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Processo n.º 818/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A., SA, apresentou reclamação para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo do artigo 77.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra
o despacho do Juiz do 7.º Juízo Cível do Tribunal Cível de Lisboa, de 1 de Abril
de 2004, de não admissão de recurso de inconstitucionalidade por ela interposto
da sentença de 8 de Setembro de 2004, que julgara improcedentes os embargos de
executado deduzidos na acção executiva que lhe foi movida por B., L.da.
Segundo o requerimento de interposição de recurso e os
esclarecimentos prestados na sequência de convite do juiz a quo, o recurso
fundava‑se na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC; tinha por objecto o
“bloco indissociável” constituído pela sentença de 8 de Setembro de 2004 e pelo
despacho de 9 de Fevereiro de 2005, que indeferiu pedido de reforma da anterior
sentença; visava a apreciação da inconstitucionalidade – por violação do
princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da
Constituição da República Portuguesa (CRP) – da “norma do artigo 14.º do Regime
anexo ao Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, com a interpretação que lhe
foi dada na decisão recorrida, no sentido de que, não tendo havido oposição a
uma providência de injunção, não é possível ao executado, em sede de oposição à
execução decorrente da aposição da fórmula executória por uma entidade não
jurisdicional, alegar todos os fundamentos que lhe seria lícito deduzir como
defesa no processo de declaração”, questão que teria sido suscitada no
requerimento entrado em 28 de Setembro de 2004, onde se pedia a reforma da
sentença de condenação exarada em 8 de Setembro de 2004.
O recurso não foi admitido pelo despacho ora reclamado, porquanto
– determinando o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC que “cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões em que se aplique norma cuja
constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” – “desde o início do
processo que não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade” e,
“ainda que no requerimento em que a embargante requereu a reforma da sentença
tenha alegado a violação de uma norma constitucional, o certo é que, atenta a
fase processual em que tal questão foi suscitada, a mesma não foi objecto de
qualquer discussão”.
Na reclamação, a reclamante desenvolve a seguinte argumentação:
“A presente reclamação é interposta, ao abrigo do artigo 77.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, do despacho
do M.mo Juiz do 7.º Juízo Cível, 2.ª Secção, do Tribunal Cível de Lisboa, que
não admitiu o recurso de constitucionalidade da sentença que julgou
improcedentes os embargos, depois mantida após ter sido requerida a sua
reforma.
Em sede de reclamação, apenas cabe debruçar‑nos sobre os fundamentos de direito
de despacho de que se reclama. Este fundamenta‑se em que, desde o início do
processo, não foi suscitada qualquer inconstitucionalidade, salvo quando foi
requerida pela signatária a reforma da sentença sub judice.
E concluir que, não tendo sido discutida a questão no processo, não estava
preenchido qualquer dos requisitos previstos n.° 1 do artigo 70.º da LOTC.
É evidente, todavia, que apenas após a prolação da sentença se podia suscitar a
questão da inconstitucionalidade a que se reporta o presente recurso, sendo
certo que a mesma não era passível de recurso ordinário.
Com efeito, o fundamento do recurso perante o Tribunal Constitucional reside na
não concordância com a interpretação da lei, constante da sentença, no sentido
de que, não tendo havido oposição a uma providência de injunção, já não é
possível, em sede de embargos à execução subsequente determinada por uma
entidade não jurisdicional, alegar todos os fundamentos que lhe seria lícito
deduzir como defesa no processo de declaração.
É manifesto, porém, que só após se ter conhecimento da decisão final quanto ao
processo se poderia suscitar a constitucionalidade da interpretação da lei que
em tal local lhe foi dada.
E esta interpretação contém manifestamente um elemento de surpresa face à marcha
do processo, pelo que, tal como tem sido jurisprudência desse Tribunal
Constitucional, é um dos casos em que se deve admitir o recurso, mesmo à face de
questões suscitadas apenas em sede de reforma duma sentença.
Se o Tribunal recorrido entendia que, pelas razões processuais apontadas, os
embargos não podiam ser procedentes, afigura‑se que tal questão devia ter sido
posta e decidida aquando da entrada em juízo da petição inicial dos embargos.
Daí que a questão da inconstitucionalidade da sentença recorrida, nos termos em
que é posta no requerimento de recurso, represente um elemento de surpresa face
à marcha do processo, pelo que se considera verificado enquadrar‑se o recurso
na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei no 28/82, pois a questão de
inconstitucionalidade foi suscitada na única fase em que tal era possível e
razoável.
Deve, por conseguinte, ser admitida a presente reclamação, revogando‑se o
despacho que não admitiu o recurso e determinando‑se o envio do processo para
esse Tribunal Constitucional.”
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional
emitiu o seguinte parecer:
“A interpretação normativa realizada pelo Tribunal a quo, ao atribuir um
efeito preclusivo à não dedução de oposição por parte do requerido no processo
de injunção – inibindo‑lhe, consequentemente, a utilização, na subsequente
execução, dos meios de defesa que poderia ter utilizado naquele procedimento –
e aproximando, neste medida, o regime aplicável a tal acção executiva do que
está estatuído no artigo 814.° do Código de Processo Civil, relativamente aos
fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, configura‑se como
decisão‑surpresa que, pelo seu carácter imprevisível, dispensava o recorrente do
ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade antes de tal decisão ser
proferida.
Verifica‑se, porém, que o recorrente – antes de interpor o recurso de
constitucionalidade em que tratou de delinear tal questão de
constitucionalidade normativa – deduziu pedido de reforma da decisão recorrida,
na qual não suscitou – podendo obviamente tê‑lo feito – tal questão de
constitucionalidade, em termos processualmente adequados.
O Tribunal Constitucional tem entendido, em jurisprudência reiterada, que os
incidentes pós‑decisórios não constituem instrumento adequado para suscitar,
pela primeira vez, uma questão de inconstitucionalidade normativa. Porém – e
referentemente à arguição de nulidade – tem sido entendido que a parte que
arguiu de tal vício tem o ónus de, no requerimento respectivo, suscitar as
questões de constitucionalidade que se prendam ou conexionem com as normas de
que depende a existência da nulidade ou invalidade processual, de modo a que o
tribunal, ao apreciá‑la, possa pronunciar‑se, em primeira linha, sobre a questão
de constitucionalidade equacionada pelo interessado (cfr. Acórdãos n.ºs 612/99,
737/98, 185/2001 e 198/2001). Já não será, porém, de exigir à parte que
peticione pedido de aclaração a obrigatória suscitação de uma questão de
constitucionalidade que lhe não era exigível que tivesse antecipado em momento
prévio à prolação da decisão impugnada (Acórdãos n.ºs 74/2000 e 155/2000).
Quid juris quanto a tal ónus no âmbito do pedido de reforma substancial da
decisão proferida, alegadamente inquinada por erro manifesto de direito?
No caso dos autos, parece‑nos evidente que se não verificavam os pressupostos
que condicionam a dedução do pedido de reforma a que alude o artigo 669.°, n.°
2, do Código de Processo Civil, já que a qualificação jurídica feita pelo
julgador não assentava obviamente em qualquer lapso manifesto, mas antes numa
opção jurídica – discutível, mas plena e cabalmente fundamentada.
Como é manifesto, em tais circunstâncias, o eventual erro de direito cometido
pelo juiz não legitima a utilização daquele meio procedimental – valendo antes,
de pleno, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional com a prolação da
decisão.
E, deste modo, mesmo que o recorrente tivesse equacionado adequadamente a
questão de inconstitucionalidade normativa no âmbito daquele pedido de reforma,
o resultado final seria precisamente o mesmo: o juiz nada adiantaria, em termos
substanciais, sobre tal questão, por considerar exaurido o seu poder
jurisdicional sobre a matéria em causa.
A suscitação de uma questão de constitucionalidade no âmbito de um pedido de
reforma, processualmente inadmissível por ostensiva não verificação dos
pressupostos tipificados taxativamente nas alíneas a) e b) do artigo 669.° do
Código de Processo Civil, carece, pois, de utilidade, não lhe devendo ser
atribuído efeito preclusivo, relativamente à colocação da questão no âmbito do
próprio recurso para o Tribunal Constitucional.
Ora, tendo o recorrente delineado aí efectivamente tal questão, mostra‑se
cumprido o ónus que o vinculava, o que, a nosso ver, determinará a procedência
da presente reclamação.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O deferimento da presente reclamação é sustentado pela
reclamante e pelo Ministério Público por duas vias diversas: a primeira sustenta
que suscitou a questão de inconstitucionalidade normativa no pedido de reforma
da sentença de 8 de Setembro de 2004 e que esse momento se deve considerar
ainda adequado para o efeito, por a aludida sentença conter um elemento de
surpresa face à marcha do processo; já o representante do Ministério Público
entende que nessa peça processual a reclamante não suscitou, de modo adequado, a
questão de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciada, mas que
tal é irrelevante, uma vez que, constituindo a decisão recorrida uma
decisão‑surpresa, se deve considerar que lhe assiste o direito de recorrer para
o Tribunal Constitucional sem dependência de prévia suscitação da questão de
inconstitucionalidade, direito que não perde pela circunstância de ter, em
incidente processual aliás legalmente inaplicável, suscitado a questão em termos
deficientes.
Para apurar da valia de cada uma destas vias, interessará, antes
de mais, recordar as vicissitudes processuais relevantes do caso.
2.1. Contra a ora reclamante foi instaurada execução tendo por
base injunção a que foi dada força executória pela aposição, por parte do
Secretário Judicial da Secretaria‑Geral da Injunção de Lisboa, da fórmula
prevista no artigo 14.º, n.º 1, do Regime anexo ao Decreto‑Lei n.º 269/98, de 1
de Setembro (“Se, depois de notificado, o requerido não deduzir oposição, o
secretário aporá no requerimento de injunção a seguinte fórmula: «Este
documento tem força executiva».”).
A executada opôs‑se por embargos à execução, negando a celebração
com a exequente do contrato por esta invocado como fundamento do requerimento de
injunção, oposição que entendeu lhe ser lícito deduzir uma vez que, não sendo a
execução baseada em sentença judicial, a parte final do n.º 1 do artigo 815.º
do Código de Processo Civil (CPC) (correspondente ao artigo 816.º, na redacção
entretanto dada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março), que dispunha: “1 –
Se a execução não se basear em sentença, além dos fundamentos de oposição
especificados no artigo 813.º [actualmente, artigo 814.º], na parte em que sejam
aplicáveis, podem alegar‑se quaisquer outros que seria lícito deduzir como
defesa no processo de declaração”.
2.2. Os embargos foram julgados improcedentes por sentença de 8
de Setembro de 2004, com a seguinte fundamentação jurídica:
“Como título executivo dado à execução, consta um processo de injunção à qual
foi dada força executória.
Está‑se, pois, face ao título executivo constante da alínea d) do artigo 46.° do
CPC.
A embargante veio pôr em causa a relação jurídica constante do referido título
executivo, ou seja, que a exequente tenha prestado quaisquer serviços à
executada. Aliás, a embargante considera inclusive que não se mostra «provada» a
relação substancial que serviu de base ao processo de injunção.
Ora, como resultou provado, a B., L.da, realizou nas instalações da C., obras
essas que facturou à A., SA, a 30 de Novembro de 1999, no montante de 542
174$00.
Não ficou provado, como a embargada alegou, que tais obras tenham sido
efectuadas em cumprimento do que havia acordado com a embargante.
Como resulta da fundamentação constante da decisão sobre a matéria de facto,
apenas se pôde apurar que a embargada efectuou os serviços facturados, e que
tais trabalhos foram levados a cabo nas instalações da C. Não resultou provado
quem contratou tais serviços, se a A. se a C. Como igualmente não resultou
provado que a embargante nunca tenha celebrado qualquer contrato com a
embargada.
O processo de embargos é destinado a contestar o direito do exequente, quer
impugnando a própria exequibilidade do título, quer alegando factos que, em
processo declarativo, constituiriam matéria de excepção.
No caso concreto, a embargante limitou‑se a pôr em causa a existência do
contrato alegado pelo exequente em sede de processo de execução. Não alegou
factos, impugnou a matéria alegada pela exequente. Este facto determinaria que
recaísse sobre o embargado exequente o ónus de prova do direito constante do
título executivo, atentas as regras constantes da repartição do ónus da prova,
artigo 342.° do Código Civil.
Contudo, em face da especificidade do título executivo em causa, importa
determinar se a referida regra é, ou não, aplicável.
Como podemos ler no Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Junho de 2003, onde
se analisa o ónus da prova em sede de embargos de executado em que o título
executivo apresentado é uma certidão de dívida nos termos do Decreto‑Lei n.º
194/92, de 8 de Setembro: «Embora o título executivo seja a demonstração do
direito substancial do exequente, essa demonstração não tem a mesma força
relativamente a todos os títulos executivos» (...) «Uma sentença condenatória,
transformada em título executivo, tem um grau de demonstração ou de aparência do
direito substancial do exequente muito superior ao que se verifica em relação
aos demais títulos executivos» [Acórdão da Relação de Lisboa, de 19 de Junho de
2003, Relator: Ferreira Marques, in www.dgsi.pt.].
O grau de aparência do direito de crédito depende das características dos
diversos títulos.
Não estando em causa uma sentença judicial, o embargante, nos termos do artigo
815.° do CPC, para além dos fundamentos constantes do artigo 813.º do mesmo
diploma legal, pode alegar, como oposição à execução, todos os factos que em
sede de processo declarativo pudesse alegar como defesa. Logo, poder‑se‑ia
concluir que o embargante se poderia opor à execução, limitando‑se a impugnar
a matéria de facto alegada em sede de processo de execução.
Contudo, esta conclusão não é a correcta, mais uma vez atenta a diversidade dos
títulos executivos e a correspondente abstracção. Sempre que o titulo executivo
respeite a uma pretensão abstracta, como por exemplo uma letra, esta é
suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa
debendi, daí que a defesa do executado, em sede de embargos, dependa de alegação
de factos relativos à relação jurídica subjacente à emissão do título, sendo
impossível uma defesa por impugnação. Já as obrigações causais têm que ser
necessariamente alegadas, se as mesmas não constarem do título executivo, daí a
possibilidade de deduzir oposição por mera impugnação.
Assim, podemos então concluir que a possibilidade de deduzir embargos de
executado por mera impugnação depende do tipo de título executivo e
correspondente obrigação.
O artigo 46.° do CPC enumera as espécies de títulos, a sentença condenatória, o
documento exarado e autenticado por notário, o escrito particular assinado pelo
devedor e o titulo executivo por força de disposição legal, nesta ultima
espécie a injunção que se pode qualificar como um título judicial impróprio
[Terminologia usada por Lebre de Freitas, A Acção Executiva, revista, 2.ª
edição, pág. 54; Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, ed. Lex,
1998, pág. 176, alude à injunção como um documento executório, dissociando‑o dos
restantes títulos extrajudiciais.] Não se trata de um título judicial, mas
também não os podemos incluir nos títulos extrajudiciais, como são as certidões
de dívida do Decreto‑Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, ou as actas da Assembleia
de Condóminos, previstas no artigo 6.° do Decreto‑Lei n.º 268/94, de 25 de
Outubro.
O título executivo dada à execução foi um processo de injunção ao qual foi
conferida força executiva. A criação do título executivo injunção realizou‑se
através do Decreto‑Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, depois substituído pelo
Decreto‑Lei n.° 269/98, de 1 de Setembro.
Esta forma processual consiste num «processo pré-judicial tendente à criação de
um título executivo extrajudicial na sequência de uma notificação para pagamento
sem intervenção de um órgão jurisdicional, sob condição de o requerido,
pessoalmente notificado, não deduzir oposição. Trata‑se de uma solução legal
tendente à realização de objectivos de celeridade, simplificação e
desburocratização da actividade jurisdicional, pensada com vista ao
descongestionamento dos tribunais no que concerne à efectivação de pretensões
pecuniárias de reduzido montante, pressupondo a inexistência de litígio actual
e efectivo entre o requerente e o requerido» [Acórdão da Relação de Lisboa, de
17 de Fevereiro de 2004, Relator: Moreira Camilo, onde se transcreve um enxerto
de Antes Teles, «Notas sobre a Providência da Injunção à Luz dos Princípios
Orientadores da Reforma da Legislação Processual Civil», O Direito, ano 131.º,
1999‑III‑IV, págs. 471 a 487, in www.dgsi.pt].
A característica deste título judicial impróprio, que o afasta dos restantes
títulos criados por força de disposição legal, resulta do facto de a força
executiva ser conferida apenas depois de se conceder ao devedor a possibilidade
de, judicialmente, discutir a causa debendi, alegada. Ou seja, no processo de
injunção, o requerido tem a possibilidade de, deduzindo oposição, impedir que
seja aposta força executiva à acção.
Por esta razão, consideramos que, seguindo o processo de injunção os legais
trâmites, ao lhe ser conferida força executiva, o título adquire um grau de
aparência e abstracção que torna desnecessária a prova do direito alegado pelo
requerente/exequente, cabendo ao embargante a alegação e prova de factos
impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado. Ou seja, não basta
impugnar, pois tal defesa já deveria ter sido deduzida em fase anterior.
Ora, o embargante não pôs em causa a exequibilidade do título, tendo assim
admitido que oportunamente foi notificado para deduzir oposição à pretensão
deduzida pelo requerente da injunção, como não se opôs a tal pretensão, o
direito alegado tem‑se como demonstrado. Como tal, o tribunal, em sede de
embargos, apenas tem que ter em conta o facto de ter sido conferida força
executiva à injunção.
Concluindo, então, que o ónus da prova, no caso concreto, cabia ao embargante,
atenta a matéria de facto provada, os presentes embargos terão que improceder.”
2.3. A embargante apresentou pedido de reforma da sentença, ao
abrigo do artigo 669.º, n.º 2, alínea a), do CPC, nos seguintes termos:
“I – INTRODUÇÃO
A sentença sub judice julgou improcedentes os embargos deduzidos pela
signatária, com o fundamento, resumindo, em que, não havendo oposição a uma
injunção apresentada em prazo legal, o direito alegado na petição de injunção
tem‑se como demonstrado.
Depois de qualificar o título executivo consubstanciado pela aposição da fórmula
executória no requerimento de injunção por parte do secretário judicial como
título judicial impróprio – enquadrando‑o correctamente nos documentos
previstos na alínea d) do artigo 46.° do CPC – a douta sentença considera que,
neste caso, o título adquire um grau de aparência e abstracção que torna
desnecessária a prova do direito alegado pelo requerente/exequente.
Em consequência, a impugnação, que não a defesa por excepção, do direito
substancial apenas poderia ocorrer em sede de oposição, mas não de embargos.
II – FUNDAMENTAÇÃO DO PEDIDO DE REFORMA
Com o devido respeito, não é este o regime que resulta da lei, e designadamente
do artigo 816.° do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo
Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, que corresponde, com a diferença da
remissão para o artigo 814.° (anteriormente o artigo 813.°), ao que já dispunha,
à data dos factos, o artigo 815.°, n.º 1.
Com efeito, o legislador distingue muito claramente, em sede de embargos, entre
os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, à execução baseada em
decisão arbitral e à execução baseada noutro título. Sendo obviamente restritos
tais fundamentos nos dois primeiros casos, no terceiro, que corresponde ao caso
dos autos, como a sentença o afirma, podem ser alegados quaisquer outros que
seria lícito deduzir como defesa no processo de execução.
E, nos diplomas que criaram o instituto processual da injunção, nada se diz
quanto à defesa e respectiva fundamentação na oposição à execução, pelo que, não
havendo disposição especial, aplica‑se o regime geral do actual artigo 816.° do
CPC.
Como escreve o Ex.mo Juiz Desembargador Salvador da Costa, in A injunção e as
conexas acção e execução, Almedina, 2002, 2.ª edição actualizada, a pág. 172:
«A aposição da fórmula executória não se traduz em acto jurisdicional de
composição do litígio, consubstanciando‑se a sua especificidade de título
executivo extrajudicial no facto de derivar do reconhecimento implícito pelo
devedor da existência da sua dívida por via da falta de oposição subsequente à
sua notificação pessoal.
Assim, a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou
preclusivo para o requerido que pode, na acção executiva, controverter a
exigibilidade da obrigação exequenda, tal como o pode fazer qualquer executado
em relação a qualquer título executivo extrajudicial propriamente dito.
Em consequência, pode o requerido utilizar, em embargos de executado, a sua
defesa com a mesma amplitude com que o podia fazer na acção declarativa, nos
termos do artigo 815.° do Código de Processo Civil.»
Esta transcrição traduz o entendimento correcto do regime deste título executivo
especial, o qual, não se enquadrando em sentença condenatória, é susceptível de
defesa, com a maior amplitude, em sede de embargos, e não apenas por excepção,
contrariamente ao que se afirma na sentença.
Cumpre aqui fazer nota, com todo o respeito, de que na sentença em apreço não se
encontra qualquer referência ao que dispunha, em matéria de defesa em embargos
de executado, o artigo 815.°, n.º 1 (hoje artigo 816.°) do CPC.
A sentença, embora não o referindo expressamente, vem tratar o requerimento
executivo dos autos como o faria se baseado numa própria e verdadeira sentença
jurisdicional. Ora, isto contraria frontalmente os artigos 46.°, n.º 1, alínea
d), e 816.º do CPC, que conferem os mais amplas faculdades de defesa aos
embargantes nas execuções baseadas em títulos executivos que não sejam sentença,
e vem ferir irremediavelmente as legítimas expectativas dos embargantes em
poder discutir neste procedimento todos os fundamentos dos alegados direitos
dos exequentes.
E isto é tanto mais chocante, no caso vertente, quanto não ficou provado que as
obras realizadas pelo exequente tenham sido efectuadas em cumprimento de acordo
entre a embargante/executada e a embargada/exequente e a própria providência de
injunção se suportava em orçamentos, e não em contratos ou facturas, sendo o
prazo de oposição à injunção extremamente reduzido para analisar fundadamente o
pedido.
Acresce que, nos termos do disposto no artigo 484.º, n.º 1, do CPC, o efeito da
falta de contestação por parte do réu é a confissão dos factos articulados pelo
autor. Mas de tal confissão não resulta necessariamente uma condenação no
pedido; o juiz analisa a prova e, em função do direito aplicável, profere a
sentença, que pode ser de condenação, total ou parcial, ou de absolvição. Ora,
no caso concreto da injunção, não existe prova produzida – apenas se referem
documentos, que não vão juntos aos autos – e não há intervenção do juiz na
aposição da fórmula executória. Faz, portanto, todo o sentido, dentro duma
visão de conjunto da matéria, que perante um título judicial impróprio – na
terminologia da sentença – a defesa do réu tenha, em sede de embargos, a
amplitude consagrada no actual artigo 816.º do CPC, já que, insiste‑se, não se
verifica apreciação jurisdicional da pretensão do autor e respectiva
fundamentação previamente à emissão do título executivo. Na economia do sistema,
sempre que não exista sentença jurisdicional, o pedido do autor tem de ser
susceptível de discussão plena no procedimento dos embargos.
Como nota final, entende‑se que a sentença violou ainda o disposto no artigo
20.º da Constituição, que consagra o acesso ao Direito e a tutela jurisdicional
efectiva, já que denegou à embargante o direito a defender‑se, sob a forma de
impugnação, da providência da injunção.
III – CONCLUSÕES
1.º – O requerimento executivo tem como base uma decisão que não se enquadra
em sentença jurisdicional, pelo que cabe na previsão do artigo 46.°, n.º 1,
alínea d), do Código de Processo Civil.
2.° – Como tal, em sede de embargos, podem alegar‑se quaisquer fundamentos
que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração, conforme dispõe
o artigo 816.° do Código de Processo Civil (anteriormente artigo 815.°, n.º 1).
3.º – A sentença omitiu na sua fundamentação o regime expresso do artigo
816.° do Código de Processo Civil, que confere as mais amplas faculdades de
defesa aos embargantes, pelo que incorreu em manifesto lapso na determinação da
norma aplicável aos autos e à defesa produzida nos embargos.
4.º – Deve assim, ao abrigo do disposto no artigo 669.º, n.º 2, alínea a), do
Código de Processo Civil, ser reformada a sentença proferida nos autos,
reconhecendo‑se que era lícito à embargante/executada impugnar o direito que a
embargada/exequente se arrogava e, em face da prova produzida, no processo,
julgar procedentes os embargos.
5.º – A douta sentença em apreço violou ainda o artigo 20.° da Constituição
da República Portuguesa, uma vez que denegou à embargante a tutela jurisdicional
efectiva consagrada na legislação ordinária pelo referido artigo 816.° do Código
de Processo Civil.
6.° Em resumo, requer‑se a reforma da sentença, nos termos e com os
fundamentos expostos na conclusão 4.ª.”
2.4. Este pedido de reforma da sentença foi indeferido por
despacho de 9 de Fevereiro de 2005, porquanto: “Efectuada nova leitura da
sentença em crise, não se vislumbra em que medida a mesma padeça do vício a que
se reporta o n.º 2, alínea a), do artigo 669.º do CPC ou viole qualquer norma
constitucional”.
2.5. Notificada deste despacho, a embargante veio interpor
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade – por
violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º
da CRP – da “norma do artigo 14.º do Regime anexo ao Decreto‑Lei n.º 269/98, de
1 de Setembro, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, no
sentido de que, não tendo havido oposição a uma providência de injunção, não é
possível ao executado, em sede de oposição à execução decorrente da aposição da
fórmula executória por uma entidade não jurisdicional, alegar todos os
fundamentos que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração”,
questão que teria sido suscitada no requerimento entrado em 28 de Setembro de
2004, onde se pedia a reforma da sentença de condenação exarada em 8 de
Setembro de 2004.
Por despacho de 2 de Março de 2005, foi a embargante convidada a
esclarecer de que decisão pretendia interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, tendo respondido que “a decisão judicial de que se recorre (...)
é (...) formada pela sentença [que julgou improcedentes os embargos] e pelo
despacho que indeferiu o requerimento de reforma da mesma e a confirmou, os
quais constituem um bloco indissociável”, após o que foi proferido o despacho de
não admissão do recurso, que constitui objecto da presente reclamação.
3. Em face do precedente relato, impõe‑se a conclusão de que, nas
únicas referências à Constituição feitas pela reclamante no pedido de reforma
da sentença que julgou improcedentes os embargos, peça processual por ela
indicada como sendo a sede de suscitação da questão de inconstitucionalidade
que pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, não se suscita, em
termos minimamente adequados, nenhuma questão de inconstitucionalidade
normativa. O que a reclamante aí refere é que a decisão judicial recorrida
violou uma disposição de direito ordinário (o artigo 816.º do CPC), que lhe
conferia tutela jurisdicional efectiva e, com isso, violou o artigo 20.º da
CRP.
Mas, como é sabido, no sistema português de fiscalização de
constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a
interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com
clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa
inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas
directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. E, por outro
lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o processo”, “de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC),
e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das
dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Ora, pelo atrás exposto, é manifesto que a recorrente não
suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, como tal não
podendo ser considerara a imputação da violação da Constituição feita
directamente a uma decisão judicial.
4. Tem, porém, o Tribunal Constitucional entendido que o referido
requisito de suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal
recorrido, antes de proferida a decisão impugnada, se considera dispensável em
situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder
jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas
situações em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para
suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão
recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade, por a interpretação
judicialmente acolhida ser inesperada, insólita ou anómala.
Segundo o Ministério Público, é justamente esta última a situação
dos presentes autos.
O CPC, na redacção vigente à data da instauração da presente
execução (2001), diferenciava os fundamentos invocáveis pelo executado para se
opor à execução por embargos consoante o título executivo fosse uma sentença
(hipótese em que os fundamentos invocáveis eram os elencados nas alíneas a) a
g) do artigo 813.º), uma decisão arbitral (em que aos fundamentos anteriores se
aditavam os que podiam basear a anulação judicial da decisão arbitral – artigo
814.º, n.º 1) ou outro título (em que aos fundamentos invocáveis na execução
fundada em sentença acresciam quaisquer outros que seria lícito deduzir como
defesa no processo de declaração – artigo 815.º, n.º 1), acrescentando o n.º 2
deste artigo 815.º que a homologação, por sentença judicial, da conciliação,
confissão ou transacção das partes, em que a execução se fundasse, não impedia
que na oposição se alegasse qualquer das causas que determinam a nulidade ou a
anulabilidade desses actos. Este esquema foi mantido na redacção dada pelo
Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, com melhorias de sistematização (a regra
de que a oposição à execução de sentença homologatória de conciliação, confissão
ou transacção se podia também fundar em qualquer causa de nulidade desses
actos, que constava do n.º 2 do artigo 815.º, relativo à oposição à execução
baseada noutro título, transitou [com eliminação da referência a conciliação]
para a alínea h) do actual artigo 814.º, que é o preceito dedicado à enumeração
dos fundamentos de oposição à execução baseada em sentença, já que, de facto, “a
situação aí prevista – atenta a existência de sentença homologatória – se situa
no âmbito da execução baseada em decisão judicial” – Carlos Francisco de
Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª ed., vol.
II, Coimbra, 2004, p. 39).
A injunção, como providência destinada a conferir força executiva
ao requerimento destinado a obter o cumprimento efectivo de obrigações
pecuniárias decorrentes de contrato cujo valor não excedesse metade do valor da
alçada do tribunal de 1.ª instância, foi instituída pelo Decreto‑Lei n.º
404/93, de 10 de Dezembro, prevendo‑se que, na falta de oposição do requerido,
o secretário judicial do tribunal aporia fórmula executória no requerimento de
execução. Este diploma não continha qualquer disposição específica quanto às
execuções fundadas nesse título, mas no respectivo preâmbulo esclareceu‑se que:
“A aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto
jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender‑se em futura acção
executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de
declaração, nos termos do disposto no artigo 815.º do Código de Processo
Civil.”
Esse regime foi substituído pelo instituído pelo Decreto‑Lei n.º
269/98, de 1 de Setembro, que alargou a aplicabilidade da providência aos
contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância (artigo
7.º do Regime anexo), tendo posteriormente o Decreto‑Lei n.º 32/2003, de 17 de
Fevereiro, estendido essa aplicabilidade às obrigações comerciais abrangidas
por esse diploma. No que concerne à execução fundada em requerimento de
injunção, o artigo 21.º, n.º 1, do Regime aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 269/98
limitou‑se a determinar que a mesma seguiria, com as necessárias adaptações, os
termos do processo sumário para pagamento de quantia certa, ou os termos
previstos no Decreto‑Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro, se se verificasse o
requisito da alínea b) do artigo 1.º deste diploma; isto é, em termos práticos,
o processo sumário de execução – em regra, utilizável apenas quando a execução
se fundava em sentença judicial condenatória (artigo 465.º, n.º 2, do CPC) –
passou a ser utilizável na execução fundada em requerimento de injunção a que
fora aposta a fórmula executória, com a consequente atribuição exclusiva ao
exequente do direito de nomear bens à penhora (artigo 924.º do CPC), e se o
exequente nomeasse apenas bens móveis ou direitos que não tivessem sido dados de
penhor, com excepção do estabelecimento comercial, não haveria lugar a
reclamação de créditos na execução em causa (artigos 1.º, alínea b), e 2.º, n.º
1, do Decreto‑Lei n.º 274/97). Mas, tirando estas duas especialidades, nenhuma
alteração se introduziu nomeadamente quanto à extensão dos fundamentos
invocáveis pelo executado na dedução de embargos à execução.
A generalidade da doutrina tem considerado que a aposição, pelo
secretário judicial, da fórmula executória no requerimento de injunção integra
um título executivo distinto das sentenças, sendo admissível que, na oposição à
execução nele fundada, o executado invoque, para além dos fundamentos invocáveis
na oposição à execução fundada em sentença, “quaisquer outros que seria lícito
deduzir como defesa no processo de declaração”. José Lebre de Freitas (A Acção
Executiva – Depois da Reforma, 4.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 64 e 182) refere
que os títulos em causa, “formados num processo mas não resultantes de uma
decisão judicial, têm sido classificados como judiciais impróprios” e que o
referido alargamento dos fundamentos da oposição à execução baseada em títulos
diferentes das sentenças e das decisões arbitrais se compreende porque “o
executado não teve ocasião de, em acção declarativa prévia, se defender
amplamente da pretensão do requerente”. Também Fernando Amâncio Ferreira (Curso
de Processo de Execução, 6.ª edição, Coimbra, 2004, págs. 39‑46 e 152‑153)
salienta a ausência, no sistema português do processo de injunção, da emanação
por parte de um juiz de uma ordem de pagamento de determinada quantia ou de
satisfação de outra prestação em curto prazo (como sucede nos direitos italiano,
francês e espanhol), sendo a fórmula executória aposta por um oficial de
justiça, reconhecendo que “não sendo o título executivo uma sentença, o
executado está perante o requerimento executivo do exequente na mesma posição em
que estaria perante a petição inicial da correspondente acção declarativa”,
pelo que “consequentemente, pode alegar em oposição à execução tudo o que
poderia alegar na contestação àquela acção”. J. P. Remédio Marques (Curso de
Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto, Porto, 1998, págs. 79‑80 e
153, nota 379) considera que a actividade conducente à aposição da fórmula
executória – o “execute‑se” – pelo secretário judicial não se insere na função
administrativa do Estado, visto que não visa a prossecução de interesses gerais
da colectividade, “mas também não é um acto jurisdicional – equiparável”,
parecendo‑lhe tratar‑se “de um acto meramente instrumental, análogo àqueles que
se praticam no exercício de uma função, que tanto pode ocorrer em processos
jurisdicionais como em procedimentos administrativos”; de qualquer forma,
sempre que “não existe um processo declarativo prévio, o executado, nos
embargos, pode impugnar ou excepcionar – mas nunca reconvir – a obrigação
materializada pelo título extrajudicial”. Miguel Teixeira de Sousa (A Reforma da
Acção Executiva, Lisboa, 2004, pág. 69) faz derivar da alteração da redacção do
artigo 53.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, operada pelo Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de
Março, o estabelecimento de uma tripartição dos títulos executivos: decisões
judiciais (que são as sentenças condenatórias referidas no artigo 46.º, n.º 1,
alínea a), do CPC), títulos extrajudiciais (que são os documentos mencionados
nas alíneas b) e c) do mesmo preceito) e outros títulos de formação judicial,
entendido como os que provêm de um “processo” (e não de uma “acção”, como os
títulos judiciais), categoria esta última que seria justamente utilizada para
designar os títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um
requerimento de injunção ao qual o requerido não deduziu oposição. Também
Carlos Lopes do Rego (obra citada, vol. I, pág. 90) considera que por “título de
formação judicial” deve ser considerado o “título judicial impróprio, formado
no âmbito de um procedimento cometido aos tribunais judiciais, mas sem qualquer
intervenção jurisdicional, como ocorre, de forma paradigmática, no processo de
injunção”. Porém, esta autonomização dos “títulos de formação judicial”
relativamente aos títulos extrajudiciais apenas releva para efeitos de
determinação do tribunal onde deve correr a acção executiva no caso de cumulação
inicial de execuções, quer se trate de títulos homogéneos (n.ºs 2 e 4 do artigo
53.º do CPC), quer de títulos heterogéneos (n.º 3 do mesmo artigo), não
extraindo os autores citados qualquer outra consequência dessa autonomização,
designadamente no sentido de sequer questionarem a aplicação plena do regime do
actual artigo 816.º (anterior artigo 815.º, n.º 5) às execuções fundadas em
títulos que resultam da aposição da fórmula executória a um requerimento de
injunção. Pode, pois, concluir‑se que doutrinalmente é pacífico o entendimento
assim sintetizado por Salvador da Costa (A Injunção e as Conexas Acção e
Execução, 2.ª edição, Coimbra, 2002, p. 172), em passagem já reproduzida no
pedido de reforma da sentença apresentada pela ora reclamante:
«A aposição da fórmula executória não se traduz em acto jurisdicional de
composição do litígio, consubstanciando‑se a sua especificidade de título
executivo extrajudicial no facto de derivar do reconhecimento implícito pelo
devedor da existência da sua dívida por via da falta de oposição subsequente à
sua notificação pessoal.
Assim, a fórmula executória é insusceptível de assumir efeito de caso julgado ou
preclusivo para o requerido que pode, na acção executiva, controverter a
exigibilidade da obrigação exequenda, tal como o pode fazer qualquer executado
em relação a qualquer título executivo extrajudicial propriamente dito.
Em consequência, pode o requerido utilizar, em embargos de executado, a sua
defesa com a mesma amplitude com que o podia fazer na acção declarativa, nos
termos do artigo 815.° do Código de Processo Civil.»
Na pesquisa efectuada nas bases de dados jurisprudenciais
disponíveis não se detectou nenhuma decisão judicial, designadamente dos
tribunais superiores, que tivesse sido proferida e fosse cognoscível por parte
dos profissionais forenses, à data em que foram deduzidos os embargos de
executado, e que tivesse perfilhado a tese que foi assumida pelo tribunal a quo,
na sua sentença de 8 de Setembro de 2004. A única decisão encontrada, que se
aproxima dessa tese, é posterior à data dessa sentença: trata‑se do Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de Outubro de 2004, proc. 5752/2004, que
decidiu, sem citar qualquer jurisprudência anterior no mesmo sentido, que “nos
embargos à execução fundada em injunção, só podem ser suscitadas questões que
não pudessem ter sido suscitadas em sede de oposição ao requerimento de injunção
ou que sejam de conhecimento oficioso”.
As duas decisões judiciais citadas na dita sentença não apoiam a
tese nela adoptada: o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17 de
Fevereiro de 2004, proc. 1566/2004, versa sobre questão diversa (admissibilidade
de indeferimento liminar da execução para pagamento de quantia certa fundada em
título resultante da aposição da fórmula executória a um requerimento de
injunção), e o acórdão da mesma Relação, de 18 de Junho de 2003, proc. 3884/2003
(com texto integral disponível, tal como os dois acórdãos anteriormente
citados, em www.dgsi.pt/jtrl), embora reportado a título executivo diverso
(certidão de dívida a instituições e serviços públicos integrados no Serviço
Nacional de Saúde, por serviços e tratamentos prestados, emitida nos termos do
Decreto‑Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro), sustenta mesmo tese de sinal oposto
à que veio a ser adoptada na sentença de que se intenta interpor recurso para o
Tribunal Constitucional. Lê‑se nesse acórdão:
“Alega o recorrente que a certidão de dívida que serviu de base à execução
tem força executiva em relação à executada/embargante, por obedecer aos
requisitos para ela previstos no Decreto‑Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, e,
sendo título executivo válido e eficaz, cabia a esta, para os embargos
procederem, o ónus de alegar e provar factos modificativos ou extintivos da
obrigação invocada, o que ela não fez.
Da certidão junta aos autos de execução consta como responsável pelas
importâncias devidas pelos actos médicos nela discriminados a ora embargante.
Porém, o facto de a embargante figurar na certidão como devedora isso não
significa que ela seja a verdadeira responsável pelo pagamento da dívida, ou que
não se possa discutir na execução que lhe foi movida pelo exequente, ora
apelante, se ela é, de facto, a responsável pelo cumprimento da obrigação
titulada por aquele documento.
(...)
Mas se o título é, para além do mais, a demonstração do direito substancial
do exequente, ela não tem a mesma força relativamente a todos os títulos
executivos. Uma sentença condenatória, transformada em título executivo, tem um
grau de demonstração ou de aparência do direito substancial do exequente muito
superior ao que se verifica em relação aos demais títulos executivos. Daí que os
meios de oposição à execução baseada em sentença (previstos no artigo 813.º do
CPC) sejam mais restritivos do que os previstos para a oposição à execução
baseada noutros títulos (artigo 815.º do CPC).
Diz‑se no n.º 1 deste último preceito que «se a execução não se basear em
sentença, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 813.º, na
parte em que sejam aplicáveis, podem alegar‑se quaisquer outros que seria lícito
deduzir como defesa em processo de declaração». E compreende‑se que assim seja,
já que o executado não teve oportunidade de, em acção declarativa prévia, se
defender amplamente da pretensão do exequente.
Os embargos de executado funcionam nestes casos como uma contra‑acção que
tem como escopo destruir os efeitos do título, o que se conseguirá se, através
da sentença, for decidido que o pretenso direito de crédito do exequente não
existe. «A relação jurídica substancial que até aí era impotente para abafar a
eficácia do título executivo, afirma agora o seu predomínio e afirma‑o por
intermédio da sentença proferida no processo de oposição, que é um verdadeiro
processo (...) declarativo» (cfr. Alberto dos Reis, Processo de Execução, I,
1985, pág. 111), instrumental e auxiliar da execução.
Sendo assim, espelhando o título executivo, nestes casos, não a certeza do
direito do exequente mas tão‑só uma forte probabilidade ou aparência dele,
quanto à sua substância, sempre que o executado – accionado na base de um título
dessa espécie – questione, em sede de oposição, a existência desse direito, é
ao exequente, que se arroga a existência do direito substancial espelhado no
título que compete provar os elementos constitutivos desse direito – artigo
342.º, n.º 1, do Código Civil (cfr. Acórdãos da Relação do Porto, de 10 de
Outubro de 1995, Colectânea de Jurisprudência, 1995, tomo 4.º, pág. 215; da
Relação de Évora, de 10 de Julho de 1997, Colectânea de Jurisprudência, 1997,
tomo 4.º, pág. 268; e Anselmo de Castro, Acção Executiva, pág. 46; e Manuel de
Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 61).”
Conclui‑se, assim, que a sentença em causa nestes autos adoptou
um entendimento que, face aos textos legais e aos pronunciamentos doutrinais e
jurisprudenciais cognoscíveis à data da sua prolação, não podia deixar de ser
considerada como uma decisão‑surpresa. E que, aliás, se mostra desconforme com
o fundamento, utilizado pelo Tribunal Constitucional, designadamente nos
Acórdãos n.ºs 394/95 e 398/95, para não julgar inconstitucional a norma do
artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 404/93, que previa, no caso de falta de oposição
ou de desistência da mesma, a aposição de fórmula executória no requerimento de
injunção, quando consignou que:
“E, mesmo nos casos em que é aposta a fórmula executória na providência de
injunção, nem por isso também lhe [ao executado] fica vedada a possibilidade de
se opor à futura acção executiva baseada naquele título, de harmonia com as
disposições do artigo 815.º do Código de Processo Civil (onde releva a
possibilidade de lançar mão dos fundamentos de oposição que ao executado seria
lícito deduzir como defesa no processo declarativo como modo de, livremente,
impugnar a existência e exigibilidade da obrigação), razão pela qual, logo por
aqui, se há‑de concluir não impedir a normação em apreço, quer a efectivação dos
meios de defesa, quer o asseguramento do princípio do contraditório que, mesmo
em processo civil, deflui dos artigos 2.º e 20.º do Diploma Básico.”
5. Assente que a decisão de que se pretendia interpor recurso
para o Tribunal Constitucional constituiu uma decisão-surpresa, tem de se
considerar que, no caso, por um lado, não era exigível que a recorrente, para
assegurar a abertura daquela via de recurso, tivesse de suscitar a questão de
inconstitucionalidade, perante o tribunal recorrido, antes de esgotado o
respectivo poder jurisdicional, e, por outro lado, que a circunstância de ter
deduzido incidente pós‑decisório, aliás legalmente incabível, e de nele não ter
suscitado, em termos processualmente adequados, a questão de
constitucionalidade que pretendia ver apreciada, não pode ter o efeito
colateral de fazer precludir aquele direito de acesso à justiça constitucional,
até porque, mesmo que a questão aí tivesse sido correctamente equacionada pela
recorrente, isso em nada alteraria a constatação de que jamais o tribunal
recorrido poderia, no âmbito do pedido de reforma da sentença, apreciar a
questão de constitucionalidade, por a aplicação de norma alegadamente
inconstitucional, podendo constituir erro de julgamento, não equivaler a
ocorrência de “manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicada ou na
qualificação jurídica dos factos”, que implicasse a reabertura do poder
jurisdicional do tribunal.
Trata‑se de situação similar à que foi objecto de tratamento nos
Acórdãos n.ºs 74/2000 e 155/2000, ambos versando sobre casos em que, não tendo
sido suscitado a questão de inconstitucionalidade das normas aplicadas na
decisão recorrida antes da prolação desta, mas sendo de qualificar como
inesperada tal aplicação, se entendeu que a circunstância de terem sido
apresentados pedidos de aclaração da decisão sem suscitação da questão de
inconstitucionalidade não precludia o direito de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, sendo a questão de constitucionalidade definida, pela
primeira vez, no respectivo requerimento de interposição.
Como se disse no Acórdão n.º 74/2000 – cuja fundamentação o
Acórdão n.º 155/2000 reiterou –:
“(...) tendo em conta que a eventual aplicação de norma inconstitucional não
constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna
obscura ou ambígua, o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a
reclamação com fundamento na sua nulidade não constituem, já, em regra, meios
idóneos e atempados para suscitar a questão de constitucionalidade (cfr., neste
sentido, entre tantos outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da
República, II Série, n.º 140, de 20 de Junho de 1995, pág. 6751 e seguintes).
Não pode, por isso, e contrariamente ao que sustenta o Supremo Tribunal de
Justiça no despacho aqui sob reclamação, fazer‑se recair sobre a parte o ónus de
suscitar uma questão de constitucionalidade normativa quando formula um pedido
de aclaração da decisão proferida.
Ou, dito de outro modo: no caso em apreciação, considerando que a decisão do
Supremo Tribunal de Justiça configura uma autêntica «decisão‑surpresa», o
recorrente tanto poderia ter invocado a questão de inconstitucionalidade no
pedido de aclaração como no requerimento de interposição do recurso para o
Tribunal Constitucional. De qualquer modo, encontrava‑se já esgotado o poder
jurisdicional do tribunal recorrido. Mas o recurso de constitucionalidade teria
de ser admitido precisamente porque o recorrente não teve oportunidade
processual para, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido,
suscitar a questão.
Neste sentido, há que reconhecer que, nas circunstâncias do processo, não era
razoável exigir ao recorrente o ónus de considerar antecipadamente a
interpretação normativa adoptada na decisão, atento o seu cariz imprevisível,
anómalo ou insólito. E, por outro lado, face ao teor do acórdão que indeferiu o
pedido de aclaração, tornou‑se evidente que a questão não se podia reconduzir a
uma nulidade por omissão de pronúncia, pelo que também não era exigível a
suscitação da questão de constitucionalidade em requerimento que invocasse tal
nulidade.”
Similarmente, também se entende que, no presente caso, a não
suscitação adequada da questão de inconstitucionalidade no pedido de reforma da
sentença não teve por efeito a perda do direito que, perante a natureza
inesperada da interpretação normativa nela aplicada, assistia à recorrente de
recorrer para o Tribunal Constitucional com dispensa desse requisito específico
do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o que conduz ao
deferimento desta reclamação.
6. Considerando, porém, que a decisão de deferimento da
reclamação faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso (artigo 77.º,
n.º 4, da LTC), impõe‑se uma última precisão, face à não rigorosa coincidência
entre a dimensão normativa aplicada na sentença recorrida e a dimensão normativa
identificada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade.
Segundo este requerimento, a objecto do recurso é definida como
consistindo na “norma do artigo 14.º do Regime anexo ao Decreto‑Lei n.º 269/98,
de 1 de Setembro, com a interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, no
sentido de que, não tendo havido oposição a uma providência de injunção, não é
possível ao executado, em sede de oposição à execução decorrente da aposição da
fórmula executória por uma entidade não jurisdicional, alegar todos os
fundamentos que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de
declaração”. No entanto, a interpretação aplicada na sentença impugnada não
assume toda esta extensão; o que aí se entendeu – embora se reconheça que nem
todas as passagens da sentença sejam perfeitamente unívocas – foi que, por um
lado, por o título em causa ter adquirido “um grau de aparência e abstracção”,
se torna “desnecessária a prova do direito alegado pelo requerente/exequente”, e
que, por outro lado, por o requerido não ter deduzido oposição ao requerimento
de injunção, “o direito alegado tem‑se por demonstrado”, daqui derivando que
cabe “ao embargante a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos ou
extintivos do direito alegado”, isto é, “não basta impugnar, pois tal defesa já
deveria ter sido deduzida em fase anterior”. Do exposto resulta que o critério
normativo aplicado na sentença de que se pretendeu interpor recurso foi o de
que, na execução baseada em título que resulta da aposição da fórmula
executória a um requerimento de injunção, o executado apenas pode fundar a sua
oposição na alegação e prova, que lhe incumbe, de factos impeditivos,
modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente, direito que se
tem por demonstrado. Não se tratando de uma dimensão normativa
qualitativamente diversa da identificada no requerimento de interposição de
recurso de constitucionalidade, mas apenas de uma dimensão mais restrita (a
sentença diz que o executado pode usar alguns, mas não todos, os fundamentos que
lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração), não estamos
perante situação que justifique a não admissão de recurso por falta de
coincidência entre a dimensão normativa efectivamente aplicada e a identificada
no requerimento de recurso, mas tão‑só de redução desta última aos precisos
contornos daquela.
7. Em face do exposto, acordam em deferir a presente reclamação,
devendo o recurso de constitucionalidade ser admitido com o âmbito atrás
realçado.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2005
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos