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Procº nº 104/97 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. A. apresentou reclamação do despacho do Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 1997, que indeferiu o requerimento de interposição de recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Novembro de 1996 - aresto este que confirmou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou procedente a excepção da remissão abdicativa, suscitada pela B. (em liquidação) em face da sua pretensão de ver reconhecidos créditos emergentes da cessação do seu contrato de trabalho com aquela empresa, por força do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio.
Tal requerimento de interposição do recurso, apresentado ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), invoca ter o tribunal a quo aplicado 'a norma constante da alínea c) do nº 1 do art. 4º do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio, norma essa considerada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão nº 162/95, de 28 de Março, do Tribunal Constitucional e que foi publicado in D.R. Série I-A, nº 106/95, de 8 de Maio'.
O despacho de inadmissão do recurso, ora objecto de reclamação, alicerça-se, essencialmente, nos seguintes fundamentos:
a) a invocação de que o acórdão recorrido teria aplicado a norma constante da alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 138/85 seria infundada, por tal decisão ter expressamente tomado em consideração a declaração da inconstitucionalidade daquela norma, não a tendo, por isso, aplicado;
b) essa norma nunca poderia estar em causa, porquanto o litígio não
é entre um trabalhador da C., e esta companhia, mas sim entre um trabalhador da B. e esta empresa, tendo esta sido abrangida não pelo Decreto-Lei nº 138/85, de
4 de Maio, mas pelo Decreto-Lei nº 137/85, de 4 de Maio.
2. Tendo em conta que o Acórdão deste Tribunal nº 162/95, referido no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, tanto da norma da alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 138/85, como da norma da alínea c) do nº
1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 137/85 (que foi a norma expressamente analisada, sub specie constitutionis, pelo Supremo Tribunal de Justiça), deve imputar-se a lapso manifesto a referência ao Decreto-Lei nº 138/85, em vez de ao Decreto-Lei nº 137/85.
Assim sendo - e relevando tal lapso, como tem sido prática deste Tribunal -, sobeja como fundamento de indeferimento do requerimento de interposição do recurso apenas o primeiro anteriormente referido.
Sobre o mesmo refere, entre o mais, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal no seu Parecer:
'Pensamos que a situação processual subjacente ao presente recurso de constitucionalidade se configura, de forma que consideramos paradigmática, como de aplicação implícita pelo tribunal 'a quo' de norma já anteriormente julgada inconstitucional - neste caso, mediante declaração com força obrigatória geral e dotada de eficácia 'ex tunc'.
A jurisprudência constitucional há muito vem entendendo, a propósito do recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, que a recusa de aplicação de normas por motivo de inconstitucionalidade não necessita de ser expressa, bastando que ela esteja implícita na fundamentação da decisão recorrida (cfr. designadamente, os Acórdãos nºs 13/83,
27/84 e 429/89).
O que releva 'numa visão substancial das coisas' (cfr. o Acórdão nº
481/94) não é apenas o estrito enunciado verbal da decisão recorrida, o facto de nela se 'dizer' que considera estar a aplicar-se (ou desaplicar-se) certa norma à dirimição do litígio - mas a circunstância de na fundamentação lógico-jurídica que conduz à decisão ter de passar-se necessariamente pela mediação e consideração do regime jurídico constante da norma em causa.
Tal visão substancial das coisas tem de valer - quase diríamos por maioria de razão - no âmbito dos recursos a que alude a alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, sob pena de os juízos de inconstitucionalidade normativa emitidos nos termos da Lei Fundamental por este Tribunal Constitucional se transformarem em puras proclamações teóricas, insusceptíveis de implicar efectiva e real repercussão nas concretas situações da vida objecto de apreciação judicial'.
E conclui assim:
'a) A decisão recorrida, apesar do seu enunciado verbal, procedeu a uma aplicação implícita da norma constante do artigo 4º, nº 1, alínea c) do Decreto-Lei nº 137/85, já que a relevância decisiva que atribui ao negócio jurídico designado como 'remissão abdicativa' pressupõe necessariamente, de um ponto de vista lógico jurídico, a cessação dos contratos de trabalho no momento e em consequência da extinção da B. - sendo certo que o Acórdão nº
162/95 deste Tribunal Constitucional já declarou, com força obrigatória geral e eficácia 'ex tunc', a inconstitucionalidade de tal norma.
b) Verificam-se, pois, os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade intentado com fundamento na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pelo que deverá ser julgada procedente esta reclamação'.
3. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentos.
4. No acórdão de que se pretendeu recorrer para este Tribunal, sob a epígrafe 'inconstitucionalidade do artigo 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 137/85', escreveu-se, designadamente, o seguinte:
'O que afinal está posto em causa é a inconstitucionalidade da alínea c) acima transcrita.
Ora, pelo seu acórdão nº 162/95, de 28 de Março, publicado no Diário da República, I Série, nº 106/95, de 8 de Maio, o Tribunal Constitucional declarou, 'com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes da alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio', 'com base na violação dos artigos 18º, nº 3, 53º e 168º, nº 1, alínea b), da Lei Fundamental'.
Está, pois, já solucionada a indicada questão, não tendo este Supremo Tribunal de reapreciá-la aqui [...]'.
Por outro lado, de uma anterior decisão deste Tribunal (Acórdão nº
26/85, tirado em fiscalização preventiva do artigo 1º dos Decretos de que viriam a emergir os Decretos-Leis nºs. 137/85 e 138/85) retirou o Supremo Tribunal de Justiça, naquele aresto, a conclusão de que a extinção da B. 'não foi atingida com a declaração de inconstitucionalidade do citado artigo 4º, nº 1, alínea c)'.
De tal não inconstitucionalidade fez decorrer a cessação da subordinação do trabalhador à entidade patronal - e desta fez derivar a licitude da remissão abdicativa de direitos sobre a liquidação do património da empresa, remissão essa corporizada na aceitação da indemnização proposta e na declaração correspectiva de renúncia a quaisquer outros direitos.
5. Numa situação em tudo semelhante, o Acórdão nº 528/96, tirado no Plenário deste Tribunal, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Julho de 1996, fixou o que deve entender-se como 'alcance mínimo da declaração de inconstitucionalidade' constante do Acórdão nº 162/95: 'o de que existe a obrigação de aos trabalhadores das extintas empresas públicas B. e C. ser paga uma indemnização, em consequência da cessação dos seus postos de trabalho, de montante idêntico ao que lhes seria devido caso houvesse lugar a um despedimento colectivo'.
6. De modo idêntico, o recente Acórdão nº 513/97 deste Tribunal
(ainda inédito) concluiu que, ao reconhecer-se a prescrição de créditos contra a B., se estava a fazer 'aplicação pelo menos implícita da norma constante da alínea c) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, com preterição da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral dessa norma, proferida no Acórdão nº 162/95 deste Tribunal [...]'.
7. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Novembro de
1996, invocou-se o Acórdão nº 26/85 (publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Abril de 1985), para se concluir que a extinção da B. 'não foi atingida com a declaração de inconstitucionalidade do citado artigo 4º nº 1, alínea c)'. Todavia, aquele acórdão tirado em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade não teve como objecto a norma do artigo 4º, nº
1, alínea c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio.
Procede, pois, a primeira conclusão do Parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal - também reproduzida no já citado Acórdão nº 528/96 -, pelo que, em consequência, deve igualmente proceder a segunda.
Há, assim, que concluir pelo deferimento da presente reclamação.
III - Decisão.
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, defere-se a reclamação, revogando-se, consequentemente, o despacho reclamado, o qual deve ser substituído por outro que admita o recurso de constitucionalidade.
Lisboa, 5 de Novembro de 1997 Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa