não afecta a sua esfera jurídica, os seus
direitos e interesses. Esta só é atingida pelos actos subsequentes da
instauração da execução fiscal, como por exemplo a penhora de bens. Acresce
referir que a citação ao contrário de lesar os interesses da Reclamante dá-lhe a
oportunidade de exercer os seus direitos, designadamente o direito de oposição à
execução, direito que a Reclamante na presente petição inicial referiu «... que
oportunamente exercera…».
Alegando a falta de requisitos essenciais do título executivo, entendo que o
meio idóneo para os arguir é em sede de processo de oposição à execução fiscal
(artigo 204º, n.º 1, alíneas c) e i) do CPPT) e não em reclamação ao abrigo dos
artigos 276º e seguintes do CPPT.
[…]
Entendo que o despacho que ordena a citação do executado, por si mesmo, não é um
acto lesivo e como tal reclamável nos termos do disposto no artigo 276º do CPPT.
Reconhecendo que a questão não é pacífica e admitindo que o acto reclamado possa
ser um acto potencialmente lesivo na medida em que é o início de uma sucessão de
actos que no mínimo causam transtorno ao Reclamante, também não estão reunidas
as condições para a apreciação imediata da reclamação, pelo Tribunal, nos termos
do artigo 278º, n.ºs 3 e 5 do CPPT. Não foi tomada qualquer decisão sobre a
penhora de bens, nem que determine a prestação de uma garantia indevida ou
superior à devida, nem a Reclamante invocou qualquer facto concreto, integrador
da ocorrência de prejuízo irreparável.
Também entendo que não tem lugar a subida diferida a Tribunal porque a
Reclamante alega a falta de requisitos essenciais do título executivo,
fundamentos próprios do processo de oposição à execução fiscal, nos termos supra
expostos.
[…].”.
2. Desta decisão interpôs A., S.A. recurso para a Secção do
Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (fls. 84), tendo nas
alegações respectivas (fls. 86 e seguintes) concluído do seguinte modo:
“1) A douta sentença recorrida omite pronúncia sobre a falta de requisitos
essenciais do título executivo.
2) A falta de requisitos essenciais do título executivo, quando não puder ser
suprida por prova documental, constitui nulidade insanável em processo de
execução fiscal (art. 165°, n.º 1, al. b) CPPT), que conduz à nulidade do título
e é de conhecimento oficioso (art. 165°, n.º 4 CPPT).
3) A sentença recorrida, tendo deixado de pronunciar-se sobre essa questão, ao
contrário do que deveria, é nula (art. 668°, n.º 1, al. d) do CPC, ex vi do art.
2° do CPPT), conforme virá declarado, com as consequências legais.
SEM PRESCINDIR,
4) A lei de autorização legislativa que está na génese da aprovação do CPPT, a
Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, autoriza o Governo a aprovar o CPPT «no
respeito pela compatibilização das suas normas com as da lei geral tributária e
regulamentação das disposições da referida lei que desta careçam» (art. 51°, al.
c) da Lei n.º 87-B/98).
5) O direito de reclamação para o juiz da execução fiscal de todos os actos
lesivos é assegurado pelos arts. 95° n.º 1 e n.º 2, al. j) e n.º 103°, n.º 2 da
Lei Geral Tributária.
6) A decisão de instaurar a execução e mandar citar a recorrente não é meramente
liminar: é uma daquelas decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal que no
processo afectam os direitos e interesses legítimos da executada, maxime os
garantidos nos termos do art. 26° da CRP: bom nome e reputação, imagem, e
protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
7) Esse despacho, por si mesmo, é um acto lesivo e como tal reclamável nos
termos do dispositivo conjugado dos artigos 163° e 276° a 278° do CPPT.
8) A dimensão normativa que a sentença recorrida extrai do artigo 278° do CPPT
padece de inconstitucionalidade orgânica, por não se conformar com as
pertinentes normas dispostas na Lei Geral Tributária, extravasando o âmbito da
referida lei de autorização legislativa e o âmbito da competência do Governo
nesta matéria (art. 165°, n.º 1, al. i) da CRP).
SEM PRESCINDIR,
9) A reclamação com o fundamento peticionado perde qualquer utilidade caso não
suba ao tribunal imediatamente e com efeito suspensivo.
10) E isso independentemente de a reclamante ter invocado, ou não, prejuízo
irreparável o qual ocorre sempre que estamos perante um acto lesivo dos
respectivos direitos, liberdades e garantias.
11) A interpretação dos arts. 276° a 278° do CPPT consignada na douta decisão
recorrida, pugnando pela não admissão, ou subida meramente diferida, da
reclamação enferma de inconstitucionalidade material; desde logo, por violar os
direitos ao bom nome e reputação, imagem e protecção legal contra quaisquer
formas de discriminação, consagrados no art. 26° da CRP; mas, também, por
contrariar o disposto nos arts. 103°, 268°, n.º 3 e n.º 4 da CRP.
SEM PRESCINDIR,
12) A sentença recorrida é ilegal por impedir a reclamação para o tribunal
tributário de decisão proferida pelo órgão da execução fiscal que afecta os
direitos e interesses legítimos do executado.
13) Deste modo não garantindo à recorrente o direito de reclamação para o juiz
da execução fiscal que lhe vem assegurado pelos arts. 95° n.º 1 e n.º 2, al. j)
e n.º 103°, n.º 2 da LGT.
14) A prevalência da Lei Geral Tributária sobre a demais legislação de carácter
fiscal vem afirmada pelo art. 1° do CPPT, aqui violado.
ASSIM É QUE,
15) Deverá vir declarada nula ou revogada a decisão recorrida, com as
consequências legais.
[…].”.
A decisão recorrida foi mantida, por despacho de fls. 116.
O Ministério Público sustentou que o recurso não merecia provimento (fls. 122).
3. Por acórdão de 30 de Março de 2005 (fls. 132 e seguintes), o
Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso.
Lê-se nesse acórdão, para o que agora releva:
“[…]
A sentença recorrida entendeu que o acto recorrido do chefe da repartição de
finanças que mandou citar a recorrente para os termos da execução não é um acto
lesivo por não afectar os seus direitos e interesses legítimos, não sendo por
isso susceptível de reclamação para o Tribunal nos termos do artigo 276º e segs.
do CPPT. Prescreve aquele normativo que «as decisões proferidas pelo órgão de
execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo
afectem direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são
susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de 1ª instância». Por seu
turno o artigo 278° diz que o tribunal só conhecerá das reclamações quando,
depois de realizadas a penhora e a venda, o processo lhe for remetido a final.
Todavia o n.º 3 do mesmo normativo – e isto prende-se com a terceira questão
colocada pela recorrente – excepciona casos em que possa ocorrer prejuízo
irreparável por virtude das ilegalidades que enuncia, nenhuma das quais tendo
aplicação ao caso vertente. Todavia, como refere Jorge de Sousa (CPPT anotado,
4ª edição, fls. 1049), «apesar do carácter taxativo que a redacção deste n.º 3
do art 278° dá ao elenco dos casos de subida imediata das reclamações, não
poderá, sob pena de inconstitucionalidade material, restringir-se aos casos
indicados esse regime de subida», referindo a possibilidade de subida imediata
sempre que sem ela o interessado sofra prejuízo irreparável. Assim sendo haverá
que ver se o acto que provocou a reclamação será ou não um acto lesivo e, se o
for, se a não subida imediata provocará prejuízo irreparável. Diga-se também e
desde já que se não vê em que é que a reclamação prevista no CPPT contende com o
disposto no artigo 103° da LGT, nem que os termos em que está regulada
consubstancie qualquer inconstitucionalidade orgânica por parte daquele
normativo.
A questão da lesividade tem sido largamente abordada em acórdãos da Secção de
Contencioso Administrativo, dos quais se respigam alguns excertos:
[…]
Do que se transcreveu facilmente se concluirá que, mesmo para efeitos de
inconstitucionalidade, não basta que um acto do chefe da repartição de finanças
cause algum prejuízo ao interessado para que ele possa desde logo recorrer à
reclamação a que se refere o artigo 276° do CPPT. Se assim fosse esta via
excepcional passaria a ser o meio ordinário de recurso. Ora no caso vertente o
acto praticado consistiu na citação da interessada para, nos termos e com as
formalidades prescritas no artigo 190° do CPPT, deduzir oposição, requerer o
pagamento em prestações ou a dação em pagamento relativamente a uma dívida não
paga. Por isso a própria citação destina-se a que o executado se possa defender
pelo que seria uma grave entorse à lógica considerar que tal citação era um acto
lesivo dos direitos ou interesses legítimos da executada. Esta poderia, e para
isso foi notificada, defender os seus direitos na oposição à execução.
Do que temos vindo a referir teremos de concluir que o acto do chefe da
repartição de finanças que mandou citar a recorrente não era susceptível de
reclamação nos termos do artigo 276° do CPPT, não violando tal entendimento a
garantia constitucional de tutela jurisdicional efectiva dos direitos ou
interesses legalmente protegidos dos administrados prevista no artigo 268° n.º 4
da CRP.
Falecem pois, pelos motivos indicados, as últimas três questões colocadas pela
recorrente nas conclusões das suas alegações e que acima se equacionaram.
[…].”.
4. Deste acórdão interpôs A., S.A. recurso para o Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos (fls. 153 e seguinte):
“[…] interpõe recurso para o Tribunal Constitucional na conformidade com o
disposto no art.75°-A da Lei n.º 28/82, na redacção da Lei n.° 13-A/98, de
decisão que aplica normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o
processo (art. 70°, n.º l, al. b), versando sobre inconstitucionalidade orgânica
e material dos artigos 276° e 278° do Código de Procedimento e Processo
Tributário, em contravenção do disposto nos artigos 26°, 103° e 268° da
Constituição.
[…].”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 162.
5. Notificada do despacho de aperfeiçoamento de fls. 175, proferido
pela ora relatora, veio a recorrente dizer o seguinte (fls. 181 e seguintes):
“[…]
Alínea do n.º 1 do artigo 70° ao abrigo da qual o recurso é interposto:
- alínea b).
Normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie:
- A norma contida no art. 276° do Código de Procedimento e Processo Tributário
(epígrafe: «Reclamações das decisões do órgão da execução fiscal»), na seguinte
dimensão normativa encontrada pela sentença e acórdão recorridos: O acto do
chefe de repartição de finanças que ordena a citação para a execução fiscal não
é susceptível de reclamação porque não afecta os direitos e interesses legítimos
do executado.
- A norma contida no art. 278° do Código de Procedimento e Processo Tributário
(epígrafe: «Subida da reclamação. Resposta da Fazenda Pública e efeito
suspensivo»), na seguinte dimensão normativa encontrada pela sentença recorrida:
A subida imediata das reclamações restringe-se aos casos taxativamente previstos
no n.º 3 do art. 278° do CPPT.
Norma ou princípio constitucional que se considera violado:
- A inconstitucionalidade orgânica da citada norma extraída do art. 276° do CPPT
resulta de a mesma violar as pertinentes normas dispostas na Lei Geral
Tributária (o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal de todos os
actos lesivos vem afirmado pelos arts. 95° n.º 1 e n.º 2, al. j) e n.º 103°, n.º
2 da Lei Geral Tributária), extravasando, por isso, o âmbito da respectiva lei
de autorização legislativa (a Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, que autoriza o
Governo a aprovar o CPPT «no respeito pela compatibilização das suas normas com
as da lei geral tributária e regulamentação das disposições da referida lei que
desta careçam», cfr. art. 51°, al. c) da Lei n.º 87-B/98), extravasando, por
isso, o âmbito da competência do Governo nesta matéria, no quadro da reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República (art. 165°, n.º
1, al. i) da CRP).
- Inconstitucionalidade material da citada norma extraída do art. 276° do CPPT
em violação do disposto nos arts. 26°, n.º 1 (direitos ao bom nome e reputação,
à imagem, e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação), 103°,
n.º 3 (ninguém pode ser obrigado a pagar impostos cuja liquidação e cobrança se
não façam nos termos da lei) e 268°, n.º 4 (garantia aos administrados de tutela
jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos),
todos da Constituição.
- Inconstitucionalidade material da citada norma extraída do art. 278° em
violação da garantia aos administrados de tutela jurisdicional efectiva dos seus
direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 268°, n.º 4 da Constituição).
Peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade:
- motivação de recurso apresentada via telecópia em 17.01.2005, carimbo do TAF
de Viseu de 19.01.2005; e requerimento de interposição de recurso apresentado
via telecópia em 11.4.2005, carimbo do STA de 13.4.2005.
[…].”.
6. Por despacho de fls. 187 e seguinte, procedeu-se à restrição do
objecto do recurso à norma do artigo 276º do Código de Procedimento e de
Processo Tributário, na interpretação identificada pela recorrente no
requerimento de fls. 181 e seguintes, ou seja, interpretada no sentido de que “o
acto do chefe de repartição de finanças que ordena a citação para a execução
fiscal não é susceptível de reclamação porque não afecta os direitos e
interesses legítimos do executado” e, bem assim, ordenou-se a notificação das
partes para apresentarem as suas alegações, tendo em conta a referida
delimitação do objecto do recurso.
7. A., S.A. produziu então as alegações de fls. 199 e seguintes,
formulando as conclusões que seguem:
“1) A concreta dimensão normativa encontrada para o art. 276° do CPPT implica
que a recorrente não pode reclamar para o tribunal tributário de 1ª instância do
acto que ordena a citação para a execução invocando a nulidade do título
executivo que lhe subjaz.
2) Quando é esse o único meio adjectivo disposto pela lei para tal efeito de
reposição da legalidade.
3) E quando esse acto lesa efectivamente os seus direitos e interesses
legítimos.
4) A inconstitucionalidade orgânica da norma extraída do art. 276° do CPPT
resulta de a mesma violar as pertinentes normas dispostas na Lei Geral
Tributária (o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal de todos os
actos lesivos vem afirmado pelos arts. 95° n.º 1 e n.º 2, al. j) e n.º 103°, n.º
2 da Lei Geral Tributária), extravasando, por isso, o âmbito da respectiva lei
de autorização legislativa (a Lei n.º 87-B/98, de 31 de Dezembro, que autoriza o
Governo a aprovar o CPPT «no respeito pela compatibilização das suas normas com
as da lei geral tributária e regulamentação das disposições da referida lei que
desta careçam», art. 51º, al. c) da Lei n.º 87-B/98), extravasando, por isso, o
âmbito da competência do Governo nesta matéria, no quadro da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República (art. 165°, n.º 1, al. i) da
CRP).
5) A inconstitucionalidade material da citada norma extraída do art. 276° do
CPPT encontra fundamento na violação do disposto nos arts. 26°, n.º 1 (direitos
ao bom nome e reputação, à imagem, e à protecção legal contra quaisquer formas
de discriminação), 103°, n.º 3 (ninguém pode ser obrigado a pagar impostos cuja
liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei) e 268°, n.º 4 (garantia
aos administrados de tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou
interesses legalmente protegidos), todos da Constituição.
6) Deverá, por isso, vir julgada inconstitucional, com as demais consequências
legais.
[…].”.
A representante da Fazenda Pública contra-alegou nos seguintes termos (fls.
210):
“[…] manifesta o seu total apoio à tese do douto Acórdão recorrido no sentido de
que a própria citação da interessada para, «nos termos e com as formalidades
prescritas no artigo 190º do CPPT, deduzir oposição, requerer o pagamento em
prestações ou a dação em pagamento relativamente a uma dívida não paga»,
«destina-se a que o executado se possa defender pelo que seria um grave entorse
à lógica considerar que tal citação era um acto lesivo dos direitos ou
interesses legítimos da executada».
Pelo que, como considera o douto Acórdão, não ocorre a alegada
inconstitucionalidade, devendo ser mantido o douto Acórdão recorrido”.
8. Foi seguidamente proferido pela ora relatora o despacho de fls.
212 e seguintes, determinando a notificação das partes para se pronunciarem,
querendo, sobre a seguinte questão:
“[…]
Através do despacho de fls. 187 e seguinte (supra, 6.), procedeu-se à
delimitação do objecto do presente recurso, no sentido de que ele abrangeria a
norma do artigo 276º do Código de Procedimento e de Processo Tributário,
interpretada no sentido de que o acto do chefe de repartição de finanças que
ordena a citação para a execução fiscal não é susceptível de reclamação porque
não afecta os direitos e interesses legítimos do executado.
Tal entendimento pressupunha que a recorrente pretendia submeter ao julgamento
do Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade constitucional de uma
interpretação normativa.
Decorre todavia da leitura das alegações produzidas perante este Tribunal que a
recorrente pretende afinal que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a
conformidade constitucional da decisão judicial ora recorrida, em si mesma
considerada.
Nessas alegações a recorrente insurge-se unicamente contra a decisão que
rejeitou a reclamação por si deduzida perante o Tribunal Administrativo e Fiscal
de Viseu com fundamento na falta de lesividade do acto que ordena a citação para
a execução fiscal.
Verifica-se, assim, que a recorrente pretende através do presente recurso para o
Tribunal Constitucional obter um juízo de inconstitucionalidade sobre a
qualificação daquele acto como não lesivo, operada pelo tribunal recorrido.
Nestas circunstâncias, afigura-se como plausível que o Tribunal Constitucional
venha a decidir que não é possível conhecer do objecto do recurso, pois que este
Tribunal não tem competência para controlar a conformidade constitucional de
decisões judiciais em si mesmas consideradas (como é o caso da decisão judicial
que, realizando uma operação subsuntiva, reconhece ou não natureza lesiva a um
acto). O mesmo é dizer que o Tribunal Constitucional não tem competência para
autoritariamente qualificar certo acto como “lesivo” ou “não lesivo”.
Na verdade, no âmbito do recurso de fiscalização concreta previsto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, este Tribunal apenas
tem competência para controlar a conformidade constitucional de normas, ou de
normas, numa certa interpretação, aplicadas nas decisões proferidas pelos outros
tribunais.
[…]”.
9. Notificada deste despacho da relatora, A., S.A. veio dizer, em
síntese, o seguinte (fls. 231 e seguintes):
a) Das alegações produzidas pela recorrente decorre inequivocamente
que a sua pretensão é a de que o Tribunal Constitucional emita um juízo de
inconstitucionalidade da norma do artigo 276º do CPPT, numa certa interpretação;
b) Tal interpretação foi efectivamente aplicada na decisão recorrida,
pelo que o Tribunal Constitucional tem competência para julgar inconstitucional
a norma;
c) Uma decisão judicial não pode padecer de inconstitucionalidade
orgânica ou material, vícios suscitados nas alegações da recorrente;
d) Está em causa a lesividade potencial e não a lesividade efectiva
do acto, que como tal cabe na previsão legal de uma norma;
e) Se tal lesividade potencial não coubesse na previsão legal de uma
norma, nem a norma chegaria a ser aplicada em conformidade com a Constituição,
nem o cidadão gozaria da tutela judicial efectiva.
A recorrida não respondeu (fls. 236).
Cumpre apreciar.
II
10. Os esclarecimentos prestados pela recorrente (supra, 9.) não
abalaram a convicção da relatora, expressa no despacho de fls. 212 e seguintes
(supra, 8.), acerca da verificação de questão prévia susceptível de obstar ao
conhecimento do objecto do recurso.
Essa convicção alicerçou-se – recorde-se – na consideração de que, nas
alegações, a recorrente se insurgira unicamente contra a decisão que rejeitou a
reclamação por si deduzida perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu
com fundamento na falta de lesividade do acto que ordena a citação para a
execução fiscal, pelo que se impunha a conclusão de que a recorrente pretendia,
através do presente recurso para o Tribunal Constitucional, obter um juízo de
inconstitucionalidade sobre a qualificação daquele acto como não lesivo, operada
pelo tribunal recorrido.
Ora, incidindo o juízo de inconstitucionalidade sobre a qualificação de um acto
como não lesivo, impunha-se igualmente a conclusão de que a recorrente censurava
a decisão judicial, em si mesma considerada, e não qualquer norma nela aplicada,
objecto que decididamente extravasava a competência do Tribunal Constitucional
definida nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional.
A argumentação da recorrente não destruiu, como se disse, esta convicção.
Relativamente à circunstância de a (alegada) interpretação normativa censurada
ter sido aplicada na decisão recorrida (supra, 9., b)), convém salientar que o
fundamento do não conhecimento do objecto do presente recurso não radica na não
aplicação da norma a apreciar, mas pura e simplesmente na inexistência de norma
a apreciar. Assim sendo, é de todo irrelevante a afirmação de que a decisão
recorrida teria aplicado certa norma ou interpretação normativa: o que
interessaria demonstrar era a efectiva existência dessa norma ou interpretação
normativa.
Quanto ao argumento de que a recorrente teria alegado certos vícios
(inconstitucionalidade orgânica e material) por definição não imputáveis a
decisões, mas apenas a normas (supra, 9., c)), cumpre salientar que nunca o
vício pode determinar a natureza do acto viciado, consubstanciando antes uma
qualificação que lhe acresce: assim, por exemplo, da existência de um erro não
pode deduzir-se a existência de um negócio jurídico, ou da existência de uma
simulação a existência de um contrato. Do mesmo modo, a inconstitucionalidade
material ou orgânica são qualidades da norma, e não indícios de (existência de)
norma.
O terceiro argumento (supra, 9., d) e e)) é igualmente improcedente. Na verdade,
da circunstância de a recorrente não pretender que o Tribunal Constitucional
declare que o acto que ordena a citação para a execução fiscal é efectivamente
lesivo não pode retirar-se que, a final, o objecto do presente recurso de
constitucionalidade é uma norma: dito de outro modo, não é necessário que o
recorrente pretenda a declaração de efectiva lesão para que se conclua que o
objecto do recurso de constitucionalidade é a decisão judicial recorrida, em si
mesma considerada.
Na verdade, também a qualificação do acto como potencialmente lesivo – para usar
as palavras da recorrente – traduz a realização de uma operação subsuntiva pelo
tribunal recorrido, insusceptível, nessa medida, de controlo pelo Tribunal
Constitucional.
Não procedendo a argumentação da recorrente, conclui-se, como no despacho de
fls. 212 e seguintes, no sentido do não conhecimento do objecto do presente
recurso, uma vez que o Tribunal Constitucional não tem competência, nos termos
do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para
sindicar a conformidade constitucional da própria decisão recorrida.
Assim decidiu este Tribunal, perante um caso em tudo semelhante aos destes
autos, no Acórdão n.º 649/05, de 16 de Novembro, desta 1ª Secção (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não tomar
conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de
conta.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2006
Maria Helena Brito
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido. Conhecendo do
objecto do recurso e considerando não inconstitucional
a norma sindicada.
Carlos Pamplona de Oliveira. Vencido, essencialmente
nos termos da declaração do Ex.mo Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos
Artur Maurício