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Processo n.º 912/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A., SA, instaurou, em 6 de Abril de 2005, no Tribunal
Administrativo e Fiscal (TAF) de Viseu, “processo urgente de intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias”, nos termos dos artigos 109.º a
111.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei
n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro (CPTA), contra o INGA – Instituto Nacional de
Intervenção e Garantia Agrária, pedindo a intimação do requerido para que se
abstenha de proceder à execução da garantia bancária no valor de € 233 255,68,
com a ref.ª 125‑02‑0087086, de 15 de Julho de 1999, do BANCO b., SA, até ao
trânsito em julgado da decisão final na acção administrativa especial (n.º
312/2001) de impugnação da deliberação do Conselho de Administração do INGA, de
15 de Outubro de 2004, que lhe determinou a reposição da quantia de € 1 885
881,98, relativa a ajuda comunitária, considerada indevidamente recebida. Para
fundamentar esse pedido, aduziu, em suma, o seguinte: (i) em 11 de Janeiro de
2005, intentou a referida acção administrativa especial, que ainda não foi
decidida; (ii) em 18 de Janeiro de 2005, como incidente dessa acção, interpôs
processo cautelar de suspensão de eficácia, que foi indeferido por decisão
proferida em 25 de Fevereiro de 2005, que ainda não transitou em julgado,
encontrando‑se pendente recurso no Tribunal Central Administrativo Norte
(TCAN); (iii) em 29 de Março de 2005, o requerido interpelou o referido Banco
para, ao abrigo da mencionada garantia, pagar a quantia de € 233 244,68, por
alegado incumprimento por parte do afiançado do contrato respectivo; (iv)
existe fundado receio de constituição de uma situação de facto consumado a
partir de uma decisão administrativa ilegal e ilícita (ferida de nulidade por
ofender o conteúdo essencial de direito fundamental), que será causa provável de
prejuízos de difícil reparação, designadamente no seu direito ao bom nome e
reputação, inexistindo interesse público legítimo em executar (ao menos até
decisão final de improvimento da acção de impugnação do acto administrativo
ilegal) o que já está garantido.
Por sentença de 13 de Maio de 2005 do TAF de Viseu o
pedido de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias foi
indeferido por, dispondo o artigo 109.º, n.º 1, do CPTA que essa intimação pode
ser requerida “quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à
Administração a adopção de uma conduta positiva ou negativa se revele
indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito,
liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do
caso, o decretamento provisório de uma providência cautelar”, no caso não se
verificava o requisito legal constante da parte final deste preceito, já que
“para protecção dos direitos, liberdades e garantias enunciados pela requerente
teria sido possível e suficiente o decretamento provisório de pedido cautelar,
designadamente antecipatório (intimação para abstenção de uma conduta por parte
do ora requerido)”.
A requerente interpôs recurso desta sentença para o
TCAN, alegando, além do mais, que “a dimensão normativa encontrada para a norma
contida no artigo 109.º do CPTA, na interpretação restritiva aplicada pela
sentença recorrida, padece de inconstitucionalidade material por contravenção do
disposto nos artigos 20.º, n.º 5, e 26.º da Constituição da República
Portuguesa”.
Por acórdão de 29 de Setembro de 2005 do TCAN foi negado
provimento a esse recurso jurisdicional, tendo, no que concerne à questão de
inconstitucionalidade suscitada, sido expendido o seguinte:
“3.2.2. Invoca a recorrente, como fundamento material de
recurso, que a decisão recorrida contraria o que decorre dos artigos 109.º do
CPTA e 20.º, n.º 5, e 26.º, ambos da CRP, já que, segundo sustenta, «(…) a
interpretação restritiva aplicada pela sentença recorrida (…)» (a propósito da
previsão e âmbito do artigo 109.º do CPTA) «(…) padece de inconstitucionalidade
material por contravenção do disposto nos artigos 20.º, n.º 5, e 26.º da
Constituição da República Portuguesa».
Vejamos da pertinência da tese sustentada pela recorrente.
Decorre do artigo 109.º, n.º 1, do CPTA que: «A intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a
célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adopção de
uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o
exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser
possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório
de uma providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º».
Este meio processual de intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias, regulado nos artigos 109.º a 111.º do CPTA, destina‑se
a dar cumprimento à exigência ditada pelo artigo 20.º, n.º 5, da CRP quando nele
se estatui que para «(…) defesa dos direitos, liberdades e garantais pessoais, a
lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade
e prioridade, de modo a obter a tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças
ou violações desses direitos», normativo este que constitui uma das mais
relevantes inovações introduzidas pela Lei Constitucional n.º 1/97 (cf. Maria
Fernanda Maçãs, “As formas de tutela urgente previstas no Código de Processo
nos Tribunais Administrativos”, Revista do Ministério Público, ano 25.º, n.º
100, Outubro/Dezembro 2004, pp. 41 e seguintes, em especial pp. 48 a 53; e Mário
Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª
edição, pp. 273 e 274).
Note‑se que no n.º 5 do referido normativo não está em questão a
criação de um qualquer meio cautelar, porquanto o que se visa seria a
concretização de um direito a processos céleres e prioritários, de molde a
obter‑se uma eficaz e atempada protecção jurisdicional contra ameaças ou
atentados aos direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos.
Com efeito, do comando constitucional em referência decorre a
exigência de um programa completo de instrumentos processuais que integralmente
satisfaçam a necessidade da tutela efectiva de quaisquer direitos ou interesses
legalmente protegidos.
O que essencialmente se pretende é que a justiça, no caso a justiça
administrativa, tenha sempre resposta, em termos procedimentais, à solicitação
de tutela de direitos ou interesses; trata‑se, afinal, de fazer corresponder a
todo o direito uma acção adequada a fazê‑lo reconhecer em juízo (cf. artigo 2.º,
n.º 2, quer do CPTA quer do CPC).
Já, porém, o comando constitucional não condiciona o legislador,
respeitado que se mostre o modelo organizatório judicialista e a tutela
efectiva dos direitos dos administrados, na sua opção pelas fórmulas de
instituição da justiça administrativa e, muito menos, na articulação dos
diversos meios processuais que disponibiliza ao administrado ou na fixação de
pressupostos processuais de cada um deles, de que eventualmente resulte a
preferência por um determinado meio que, em concreto, assegure a tutela
efectiva, reclamada, do direito ou do interesse.
Não pode e não se extrai da previsão do artigo 20.º, n.º 5, na sua
conjugação com o artigo 268.º, n.ºs 4 e 5, ambos da CRP, que o legislador
constitucional tenha pretendido uma duplicação dos mecanismos contenciosos
utilizáveis, porquanto o que ressalta dos mesmos comandos é que qualquer
procedimento da Administração que produza uma ofensa de situações
juridicamente reconhecidas tem de poder ser sindicado jurisdicionalmente.
É nesta total abrangência da tutela jurisdicional que se traduz a
plena efectivação das garantias jurisdicionais dos administrados, não se
enquadrando necessariamente nesta ideia de total garantia jurisdicional uma
duplicação ou alternatividade de instrumentos e/ou meios processuais de reacção
a uma dada actuação da Administração.
Daí que, seguindo os ensinamentos de J. J. Gomes Canotilho (Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª edição, pp. 499 e 500), estamos em
presença de um «(…) direito constitucional de amparo de direitos a efectivar
através das vias judiciais normais (…)» (vide ainda do mesmo ilustre Professor,
Estudos sobre Direitos Fundamentais, 2004, p. 79).
Como doutamente se sustentou, a propósito da previsão do artigo
109.º do CPTA, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 18 de
Novembro de 2004 (Proc. n.º 978/04 – in www.dgsi.pt/jsta), cuja jurisprudência
e entendimento aqui se acolhem:
«(…) Pretendeu‑se consagrar uma tutela jurisdicional reforçada nas
situações tipificadas no já mencionado preceito, deste modo vincando a posição
do cidadão como sujeito de direitos e liberdades, dando a tais direitos,
liberdades e garantias um estatuto de “prefered position” (…).
Podemos, assim, encarar o regime acolhido nos já referidos artigos
109.º a 111.º do CPTA como uma clara manifestação da incidência e projecção de
uma parcela nuclear do Direito Constitucional sobre institutos de Direito
Processual Administrativo, assumindo‑se, por isso, o contencioso administrativo
como um dos elementos de garantia dos direitos fundamentais.
Os mencionados preceitos concedem ao juiz administrativo um poder de
injunção, ainda que limitado às situações em que esteja em causa a protecção de
direitos, liberdades e garantias, habilitando‑o a adoptar todas as medidas
necessárias a salvaguardar o exercício, em tempo útil, dos direitos, liberdades
e garantias, deste modo o dotando dos meios de acção indispensáveis a assegurar
a defesa das “liberdades” dos “particulares”.
O legislador ordinário, dando cumprimento à imposição veiculada no
n.º 5 do artigo 20.º do CRP, procedeu à revalorização fundamental do papel do
juiz administrativo no campo da protecção dos direitos, liberdades e garantias,
dando‑lhe meios para obviar, rápida e eficazmente, às ameaças aos direitos,
liberdades e garantias.
O interessado que pretenda aceder à via contenciosa mediante o
pedido de intimação deverá invocar a lesão, ou ameaça de lesão, dos seus
direitos, liberdades ou garantias, devendo formular o seu pedido contra o ente
público de que proceda o acto ou omissão que ponha em risco ou atente contra os
direitos, liberdades e garantias, podendo, também, formular o pedido contra
particulares, designadamente concessionários, quando vise suprir a omissão por
parte da Administração das providências adequadas a prevenir ou reprimir
condutas lesivas dos direitos, liberdades e garantias do interessado (cf. n.º 2
do artigo 109.º do CPTA).
Temos, assim, que a pretensão terá de fundar‑se na lesão ou ameaça de lesão de
um direito, liberdade ou garantia, o que, de resto, deve ser devidamente
referenciado pelo interessado na sua petição. (…).»
Como refere Maria Fernanda Maçãs (local citado, p. 50): «(…) Com a actual
reforma, o legislador atenua de algum modo (…) críticas, consagrando este
mecanismo de defesa dos direitos fundamentais contra actos administrativos. Na
verdade, as violações aos direitos fundamentais vêm sobretudo da Administração,
na medida em que continua a ser o poder estadual que convive mais de perto com
os cidadãos e daí a maior susceptibilidade de lesar os seus direitos. (…)».
Para além disso, temos que o legislador não restringiu este meio
processual aos direitos, liberdades e garantias pessoais, como estabelece o
artigo 20.º, n.º 5, da CRP visto que o seu âmbito abarca os direitos, liberdades
e garantias do Título II da Parte I da CRP, incluindo os de natureza análoga
(artigo 17.º da CRP), pelo que se consideram abarcados no seu âmbito os direitos
de natureza análoga dispersos na CRP e fora do catálogo (cf., neste sentido,
Maria Fernanda Maçãs, local citado, p. 50).
Ora, o conteúdo do pedido do requerente (pessoa individual ou
colectiva) a deduzir no âmbito deste meio contencioso será a condenação do
requerido (Administração e particulares, em especial concessionários) na
adopção de uma conduta positiva ou negativa, que poderá, inclusivamente,
traduzir‑se na prática de um acto administrativo, tal como resulta do disposto
no artigo 109.º, n.ºs 1 e 3, do CPTA (cf. Mário Aroso de Almeida, obra citada,
p. 276; e José Carlos Vieira de Andrade, obra citada, pp. 258 e 259).
Seguindo aqui a doutrina desenvolvida por José Carlos Vieira de
Andrade (obra citada, pp. 259/260) são pressupostos do pedido de intimação os
seguintes:
a) A necessidade de emissão urgente de uma decisão de fundo do
processo que seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou
garantia;
b) Que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de
uma providência cautelar, no âmbito de uma acção administrativa normal (comum
ou especial) (cf. Acórdão do STA, de 18 de Novembro de 2004, Proc. n.º 978/04,
in www.dgsi.pt/jsta; e João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 7.ª
edição, p. 351).
Frise‑se que não nos encontramos no domínio da tutela cautelar,
visto que a tutela que proporciona o pedido de intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias se insere num processo de fundo que visa a
obtenção, em tempo útil e por isso com carácter de urgência, de uma pronúncia
definitiva sobre a relação jurídico‑administrativa em questão (cf. Mário Aroso
de Almeida, obra citada, pp. 274 e 275; e João Caupers, obra citada, pp. 347 a
349).
Todavia, importa ter presente que se trata de meio contencioso que
se caracteriza pela sumariedade e urgência, de molde a que se obtenha o seu
desiderato, ou seja, «uma protecção rápida e contundente ao legítimo exercício
de um direito, liberdade ou garantia frente a qualquer tipo de ameaças,
restrições, lesões ou violações, provenientes, designadamente, da actuação ou
omissão da Administração» (vide citado Acórdão do STA, de 18 de Novembro de
2004, Proc. n.º 978/04).
Por outro lado, e tal como sustenta Maria Fernanda Maçãs a
propósito do requisito relativo à necessidade urgente de uma decisão de mérito
indispensável para assegurar, em tempo útil, a protecção de um direito,
liberdade e garantia (local citado, p. 51):
«(…) Quando o legislador fala em “decisão de mérito indispensável
…” cremos que a indispensabilidade não equivale aqui a irreversibilidade ou
iminência de lesão. Isto porque é no n.º 1 do artigo 111.º que o legislador faz
equivaler as situações de especial urgência à possibilidade de lesão iminente e
irreversível do direito, liberdade e garantia, (…).
Assim sendo, podemos dizer que em termos correntes e normais
bastará, por conseguinte, a invocação da necessidade de assegurar o pleno e útil
exercício do direito, liberdade e garantia em causa.
A indispensabilidade não constitui, pois, sinónimo de urgência
qualificada, antes corresponde à necessidade de usar a intimação por não ser
possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, assegurar o exercício de um
direito, liberdade e garantia, em tempo útil, através de outro meio,
designadamente o decretamento provisório de uma providência cautelar. (…).»
Feita que foi esta breve incursão sobre a temática da intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias e sobre a amplitude e contornos
do direito/garantia constitucional à tutela jurisdicional efectiva, importa,
agora, reverter ao caso em análise, aferindo da bondade da interpretação e
entendimento sustentado na decisão recorrida.
Temos, para nós, que a argumentação da recorrente é manifestamente
improcedente, constituindo uma interpretação que, essa sim, será violadora dos
normativos em crise.
Com efeito, conforme resulta da factualidade apurada e documentos
insertos nos autos (cf. fls. 93 a 105), a recorrente, no uso dos meios
contenciosos previstos no ordenamento jurídico‑administrativo, lançou mão da
acção administrativa especial e da acção cautelar a ela apensa tendente à
obtenção do reconhecimento do direito que invoca ser titular, vindo, agora, com
a dedução deste meio contencioso principal reclamar o reconhecimento do mesmo
direito que ali havia sido invocado.
No entender da recorrente, a lei processual faculta‑lhe tal direito,
pelo que a interpretação sustentada na decisão judicial recorrida é violadora
daqueles normativos supra elencados.
Tal posicionamento interpretativo não pode ser minimamente aceite
porquanto se traduz num uso em duplicado dos meios contenciosos legalmente
tipificados ou numa duplicação da tutela jurisdicional para além do que se
mostra consagrado e é legítimo inferir, à luz dos considerandos supra tecidos a
este propósito, dos artigos 20.º, n.º 5, e 268.º, n.ºs 4 e 5, da CRP.
Decorre duma correcta interpretação dos normativos em crise (cf.
artigos 20.º, 26.º e 268.º da CRP e 2.º, 109.º e 112.º e seguintes do CPTA) que
os meios contenciosos em presença e confronto não estão colocados numa posição
de alternatividade ou de cumulatividade, nem é aceitável, à luz do que é, em
nosso entendimento, a clara intenção do legislador, que a improcedência da
tutela cautelar traduzida numa pronúncia de mérito sobre tal pretensão
legitime, numa «segunda volta», o uso ainda de mais este meio contencioso de
tutela principal e definitiva para obtenção da satisfação do alegado direito ou
interesse lesado quando a tutela jurisdicional estava a ser efectivada com
recurso à acção administrativa, no caso especial, em conjugação com a acção
cautelar.
Não é no caso sustentável uma duplicação da tutela judicial através
da dedução dum pedido como o sub judice, nem o legislador constitucional nos
normativos invocados pela recorrente permite/autoriza ou sequer impõe ao
legislador ordinário a consagração de um regime de cumulação ou dedução
alternativa dos meios ou instrumentos contenciosos aludidos.
Na verdade, não é pelo facto de a recorrente não ter obtido a
satisfação da pretensão cautelar deduzida, que, recorde‑se, foi indeferida com
fundamento em pronúncia de mérito (não verificação dos requisitos enunciados no
artigo 120.º do CPTA), confirmada, aliás, por acórdão deste mesmo Tribunal
datado de 7 de Julho de 2005 (Proc. n.º 132/05.9BEVIS), que, agora, está
legitimada a instaurar o meio contencioso previsto nos artigos 109.º e seguintes
do CPTA.
O uso do presente meio contencioso principal, com o qual se obtém
uma pronúncia judicial final definitiva, exige para a sua procedência que se
mostrem verificados in casu os requisitos supra enumerados, ou seja, a
necessidade de emissão urgente de uma decisão de fundo do processo que seja
indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia e que não
seja possível ou suficiente o decretamento provisório de uma providência
cautelar no âmbito de uma acção administrativa (cf. artigos 109.º e 131.º do
CPTA).
Tais requisitos ou exigências, à luz do modo como foram
interpretados pela M.ma Juiz a quo na decisão judicial recorrida, não contendem
ou afectam minimamente os normativos constitucionais invocados pela recorrente,
já que, repita‑se, não é pelo facto de ter «falhado» a tutela cautelar nos
termos em que tal ocorreu no caso que a recorrente está agora legitimada à
instauração do meio previsto no artigo 109.º do CPTA ou pode ver aberta a porta
da tutela jurisdicional através do referido meio, pois este meio contencioso
não se mostra numa relação de alternatividade ou de cumulatividade sucessiva
por referência com os demais meios contenciosos previstos no CPTA.
Não foi, nem é essa, manifestamente, a intenção do legislador
constitucional, nem aquela que, em cumprimento escrupuloso daquele
desiderato, foi consagrada no CPTA (artigos 109.º e seguintes) pelo legislador
ordinário na definição do actual regime de tutela jurisdicional em sede de
contencioso administrativo.
Impunha‑se, por conseguinte, o indeferimento do presente pedido de
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias deduzido pela aqui
recorrente, o que doutamente foi decidido na e pela decisão judicial em recurso
e que, assim, importa confirmar com todas as legais consequências.”
É contra este acórdão que, pela mesma recorrente, vem
interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos
artigos 20.º, n.º 5, e 26.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), da
norma do artigo 109.º do CPTA, “na dimensão normativa aplicada pelo acórdão
recorrido”.
A recorrente apresentou alegações, formulando, a final,
as seguintes conclusões:
“1) A concreta dimensão normativa encontrada para a norma contida no
artigo 109.º do CPTA, na interpretação restritiva aplicada pela sentença [sic]
recorrida, impõe uma restrição desproporcionada e excessiva ao acesso ao
direito e tutela jurisdicional efectiva.
2) Violando o disposto nos artigos 20.º, n.º 5, e 26.º da
Constituição da República Portuguesa;
3) Deverá, por isso, vir julgada inconstitucional, com as demais
consequências legais.”
O recorrido INGA contra‑alegou, concluindo:
“1.ª – Apesar de o presente recurso ter sido interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, deve ser completamente irrelevante a
verificação dos requisitos de admissibilidade exigidos por este normativo,
porquanto não se está perante uma decisão de um Tribunal que possa ser
enquadrada na referida alínea.
2.ª – De facto, o acórdão recorrido, ao indeferir o pedido de
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ao qual a
recorrente entendia ter direito, não aplicou a norma, cuja interpretação foi
arguida de ser contrária à Constituição, mas, antes, recusou o uso daquele meio
contencioso concedido pela norma em questão, por não se mostrarem verificados
os requisitos para a sua procedência.
3.ª – Assim, no entender do recorrido, o que importa para o
conhecimento do presente recurso, por este douto Tribunal, será descortinar se
a recusa da aplicação da norma em questão – artigo 109.º do CPTA – foi com
fundamento em inconstitucionalidade, porque, caso contrário, não poderá
conhecer do mesmo.
4.ª – Ora, salvo melhor entendimento, resulta da leitura do acórdão
recorrido que a decisão que recusou a aplicação da norma contida no referido
artigo 109.º do CPTA não foi com fundamento em inconstitucionalidade, mas terá
resultado da não verificação in casu dos requisitos exigidos para a sua
procedência.
5.ª – Nestes termos, entende o recorrido que o Tribunal não deve
conhecer do presente recurso, por falta do requisito previsto na alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC, e que, por o mesmo ser inadmissível, ao abrigo do
n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC, é permitida a prolação de decisão sumária.
6.ª – Quanto à questão da inconstitucionalidade suscitada pela
recorrente, a qual decorreria da interpretação normativa, feita pelo Tribunal
Central Administrativo Norte, da disposição do artigo 109.º do CPTA, que se
afigura inconstitucional por violação das normas constantes nos artigos 20.º,
n.º 5 (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e 26.º (Outros
direitos pessoais) da Constituição da República Portuguesa, no entendimento do
recorrido, tal questão mostra‑se manifestamente infundada.
7.ª – Na verdade, não só no acórdão recorrido não foi feita a
alegada interpretação restritiva, desproporcionada e excessiva ao acesso ao
direito e tutela jurisdicional efectiva, para o indeferimento do pedido de
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, mas,
independentemente de quaisquer interpretações que possam ser feitas, constitui
orientação unívoca desse douto Tribunal de que, salvo o caso de sentença penal
condenatória (e, eventualmente, quando estejam em causa direitos, liberdades e
garantias), o direito de acesso à justiça consignado no artigo 20.º da
Constituição não garante necessariamente, em todos os casos e por si só, o
direito a um duplo grau de jurisdição: garante sim, a todos e sem discriminação
de ordem económica, o acesso à via judiciária correspondente a um grau de
jurisdição.
8.ª – De facto, para protecção de direitos, liberdades e garantias,
e para assegurar, em tempo útil, a defesa dos mesmos, contra quaisquer ameaças
ou lesões, apenas deve ser utilizado o pedido de intimação como o meio
processual indicado, desde que este seja indispensável para assegurar aquela
protecção, e que não seja possível ou suficiente o decretamento provisório de
uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa (cf. artigos
109.º e 131.º do CPTA).
9.ª – Nestes termos, o acórdão recorrido decidiu bem, fazendo uma
correcta interpretação do artigo 109.º do CPTA, ao recusar o pedido de
intimação, por não se verificarem os requisitos para a sua procedência, uma vez
que a recorrente já tinha lançado mão de outro meio processual, o cautelar, o
qual teria sido suficiente para assegurar a tutela efectiva do alegado direito
ou interesse lesado, não fora o seu indeferimento com fundamento em pronúncia
de mérito (não verificação dos requisitos enunciados no artigo 120.º do CPTA).
10.ª – Com efeito, não é pelo facto de a recorrente não ter obtido a
satisfação da pretensão cautelar deduzida que, então, estaria legitimada a
instaurar o meio contencioso previsto nos artigos 109.º e seguintes do CPTA.
11.ª – Entende, pois, o recorrido, que tanto bastará para se
considerar manifestamente infundada a questão da inconstitucionalidade suscitada
pela recorrente, podendo‑se concluir pela inatendibilidade dos fundamentos do
presente recurso alegados pela mesma.”
Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia
suscitada nas contra‑alegações do recorrido, a recorrente respondeu sustentando
o seu improvimento por, sendo o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, a decisão recorrida aplicou (emitindo um juízo de
conformidade constitucional da mesma) a norma cuja inconstitucionalidade havia
sido suscitada pela recorrente durante o processo.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Sustenta o recorrido que, tendo o presente recurso
sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o mesmo
seria inadmissível por a decisão recorrida, ao indeferir o pedido de intimação
formulado, não ter aplicado a norma (do artigo 109.º, n.º 1, do CPTA) cuja
inconstitucionalidade fora suscitada, e, por outro lado, não se baseando a
recusa de aplicação dessa norma num juízo de inconstitucionalidade da mesma (mas
antes num juízo de não verificação dos requisitos exigidos para a sua
aplicação), também o recurso seria inadmissível mesmo se interposto ao abrigo
da alínea a) daquele preceito.
Não é, porém, assim.
A recorrente suscitou a inconstitucionalidade de uma
interpretação (que apelidou de “restritiva”, mas que, em rigor, é susceptível
de ser considerada como meramente “declarativa”) da norma do n.º 1 do artigo
109.º do CPTA no sentido de que é inadmissível o recurso ao processo de
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias se o interessado
dispôs da possibilidade de obter o decretamento provisório de providência
cautelar que determinaria a abstenção, por parte do recorrido, da conduta (no
caso, a execução da garantia bancária) alegadamente lesiva de um seu “direito,
liberdade e garantia”.
Neste contexto, ao indeferirem a intimação requerida por
entenderem que, por falta do requisito mencionado na parte final do n.º 1 do
artigo 109.º do CPTA, a situação da requerente não estava abrangida pela
previsão desse preceito, as decisões das instâncias aplicaram, como ratio
decidendi, a “interpretação normativa restritiva” que a ora recorrente apodara
de inconstitucional.
Nestes termos, estão preenchidos os requisitos de
admissibilidade do recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC,
improcedendo a questão prévia suscitada na contra‑alegação do recorrido.
2.2. O processo de intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias, regulado nos artigos 109.º a 111.º do CPTA, é, conforme
tem sido salientado pela doutrina, uma das novidades absolutas da recente
reforma do contencioso administrativo português (cf. José Carlos Vieira de
Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 7.ª edição, Coimbra, 2005, pp.
261‑267, e “A protecção dos direitos fundamentais na justiça administrativa
reformada”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134.º, n.º 3929, 1
de Dezembro de 2001, pp. 226‑235, em especial pp. 229‑232; Mário Aroso de
Almeida, “Breve introdução à reforma do contencioso administrativo”, Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 32, pp. 3‑10, em especial p. 8, e O Novo Regime do
Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, Coimbra, 2004, pp. 273‑279;
Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código
de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, pp. 535‑549; Isabel
Fonseca, Dos Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo (Função e
Estrutura), Lisboa, 2004, pp. 75‑86; Maria Fernanda Maçãs, “As formas de tutela
urgente previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Revista
do Ministério Público, ano 25.º, n.º 100, Outubro/Dezembro 2004, pp. 41‑70, em
especial pp. 48‑53; Carla Amado Gomes, “Pretexto, contexto e texto da intimação
para protecção de direitos, liberdades e garantias”, in Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. V, Coimbra, 2003, pp. 541‑577; e
“Intimação para protecção de que direitos, liberdades e garantias?” (anotação ao
acórdão do STA de 18 de Novembro de 2004, P. 978/04), Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 50, Março/Abril 2005, pp. 32‑43; e Sofia David, Das
Intimações – Considerações sobre uma (nova) tutela de urgência no Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, pp. 107‑137).
Visando dar execução ao comando constitucional do artigo
20.º, n.º 5, da CRP (introduzido pela revisão constitucional de 1997), ampliou
mesmo o seu alcance, ao abarcar como objecto de protecção todos os direitos,
liberdades e garantias (e não apenas os direitos, liberdades e garantias
pessoais, como se expressa o preceito constitucional).
Outra das notas características desta figura é tratar‑se
de um processo autónomo (principal), tal como os demais processos urgentes
regulados no Título IV do CPTA, e não de um processo cautelar, como os tratados
no Título V, que são sempre dependentes de uma causa (principal) que tem por
objecto a decisão sobre o mérito (artigo 113.º, n.º 1, do CPTA). O processo de
intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, tendo a
especificidade de visar a emissão célere de uma decisão de mérito que imponha à
Administração (ou a particulares) a adopção de uma conduta, positiva ou
negativa, que seja indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de
um direito, liberdade ou garantia, tem em comum quer com os demais processos
regulados no referido Título IV, quer com os processos que seguem a forma da
acção administrativa comum (Título II) ou da acção administrativa especial
(Título III), o tratar‑se de processo “em que o tribunal é chamado a apreciar e
decidir litígios através de decisões cuja função é a de resolver
definitivamente esses litígios mediante sentença transitada em julgado” (Mário
Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, obra citada, p. 536).
Estes autores, analisando o requisito de concessão desta
intimação consistente na indispensabilidade da sua célere emissão, “por não ser
possível, nas circunstâncias do caso, o decretamento provisório de uma
providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º” (este artigo 131.º
prevê, para a generalidade das providências cautelares, a possibilidade de o
interessado pedir o decretamento provisório da providência, quando ela “se
destine a tutelar direitos, liberdades e garantias que de outro modo não possam
ser exercidos em tempo útil ou quando entenda haver especial urgência”),
ponderam o seguinte (obra citada, pp. 538‑539):
“A imposição deste (…) requisito é da maior importância e deve
ser realçada, pois, através dela, o Código assume que, ao contrário do que, à
partida, se poderia pensar, o processo de intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reacção a utilizar em
situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via
normal de reacção é a da propositura de uma acção não urgente (acção
administrativa comum ou acção administrativa especial), associada à dedução
de um pedido de decretamento de providências cautelares, destinadas a
assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no
âmbito dessa acção. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização
da via normal não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em
tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o
processo de intimação.
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias é, assim, instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado
para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias
contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de
processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a
protecção efectiva de direitos, liberdades e garantias (…).
A opção afigura‑se compreensível, não parecendo, na verdade, que o
âmbito de intervenção desta forma de processo esteja configurado em moldes
excessivamente restritivos (…). Com efeito, cumpre ter presente que o normal
e desejável é que os processos se desenrolem nos moldes considerados mais
adequados ao cabal esclarecimento das questões, o que exige tempo, o tempo
necessário à produção da prova e ao exercício do contraditório entre as partes.
Não é, por isso, aconselhável abusar dos processos urgentes, em que a
celeridade é necessariamente obtida através do sacrifício, em maior ou menor
grau, de outros valores, que, quando ponderosas razões de urgência não o exijam,
não devem ser postergados. Afigura‑se, pois, justificado recorrer, por norma,
aos processos não urgentes, devidamente complementados por um sistema
eficaz de atribuição de providências cautelares, efectivamente apto a
evitar a constituição de situações irreversíveis ou a emergência de danos
de difícil reparação (sobre os processos cautelares, cf. artigos 112.º e
seguintes), e reservar os processos urgentes para situações de verdadeira
urgência na obtenção de uma decisão sobre o mérito da causa, que são aquelas
para as quais, na verdade, não é suficiente a utilização de um processo não
urgente, ainda que complementado pelo decretamento – se as circunstâncias o
justificarem, provisório (quanto a este ponto, cf. artigo 131.º) – de
providências cautelares.”
E, esclarecendo melhor a natureza subsidiária deste
processo de intimação e exemplificando os casos em que deve ser utilizado e
aqueles em que se mostra satisfatório o recurso aos processos “normais”
associados a meios cautelares, prosseguem os referidos autores (obra citada,
pp. 539‑542):
“3. À primeira vista, dir‑se‑ia que a relação de subsidiariedade
prevista no n.º 1 se estabelece entre o processo de intimação para protecção de
direitos, liberdades e garantias e «o decretamento provisório de uma
providência cautelar, segundo o disposto no artigo 131.º». Cumpre, porém,
notar que o sentido do preceito é o de afirmar a existência, nos termos expostos
na nota precedente, de uma relação genérica de subsidiariedade entre este
processo e os processos não urgentes (acção administrativa comum e acção
administrativa especial). A referência específica ao decretamento provisório
de providências cautelares, previsto no artigo 131.º, compreende‑se,
entretanto, porque a relação de subsidiariedade em relação aos processos não
urgentes se estende, como não poderia deixar de ser, ao recurso à tutela
cautelar – e, dentro desta, à mais incisiva das possibilidades que o regime da
tutela cautelar oferece, a do decretamento provisório de providências
cautelares, previsto no artigo 131.º, quando as circunstâncias o justifiquem.
Com efeito, elemento essencial para a efectividade dos processos não
urgentes é, como foi referido na nota precedente, a existência de um sistema
eficaz de atribuição de providências cautelares, efectivamente apto a
evitar a constituição de situações irreversíveis ou a emergência de danos
de difícil reparação. Quando, portanto, se afirma que o processo de intimação
para protecção de direitos, liberdades e garantias só deve intervir quando os
processos não urgentes não se mostrem capazes de assegurar uma protecção
adequada, esta afirmação tem necessariamente em vista os processos não urgentes,
devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar, com todas as
possibilidades que ele comporta – com natural destaque para a mais efectiva de
todas, que é a do decretamento provisório de providências cautelares, na medida
em que, em parte, também se dirige à protecção de direitos, liberdades e
garantias e, muitas vezes, será precisamente a via que poderá dar resposta a
situações que, de outro modo, não poderiam deixar de cair no âmbito de
intervenção do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e
garantias.
A referência específica, nesta sede, ao decretamento provisório de
providências cautelares do artigo 131.º explica‑se, pois, porque, na prática,
o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias
há‑de ser chamado a intervir nas situações que não possam ser acauteladas
através do decretamento provisório de uma providência cautelar.
Procuremos, pois, concretizar os termos em que se parecem dever
articular estes dois institutos.
O decretamento provisório de providências cautelares, tal como
previsto no artigo 131.º, consiste na possibilidade que, em situações de
extrema urgência – e, em especial, quando esteja, precisamente, em causa o
exercício em tempo útil de direitos, liberdades e garantias –, é dada ao autor
que desencadeie ou se proponha desencadear um processo não urgente, de obter,
em ordem a assegurar a utilidade da decisão que pretende alcançar nesse
processo, a adopção imediata de uma providência cautelar, ainda durante a
própria pendência do processo cautelar. A providência é decretada a título
provisório, na medida em que é decretada para vigorar apenas durante a pendência
do processo cautelar, dando assim resposta à própria morosidade deste processo.
Uma vez concluído o processo cautelar, decidir‑se‑á se ela deve ser mantida
durante toda a pendência do processo principal ou se deve ser alterada ou pura e
simplesmente levantada.
O decretamento provisório de providências cautelares permite,
assim, obter, num prazo que, em situações de extrema urgência, pode ser, tal
como na intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (cf.
artigo 111.º, n.º 1), de 48 horas (cf. artigo 131.º, n.º 3), a adopção de
providências cautelares dirigidas a impedir a lesão iminente e irreversível de
direitos, liberdades e garantias. Pense‑se no exemplo da ocupação de uma
propriedade, porventura em pura via de facto, por veículos e equipamentos que
comecem a realizar movimentações de terras. Esta situação pode ser tutelada
através do imediato decretamento provisório de uma ordem de suspensão dos
trabalhos. Pense‑se no exemplo da recusa do visto de permanência de um cidadão
estrangeiro no território nacional. Esta situação pode ser tutelada através do
imediato decretamento provisório de uma autorização provisória de permanência.
Como é natural, o decretamento provisório de providências
cautelares pode e deve intervir em todos os domínios em que faça sentido a
concessão de providências cautelares, sem prejuízo da decisão que venha
a ser proferida no processo principal e até sem prejuízo da decisão definitiva
que, a propósito da manutenção ou não da providência provisoriamente
decretada, venha a ser proferida no próprio processo cautelar. Situações,
portanto, em que a célere emissão de uma decisão sobre o mérito da causa,
que ponha definitivamente termo ao litígio, não é indispensável para
proteger o direito, liberdade ou garantia, bastando, para o efeito, o
decretamento de uma regulação meramente provisória, desde que se assegure
que a providência é decretada com a maior urgência, imediatamente após o
momento em que seja solicitada.
Pelo contrário, o processo de intimação para protecção de direitos,
liberdades e garantias há‑de ser chamado a intervir em situações que não
possam ser acauteladas deste modo, porque é urgente a obtenção de uma
pronúncia definitiva sobre o mérito da causa. Retomem‑se as situações
paradigmáticas em que está em causa a obtenção da autorização para a
realização de uma manifestação, por ocasião da deslocação a Portugal, em data
próxima, de uma personalidade estrangeira, ou a concessão de tempos de
antena numa campanha eleitoral que está em curso ou vai começar em breve. Em
situações deste tipo, não faz sentido a concessão de uma providência cautelar
porque a realização da manifestação não pode ser autorizada (ou os tempos de
antena concedidos) a título precário e provisório, sem prejuízo da decisão
que venha a ser proferida no processo principal. Com efeito, se o tribunal
emitisse uma providência cautelar para que a manifestação fosse realizada
(ou os tempos de antena fossem atribuídos), ele estaria, desse modo, a dar (e a
dar em definitivo) o que só à sentença final, a uma decisão sobre o mérito da
causa, cumpre proporcionar: se a realização da manifestação fosse
autorizada (ou os tempos de antena concedidos) a título cautelar, isso faria
com que, uma vez realizada a manifestação (ou emitidos os tempos de antena),
o processo principal se tornasse automaticamente inútil. O que em
situações deste tipo é necessário é obter, em tempo útil e, por isso, com
carácter de urgência, uma decisão definitiva sobre a questão de fundo: a
questão tem de ser definitivamente decidida de imediato, não se compadecendo com
uma definição cautelar. O processo principal urgente de intimação existe
precisamente para suprir as insuficiências próprias da tutela cautelar, que
resultam do facto de ela ser isso mesmo, cautelar (…).”
Como salienta José Carlos Vieira de Andrade (obra
citada, p. 263), o requisito da parte final do n.º 1 do artigo 109.º do CPTA
é, de certo modo, pleonástico, “pois que se é indispensável uma decisão de
mérito urgente para evitar a lesão do direito, então isso exclui automaticamente
a admissibilidade de um processo cautelar”; na verdade, apesar de o decretamento
provisório da providência também ser urgente e poder ser conseguido no prazo de
48 horas (artigo 131.º do CPTA), a sua utilização “não tem sentido quando a
questão de fundo deva ser resolvida imediatamente, porque as providências
cautelares, por definição, não podem ser utilizadas para obter resultados
definitivos”; concluindo: “em rigor, a expressão legal quer mostrar o carácter
excepcional da intimação, confirmando a remissão para a acção normal (não
urgente) daqueles casos em que, estando embora em causa o exercício de um
direito, liberdade e garantia, a decisão de fundo não seja urgente – pois que
eventuais perigos de lesão, mesmo que de lesões imediatas e irreversíveis, podem
ser resolvidos nesses processos normais através de providências cautelares”.
Podemos, assim, afirmar, de acordo com a generalidade da
doutrina, que o critério de determinação da subsidiariedade da intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias face aos meios cautelares – isto
é: saber quando, perante uma ameaça séria de lesão do exercício de um direito,
liberdade ou garantia, se deve lançar mão de uma solução urgente de mérito
(através da intimação) ou de uma tutela provisória (através da antecipação de
uma providência cautelar) – radica essencialmente na adequação, para a situação
concreta, de uma sentença provisória ou de uma sentença de mérito definitiva:
“haverá lugar à aplicação da intimação sempre que o decretamento provisório
consumir o objecto do processo principal, tornando‑se definitivo” (Maria
Fernanda Maçãs, local citado, p. 52), pois “o que conta é a capacidade ou
incapacidade da medida cautelar para regular definitivamente uma situação e não
a urgência” (Isabel Fonseca, obra citada, p. 78). Ou, segundo Carla Amado Gomes
(“Pretexto ...”, citado, p. 565), “não se trata (...) de uma questão de maior
rapidez na concessão da providência (...), mas antes da aplicação do princípio
da interferência mínima em sede cautelar (em sentido amplo)”, isto é: “estando
em causa cognições sumárias motivadas pela urgência, o juízo provisório,
revisível no próprio processo cautelar em curso, prefere ao juízo definitivo
proferido na intimação, só eventualmente revisível em via de recurso”.
2.3. Exposto o regime legal aplicável, era desde logo
patente a inadequação da intimação para a protecção de direitos, liberdades e
mérito face à pretensão deduzida pela recorrente. Como se demonstrou, aquele
meio processual principal aplica‑se perante situações de urgência na obtenção de
uma decisão definitiva de mérito de um litígio. Ora, o que a recorrente
peticionou foi uma medida provisória: a intimação do requerido para se abster de
executar a garantia bancária “até ao trânsito em julgado da decisão judicial a
proferir” na acção administrativa especial em que era impugnada a deliberação
que determinara a reposição da quantia relativa a ajuda comunitária considerada
indevidamente recebida.
Para tutela da posição subjectiva da requerente eram,
assim, manifestamente suficientes e adequados os meios processuais “normais” que
o CPTA disponibilizava: acção administrativa especial para impugnação do acto
administrativo reputado ilegal acoplado a providência cautelar, no âmbito da
qual o requerente podia pedir o decretamento provisório da providência, nos
termos do artigo 131.º, n.º 1, do CPTA.
Meios processuais que o recorrente efectivamente
utilizou, embora, no que tange à providência cautelar e ao pedido de
decretamento provisório, sem sucesso. Na verdade, por decisão do TAF de Viseu
de 3 de Fevereiro de 2005 (fls. 94 a 96) foi indeferido o pedido de decretamento
provisório, e por decisão de 25 de Fevereiro de 2005 (fls. 98 a 105) foi
indeferida a providência cautelar de suspensão de eficácia. Esta última
sentença, entretanto confirmada pelo acórdão do TCAN de 7 de Julho de 2005,
proc. n.º 132/05.9BEVIS (texto integral disponível em www.dgsi.pt/jtcn),
indeferiu o pedido de suspensão de eficácia da deliberação em causa por a
requerente não ter alegado nem provado factos demonstrativos de que a execução
do acto lhe provocaria prejuízos de difícil ou impossível recuperação para os
interesses que pretendia ver reconhecidos na acção principal, pelo que se
entendeu que a providência solicitada não podia ser concedida por falta de
verificação do requisito (de mérito) do periculum in mora referido na primeira
parte do alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA: haver “fundado receio da
constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de
difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no
processo principal”.
Os direitos constitucionais de acesso aos tribunais e de
tutela jurisdicional efectiva são satisfeitos pela previsão legal de mecanismos
processuais que possibilitem, de modo adequado e suficiente, aos interessados a
defesa dos seus direitos perante os tribunais, mas obviamente não asseguram a
todos eles o sucesso nas suas pretensões. No caso dos autos, é manifesto que a
conjugação da acção administrativa especial de impugnação da deliberação que
determinou a reposição da quantia em causa, associada ao pedido de decretamento
provisório de providência cautelar visando impedir a autoridade administrativa
de executar de imediato tal deliberação, designadamente através da cobrança da
garantia bancária prestada, eram idóneos e suficientes para tutelar os
interesses legítimos da recorrente. A circunstância de, por decisão judicial de
mérito, terem sido indeferidos quer o pedido de decretamento provisório da
providência cautelar quer a própria providência solicitada, não implica que seja
constitucionalmente imposto a concessão à interessada, em regime de
cumulatividade, do acesso ao meio excepcional e subsidiário da intimação para
protecção de direitos, liberdades e garantias.
Conclui‑se, assim, sem necessidade de mais desenvolvidas
considerações, que a interpretação normativa acolhida no acórdão recorrido,
aliás em perfeita consonância com a literalidade do preceito legal, não viola as
normas e princípios constitucionais invocados pela recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 109.º,
n.º 1, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º
15/2002, de 22 de Fevereiro, enquanto condiciona o uso do processo de intimação
para protecção de direitos, liberdades e garantias à impossibilidade ou
insuficiência, nas circunstâncias do caso, para o asseguramento do exercício, em
tempo útil, de um direito, liberdade e garantia, do decretamento provisório de
uma providência cautelar; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente (no Tribunal Constitucional só
valem as isenções subjectivas de custas previstas no artigo 2.º do Código das
Custas Judiciais – cf. artigo 4.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 303/98, de 7 de
Outubro –, e não também a prevista no artigo 73.º‑C, n.º 2, alínea c), deste
Código), fixando‑se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 3 de Janeiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos