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Processo n.º 1066/04
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal da Comarca de Espinho, em
que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70º, nº 1,
alínea a), 72º, nºs 1, alínea a), e 3, e 75º, nº 1, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele
Tribunal, de 10 de Novembro de 2004.
2. Este Tribunal decidiu:
“I) Não aplicar o disposto no art. 152°/5 do Código da Estrada, por ser
inconstitucional, violando as garantias de defesa do arguido em processo de
contra ordenação e o princípio da dignidade da pessoa humana, nos termos dos
art. 32°/10 e 1° da Constituição da República Portuguesa, ao impor, em processo
judicial de impugnação de decisão administrativa por contra-ordenação, a
condenação do arguido, mesmo restrita ao pagamento da coima, por uma infracção
que não se provou tenha sido realmente por ele cometida e apesar de ter
identificado em tempo o possuidor do veículo.
II) Julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão proferida
pela Direcção Regional de Viação de Aveiro em relação à arguida A.”.
Para o que agora releva, importa destacar da sentença o seguinte:
“(…) Por isso, considera-se que a responsabilidade da arguida está afastada nos
termos do disposto no art. 152°/2 do Cód. da Estrada (…).
Assente este ponto, e sendo ele plenamente aplicável quanto à sanção acessória
de inibição de conduzir, já no que respeita à coima aplicada a mesma solução
pode ser questionada tendo em conta o disposto no art. 152°/5 do Cód. da
Estrada.
Nos termos dessa disposição, as pessoas referidas no nº1 respondem
subsidiariamente pelo pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo
autor da contra ordenação, sem prejuízo do direito de regresso contra este.
Um efeito que daqui deve reconhecer-se validamente produzido é o seguinte: paga
voluntariamente a coima pelo responsável nos termos do nº1, não haverá lugar a
restituição, mesmo ocorrendo qualquer das situações do nº2 e 3.
Face ao seu teor, porém, a norma do nº5 do art. 152° do Cód. da Estrada também
consagra a responsabilidade objectiva das pessoas indicadas no nº1 do art. 152°,
em matéria de pagamento da coima e das custas, independentemente de o processo
respeitante a esses pessoas ser arquivado ou não, nos termos dos nº2 e 3 do
mesmo preceito, e por isso independentemente da comunicação de ter sido outra
pessoa a autora da contra ordenação, nos termos do nº7.
Na verdade, a responsabilidade decorrente do art. 152°/5 do CE apenas é
ressalvada em caso de prova de utilização abusiva do veículo (nº6).
O que significa, em nosso entendimento, que a norma legal impõe a
responsabilidade do agente (indicado no nº1), independentemente da sua real
participação nos factos e da prova que sobre isso for feita, mesmo em processo
judicial, quanto ao pagamento da coima e das custas.
Interpretação que, sendo forçosa face à redacção da norma, implicaria, em
situação como a dos autos, se proferisse decisão condenatória quanto à coima,
apesar da falta de prova sobre a autoria do facto.
Sem que isso se altere pelo facto de essa responsabilidade ser meramente
subsidiária, nos casos em que, como nos autos, não se apurou o verdadeiro autor
da contra ordenação.
No entanto, essa interpretação não pode prevalecer, visto que determinaria a
existência de responsabilidade objectiva, em matéria de direito sancionatório,
que a Constituição implicitamente equipara à matéria penal (no sentido desta
orientação, cfr. Ac. do Tribunal Constitucional nº265/01, DR 163, Série I-A, de
16/7/2001, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral,
dos arts. 59°/3 e 63°/1 do DL nº433/82, de 27-10, interpretado no sentido de
determinar a recusa do recurso, sem convite ao aperfeiçoamento, em impugnação
judicial de decisão administrativa de contra ordenação).
Violaria, dessa forma, o princípio da culpa, implícito na subordinação da lei à
dignidade do ser humano e o princípio das garantias de defesa consagradas na Lei
Fundamental em processo de contra ordenação (art. 1° e 32°/10 da Constituição da
República Portuguesa).
Não haveria, em tal caso, qualquer fundamento material para a condenação, ao
contrário do que sucede quando, apesar de devidamente notificado, o agente
identificado nos termos do art. 152°/1 do CE nada diz, fazendo então a lei
corresponder a tal inércia uma presunção de responsabilidade.
Por outro lado, face a esse tratamento equiparado pela Constituição da República
entre as garantias de defesa no processo criminal e no processo contra
ordenacional, é forçoso dar à situação de dúvida sobre a prova o mesmo
tratamento que naquele merece, não sendo admissível, face à Constituição, se
profira nesse caso decisão condenatória.
Na verdade, o princípio in dubio pro reo é uma implicação da presunção de
inocência do arguido, consagrada no art. 32°/2 da Constituição, a qual por sua
vez decorre do princípio da dignidade do ser humano, princípio máximo a que o
direito ordinário deve submeter-se.
Não é admissível, por isso, face à Lei Fundamental, proferir sentença
condenatória, em processo judicial, consequente à impugnação da decisão
administrativa, quando essa presunção não tenha sido ilidida pela prova
produzida e não exista outro fundamento material que possa sustentar a
condenação.
É nossa convicção, pois, que é inconstitucional o art. 152°/5 do Cód. da
Estrada, quando interpretado no sentido de determinar, em processo judicial de
impugnação de decisão administrativa, a condenação do arguido, mesmo restrita ao
pagamento da coima, por uma contra ordenação que não se provou tenha sido
realmente por ele cometida”.
3. Desta decisão foi interposto recurso pelo Ministério Público junto daquele
Tribunal, em virtude de este ter recusado a aplicação da norma prevista no
artigo 152º, nº 5, do Código da Estrada por ser inconstitucional.
4. Notificado para alegar, o Ministério Público junto deste Tribunal concluiu
que:
“1 – Nos termos do n° 3 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional, deve
este mandar aplicar a interpretação que entender conforme à Constituição
relativamente a determinada norma, que havia sido desaplicada com fundamento em
violação da Lei Fundamental, na sequência de interpretação inaceitável, face aos
critérios estabelecidos no artigo 9° do Código Civil.
2 – Só há lugar à responsabilidade subsidiária pelo pagamento das coimas e das
custas, nos termos do n° 5 do artigo 152° do Código de Estrada, relativamente às
pessoas referidas no n° 1, desde que mantenham as qualidades aí mencionadas à
data da prática da contra-ordenação e uma vez apurada a responsabilidade do seu
autor, com a sua efectiva condenação.
3 – Nestes termos, deverá ser julgado procedente o presente recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de
constitucionalidade da norma desaplicada com o sentido atrás referido”.
5. Notificada para alegar, a recorrida não apresentou quaisquer alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O Tribunal Judicial da Comarca de Espinho recusou a aplicação do nº 5 do
artigo 152º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, de 3 de
Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
É o seguinte o teor da norma em causa, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº
265-A/2001, de 28 de Setembro:
“Artigo 152º
Da responsabilidade
1 – Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da
contra-ordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário,
adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de
locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em
virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado
contra ele o correspondente processo.
2 – (…).
3 – (…).
4 – (…).
5 – As pessoas referidas no nº 1 respondem subsidiariamente pelo pagamento das
coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contra-ordenação, sem
prejuízo do direito de regresso contra este.
6 – (…).
7 – (…).
8 – (…)”.
Aquele Tribunal recusou a aplicação desta norma por impor, em processo judicial
de impugnação de decisão administrativa por contra-ordenação, a condenação do
arguido, mesmo restrita ao pagamento da coima, por uma infracção que não se
provou tenha sido realmente por ele cometida e apesar de ter identificado em
tempo o possuidor do veículo, violando assim as garantias de defesa do arguido
em processo de contra-ordenação e o princípio da dignidade da pessoa humana, nos
termos dos artigos 32º, nº 10, e 1º da Constituição da República Portuguesa.
2. Na verdade, uma interpretação do nº 5 do artigo 152º do Código da Estrada que
implique uma forma de responsabilidade contra-ordenacional que permita uma
“decisão condenatória quanto à coima apesar da falta de prova sobre a autoria do
facto” não respeita exigências constitucionais em matéria de direito
sancionatório de tipo contra-ordenacional. Nomeadamente as decorrentes da
protecção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição), que supõem
uma estruturação do direito sancionatório a partir do facto e não das qualidades
do agente.
Porém, sobre o artigo 152º, nº 5, do Código da Estrada já não incidirá qualquer
juízo de inconstitucionalidade se for interpretado no sentido de as pessoas
referidas no nº 1 do mesmo artigo responderem subsidiariamente pelo pagamento
das coimas e das custas que forem devidas por aquele que for condenado como
autor da contra-ordenação. Em causa estará apenas a responsabilidade
subsidiária pelo pagamento das coimas e custas devidas por quem seja condenado
pela prática de um facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual
se comine uma coima.
Ora, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 609/95 (Diário da
República, II Série de 19 de Março de 1996),
“(…) entre uma interpretação que é conforme à Constituição e outra que com ela é
incompatível, o intérprete (juiz incluído) deve preferir sempre o sentido que o
texto constitucional suporta. Se o não fizer e desaplicar a norma legal com
fundamento em inconstitucionalidade, no recurso que subir ao Tribunal
Constitucional, deve este fixar o sentido da norma que é compatível com a
Constituição, e mandar aplicar esta no processo com tal interpretação [cf.,
neste sentido, os Acórdãos nºs 163/95 e 198/95 (Diário da República, 2ª série,
de 8 de Junho de 1995 e de 22 de Junho de 1995, respectivamente)].
Dispõe, de facto, o artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional que «no
caso de o juízo de constitucionalidade ou legalidade sobre a norma que a decisão
recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em
determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal
interpretação no processo em causa»”.
Concluindo, o artigo 152º, nº 5, do Código da Estrada deve ser interpretado no
sentido de que, provada a qualidade das pessoas referidas no nº 1 do mesmo
artigo, estas respondem subsidiariamente pelo pagamento das coimas e das custas
que forem devidas por quem for condenado como autor da contra-ordenação.
III. Decisão
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a) Interpretar, nos termos do disposto no artigo 80º, nº 3, da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, o nº 5 do
artigo 152º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº
265-A/2001, de 28 de Setembro, no sentido de que, provada a qualidade das
pessoas referidas no nº 1 do mesmo artigo, estas respondem subsidiariamente pelo
pagamento das coimas e das custas que forem devidas por quem for condenado como
autor da contra-ordenação;
b) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença
recorrida para que seja reformada em termos de aplicar o nº 5 do artigo 152º do
Código da Estrada, com a interpretação que se indicou na alínea a).
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Artur Maurício