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Processo nº 707/2005
Plenário
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
(Maria Fernanda Palma)
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão da 2ª Vara Criminal de Lisboa de 20 de Abril de 2004, A. foi
condenado, como autor material, pela prática de um crime de tráfico de
estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º., n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de
22 de Janeiro, com referência à tabela I-A anexa.
Inconformado, interpôs recurso, mas a condenação foi confirmada por acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa de 23 de Junho de 2005.
Recorreu, então, para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso não foi, porém, admitido. Por despacho de 22 de Julho de 2005, o
relator entendeu que, tendo a Relação confirmado o acórdão de 1ª instância, e
tendo o arguido sido condenado na pena de 6 anos de prisão, não podia recorrer
para o Supremo Tribunal de Justiça, como resultaria da regra do artigo 400º.,
n.º 1, al. f) do Código de Processo Penal, conjugada com a proibição de
“reformatio in pejus” (artigo 409º. do mesmo Código).
O arguido reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
mas a reclamação foi indeferida, nestes termos:
“Ao recorrente A. foi aplicada pena de prisão inferior a oito anos, tal
como já explicou a Relação de Lisboa (fls 162 verso).
O recurso não é admissível com fundamento no artigo 400º., n.º 1, alínea f)
do C.P.P. – o que traduz jurisprudência dominante no Supremo”.
2. Veio então o arguido recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º. da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
pretendendo a apreciação do:
“artº 400º. alínea f) do CPP, se interpretado, como o faz a decisão recorrida,
no sentido de recusar o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, de acórdão
da Veneranda Relação de Lisboa, confirmativo de acórdão anterior da instância,
em que se julga um crime de tráfico de droga, a que corresponde, em termos de
moldura penal tipicizadora da infracção, a pena de prisão de 4 a 12 anos (artº
21.º do DL 15/93 de 22.01). Este artigo (o 400.º alínea f) do CPP), se
interpretado no sentido e com a dimensão interpretativa de que não é possível o
recurso para o STJ de acórdão da Veneranda Relação de Lisboa, que confirmou a
pena de SEIS ANOS DE PRISÃO aplicada ao arguido, encontra-se por tal motivo
ferido de verdadeira e própria inconstitucionalidade material (...)” seria
inconstitucional, por violação do “texto constitucional, ‘maxime’ o disposto nos
artºs 18.º n.º 2 e 32.º n.º 1 da CRP'.
Pelo acórdão n.º 628/2005 deste Tribunal, foi concedido provimento ao recurso e
proferida decisão julgando “inconstitucional, por violação do direito ao recurso
conjugado com o princípio da igualdade (artigos 32º, n.º 1, e 13º, n.º 1, da
Constituição), a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código
de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível o recurso
interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, quando a pena
de prisão prevista no tipo legal de crime for superior a oito anos, mas a pena
concretamente aplicada ao arguido – insusceptível de agravação por foça da
proibição da reformatio in pejus – tenha sido inferior a oito anos.”
3. Invocando contradição com o acórdão n.º 640/2004, que julgara não ser
desconforme com a Constituição a mesma norma, o Ministério Público recorreu para
o Plenário do Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 79º-D da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O recurso foi admitido.
Apenas apresentou alegações o Ministério Público, sustentando o juízo de não
inconstitucionalidade e formulando as seguintes conclusões:
“1 - A interpretação normativa da alínea f) do n° 1 do artigo 400° do Código de
Processo Penal segundo a qual, no caso de dupla conforme, o arguido condenado em
pena concreta inferior a 8 anos de prisão não tem interesse legítimo em aceder
ao Supremo para obter uma atenuação de tal pena, – estando irremediavelmente
precludido, por via do princípio da proibição da 'reformatio in pejus', que,
nesse recurso, possa ocorrer uma agravação da pena concreta de prisão
efectivamente aplicada – tendo, pelo contrário, o Ministério Público interesse
legítimo em aceder ao Supremo para, como representante da acusação, pugnar pelo
agravamento de tal pena concreta, aproximando-a ou fazendo-a coincidir com
aquele máximo legal, tido por relevante para delimitar o acesso ao Supremo
Tribunal de Justiça, não viola o princípio constitucional da igualdade,
conexionado com o direito ao recurso.
2 - Na verdade, a diferenciação de posições daqueles sujeitos processuais, no
que se refere ao acesso ao Supremo, assenta na própria diversidade que – em
termos de lógica jurídica intrínseca – subjaz, pela 'natureza das coisas', aos
recursos interpostos pela defesa e pela acusação, visando objectivos diferentes
e antagónicos – e permitindo, por isso, que o interesse em agir dos respectivos
sujeitos processuais seja aferido autonomamente.
3 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de não inconstitucionalidade,
formulado no citado Acórdão n° 640/04.”
O recorrido não alegou.
4. Feita a discussão do memorando apresentado e apurado o vencimento, foi
deliberado, por maioria, conceder provimento ao recurso. Houve, portanto,
mudança de relatora.
Para o efeito, e salientando que apenas lhe cabe apreciar a norma que constitui
o objecto do recurso do ponto de vista da sua conformidade com a Constituição,
não lhe competindo julgar a interpretação do direito ordinário de que resultou,
o Tribunal entendeu reafirmar o juízo de não inconstitucionalidade constante do
acórdão n.º 640/2004, nos termos e pelos fundamentos dele constantes.
Escreveu-se no acórdão n.º 640/2004:
“(...) não cabe na competência deste Tribunal aferir do bem ou mal fundado desta
interpretação, designadamente do seu decisivo pressuposto interpretativo que
consiste em a gravidade da “pena aplicável” que o legislador tomou como
referente ser a pena (máxima) que, nas circunstâncias concretas da limitação ao
poder cognitivo do tribunal ad quem inerente à proibição da reformatio in
pejus, possa ser judicialmente aplicada e não aquela que corresponda ao limite
máximo da moldura penal abstracta fixada no correspondente tipo legal.
(...)
4. Qualquer destas normas [ as das alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400º
do Código de Processo Penal] foi já sujeita ao escrutínio de
constitucionalidade, quanto à perspectiva da violação do direito ao recurso,
questão que se reconduz ao problema de saber se o direito ao recurso consagrado
no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição impõe um triplo grau de jurisdição.
Sempre sem sucesso, como pode ver‑se nos acórdãos n.ºs 49/03 e 377/03 [no que
toca à norma da alínea e)] e nos acórdãos n.ºs 189/01, 336/01, 369/01, 495/03 e
102/04 [no que respeita à alínea f)], todos disponíveis em
http://www.tribunalconstitucional.pt.
Lembrando esta jurisprudência, disse-se no acórdão n.º 495/03 (que pode
consultar-se em http://www.tribunalconstitucional.pt), o seguinte:
“Ora é exacto que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes observou que
«no nº 1 do artigo 32º da Constituição consagra-se o direito ao recurso em
processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas
a Constituição já não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo
recurso, ou a um triplo grau de jurisdição. O Tribunal Constitucional teve já a
oportunidade para o afirmar, a propósito dos recursos penais em matéria de
facto: “não decorre obviamente da Constituição um direito ao triplo grau de
jurisdição, ou ao duplo recurso” (acórdão nº 215/01, não publicado)».
Esta afirmação, feita no acórdão n.º 435/01 (disponível, tal como o acórdão n.º
215/01, em http://www.tribunalconstitucional.pt) foi proferida justamente a
propósito da apreciação da alegada inconstitucionalidade da “norma do artigo
400º, nº1, alínea f) do CPP', tendo o Tribunal Constitucional concluído, tal
como, aliás, já fizera nos acórdãos n.ºs 189/01 e 369/01 (também disponíveis em
http://www.tribunalconstitucional.pt) que “ não viola o princípio das garantias
de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da Constituição”.
A verdade, todavia, é que a apreciação então realizada tomou sempre como objecto
tal norma interpretada no sentido de que a mesma se “refere (...) claramente à
moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8
anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso
de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de
acórdão condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira
instância” (cit. acórdão n.º 189/01).
Sucede, porém, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a questão de
constitucionalidade que o ora reclamante pretende que seja apreciada no recurso
que interpôs, no acórdão n.º 451/03 (também disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), nos seguintes termos:
«É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a
que foi apreciada no Acórdão n.º 189/01 - neste a questão tinha directamente a
ver com a pena aplicável em caso de concurso de infracções.
A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32º n.º 1 da
Constituição, a questão da conformidade constitucional da interpretação
normativa adoptada no acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos.
Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber
quais os limites de conformação que o artigo 32º n.º 1 da CRP impõe ao
legislador ordinário, em matéria de recurso penal.
E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver
vinculação a um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente
admissível uma restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou
desproporcionada.
Ora, não podendo o Tribunal Constitucional censurar as interpretações
normativas que, no estrito plano do direito infraconstitucional, são feitas nas
decisões recorridas, a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça de uma decisão proferida em 2º grau de jurisdição que confirma a
condenação decretada em 1ª instância, - quando esse recurso é apenas interposto
pelo arguido e, por força da proibição da reformatio in pejus, o STJ nunca
poderá impor pena superior a 7 anos de prisão -, afigura-se racionalmente
justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de
questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso
concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o
direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a
pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto
à condenação.
Tanto basta para entender que a questionada interpretação normativa não
incorre em violação do artigo 32º n.º 1 da Constituição.
(...)
No caso, o que sucedeu foi que o tribunal ' a quo' integrou no conceito de
'pena aplicável' constante da norma do artigo 400º n.º 1 alínea f) do CPP,
também, as situações em que, confirmada pela relação a decisão condenatória
proferida em 1ª instância e sendo o recurso apenas interposto pelo arguido,
nunca o STJ pudesse aplicar pena superior a oito anos de prisão».
Estas razões, mais directamente dirigidas à alínea f) mas que valem para o
domínio de previsão comum (e, no caso, concorrente) das duas normas (...) –
neste passo, o problema de constitucionalidade é sempre o do terceiro grau de
jurisdição ou do duplo grau de recurso –, são suficientes para concluir que o
sentido normativo questionado não viola o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição,
na vertente do direito ao recurso em processo penal.
5. Sucede que o recorrente pretende o contraste das normas em causa também
com o “princípio da igualdade de armas”.
A propósito do denominado princípio da igualdade de armas em processo
penal, embora fiscalizando norma de sentido inverso àquelas cuja validade
constitucional agora apreciamos – questionava-se aí o artigo 646.º, n.º 6, do
Código de Processo Penal de 1929, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei
n.º 402/82, de 23 de Setembro, com a interpretação do Assento do Supremo
Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 1987, que vedava ao assistente e ao
Ministério Público uma via de recurso que o sistema facultava ao arguido – disse
este Tribunal, no acórdão n.º 132/92, publicado no Diário da República, II
série, de 24 de Julho de 1992, o seguinte:
“[ .. ] No estrito âmbito do direito de defesa, o princípio da igualdade em
matéria de recursos só pode conceber-se em benefício da defesa, isto é, tem de
ser uma igualdade ao serviço do acusado; caso contrário, já estaremos fora do
direito de defesa, já estaremos no âmbito do direito de acesso à justiça.
Com efeito, enquanto instrumento do direito de defesa, o direito ao recurso só
pode operar no sentido de evitar que o arguido seja colocado em situação de
desfavor face à acusação, no âmbito dos meios processuais que podem ser
validamente utilizados na formação da convicção do tribunal, isto é, das bases
argumentativas da decisão.
É certo que este Tribunal já postulou a necessidade de uma igualdade entre a
acusação e a defesa, e justamente em matéria de recursos, no Acórdão n.º 17/86
e no Acórdão n.º 8/87, suplemento ao Diário da República I série, de 9 de
Fevereiro de 1987.
Mas tal posição foi depois abandonada nos Acórdãos n.ºs 398/89 e 496/89 (Diário
da República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989 e de 1 de Fevereiro de 1990,
respectivamente), que aderiram expressamente a uma observação feita por
Figueiredo Dias a propósito do principio da «igualdade de armas) «Sobre os
sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in O Novo Código de
Processo Penal, «Jornadas de direito processual penal», Ed. Almedina, Coimbra,
1988, pp. 30-31):
Este princípio - que, de um ponto de vista jurídico-positivo, a doutrina e a
jurisprudência dos países do Conselho da Europa retiram do disposto no artigo
6º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – não pode, sob pena de
erro crasso, ser entendido como obrigando ao estabelecimento de uma igualdade
matemática ou sequer lógica. Fosse assim e teriam de ser fustigadas pela crítica
numerosas normas com bom fundamento – e, na verdade, ainda maior número delas
referentes a faculdades concedidas ao arguido do que ao Ministério Publico!
Desde logo feririam aquela «igualdade» princípios – até jurídico‑constitucionais
– como os da inviolabilidade do direito de defesa. da presunção de inocência do
arguido ou do in dubio pro reo. Mas feri-la-iam também faculdades
especificamente conferidas ao arguido no julgamento e que não têm qualquer
correspondência quanto à acusação [...] E sobretudo – se ali se tratasse de uma
igualdade puramente formal – tornar-se-ia necessário, ou desligar o Ministério
Público do seu dever (estrito) de objectividade, ou pôr um dever correspondente
a cargo do arguido!
Torna-se assim evidente que a reclamada «igualdade» de armas processuais – uma
ideia em si prezável e que merece ser mantida e aprofundada – só pode ser
entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no contexto mais
amplo da estrutura lógico-material da acusação e da defesa e da sua dialéctiva.
Com a consequência de que uma concreta conformação processual só poderá ser
recusada como violadora daquele princípio de igualdade quando dever
considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária; como ainda quando
possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do
processo penal, do programas político-criminal que àquele está assinado, ou dos
referentes axiológicos que o comandam.
[ ... ]”
Depois de recordar que o processo penal português não é um processo de partes e
de realçar jurisprudência e doutrina no sentido de que, em processo penal, o
princípio da igualdade de armas tem sido chamado a “opera[r] essencialmente no
âmbito do direito de defesa, no âmbito da preocupação de não colocar o arguido
em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação com
vista à formação da convicção do tribunal”, o acórdão n.º 132/92 conclui que “o
princípio da igualdade de armas não é um princípio absoluto em processo penal e,
portanto, só tem de ser aplicado, em toda a sua plenitude, para nivelar a
posição dos sujeitos processuais dentro do âmbito do direito de defesa, e em
favor da mesma defesa”.
Na linha deste entendimento, importa saber se, não sendo o processo penal
português concebido como um processo de partes, sem prejuízo da tendencial
igualdade de armas que, dentro do processo, se procurou estabelecer entre a
acusação e a defesa (Figueiredo Dias, “Os princípios estruturantes do processo e
a revisão de 1998 do Código de Processo Penal”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Ano 8, Fasc. 2º, pág. 205), ainda satisfaz as exigências
constitucionais de um processo equitativo a norma que, perante decisão
proferida em 2º grau de jurisdição, permite à acusação interpor recurso com o
objectivo de agravamento da pena e veda à defesa a interposição de recurso
(autónomo) em ordem a obter a redução da mesma pena ou a absolvição.
Efectivamente, para concluir pela violação do referido princípio não basta
que, na interpretação adoptada pelo acórdão recorrido, as normas em causa
coloquem o arguido e o Ministério Público (ou o assistente) numa posição
assimétrica. Igualdade de armas significa a atribuição à acusação e à defesa de
meios jurídicos igualmente eficazes para tornar efectivos os direitos
estabelecidos a favor da acusação e da defesa. O que, como diz Cunha Rodrigues,
“Sobre o princípio da igualdade de armas”, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Ano 1, Fasc. 1, pag. 91, “tendo em conta o lastro histórico relativo à
evolução da opinião jurídica sobre o problema, conduzirá a que o princípio
funcione como sensor do maior ou menor grau com que, na prática, se efectivam os
direitos da defesa”. Retomando a expressão de Figueiredo Dias transcrita no
acórdão n.º 132/92, “uma concreta conformação processual só poderá ser recusada
como violadora daquele princípio de igualdade quando dever considerar-se
infundamentada, desrazoável ou arbitrária; como ainda quando possa reputar-se
substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do
programa político-criminal que àquele está assinado, ou dos referentes
axiológicos que o comandam”.
Ora, já vimos que tem fundamentação material reservar o acesso ao Supremo
Tribunal de Justiça aos casos considerados pelo legislador como mais importantes
e que não é desrazoável ou arbitrário um critério que arranque da gravidade da
pena que possa ser imposta (critério da “determinação concreta da competência”
estendido à fase de recurso). Nesta perspectiva, a defesa e a acusação estão em
posição substancialmente diferente. A pretensão processual (lato sensu) da
acusação é que o Supremo imponha uma pena que se situa nesse patamar de
gravidade sancionatória eleito como critério de relevância da sua intervenção,
enquanto que a da defesa quando recorre da aplicação de uma pena que não atingiu
esse patamar é a inversa (obter uma pena inferior e, portanto, mais afastada do
indicador de relevância do caso que foi escolhido pelo legislador como critério
de acesso ao Supremo). Pelo que, por este ângulo, não estando
constitucionalmente assegurado o 3º grau de jurisdição e cabendo o referido
critério na margem de discricionariedade legislativa na conformação do recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça em matéria de processo penal (Cf., supra n.º
4) a diferenciação de tratamento entre a acusação e a defesa não é arbitrária ou
desrazoável, antes corresponde ao objectivo, que não é constitucionalmente
ilegítimo, de reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para os
casos mais importantes, aferida esta importância directamente pela
potencialidade de inflicção de uma pena que ultrapasse um estipulado grau de
gravidade e não pelo desvalor social daquele tipo de ilícito, indiciado pela
moldura penal abstracta.
Finalmente, ainda dentro deste parâmetro, importa averiguar se essa
diferenciação passa o teste de constitucionalidade “à luz das finalidades do
processo penal, do programa político‑criminal que àquele está assinalado e dos
referentes axiológicos que o comandam”, para utilizarmos a formulação acima
transcrita.
Num primeiro exame, poder-se-ia dizer que, a um programa constitucional do
processo penal “orientado para a defesa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição ..., 3ª ed., pág. 202) e comandado pela fundamental opção de que é
preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, quadra mal
numa norma que abre à acusação uma via de recurso com vista ao agravamento da
condenação, do mesmo passo que a fecha à defesa – ao mesmo arguido, perante a
mesma sentença – para obter a diminuição da pena ou, até, a absolvição. E seria
tentador reclamar a intervenção do “princípio da igualdade de armas” para
“nivelar a posição dos sujeitos processuais dentro do âmbito do direito de
defesa, e em favor da mesma defesa”, domínio em que a jurisprudência deste
Tribunal já afirmou que o referido princípio “tem de ser aplicado em toda a sua
plenitude” (Cfr. cit. acórdão n.º 132/92).
Todavia, daqui não decorre que essa solução seja constitucionalmente
imposta ou, dito de outro modo, que a norma sob escrutínio de
constitucionalidade viole a dimensão de igualdade das partes (lato sensu)
perante o juiz, que integra o direito a um processo equitativo.
Efectivamente, o princípio da igualdade de armas assume inquestionável
especificidade no âmbito do processo penal, aparecendo estreitamente conexionado
com a matéria das garantias de defesa, consagradas no artigo 32.º da
Constituição (Cfr., além dos acórdãos anteriormente referidos, Carlos Lopes do
Rego, “Acesso ao Direito e aos Tribunais”, in Estudos sobre a Jurisprudência do
Tribunal Constitucional, págs. 69, 70 e 76, maxime). Assim, desde que ficou
admitido que, pelo ângulo do artigo 32º da Constituição, não é
constitucionalmente vedado fazer depender o acesso ao Supremo Tribunal de
Justiça da gravidade da pena aplicável, i.e., que o arguido condenado em pena
menos grave que um certo limiar estabelecido não tem constitucionalmente
garantido o direito a fazer examinar a sua causa pelo Supremo Tribunal de
Justiça, só constituiria violação desta dimensão do processo equitativo que se
expressa pelo “princípio da igualdade de armas” não serem reconhecidos à defesa
todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido
defender a sua posição e contrariar a acusação na nova fase processual
desencadeada por iniciativa do Ministério Público ou do assistente. Afinal, a
nivelação dos sujeitos processuais (ainda que, porventura, dando “uma espada
mais comprida a quem tem o braço mais curto”) só tem de existir “dentro do
âmbito do direito de defesa” e é pacífico que a garantia de 2º grau de recurso
não está compreendida no âmbito constitucional do direito de defesa.
Ora, a norma em causa veda ao arguido a iniciativa perante o Supremo Tribunal
porque a sua pretensão se não situa no patamar que justifica a intervenção deste
de acordo com um pressuposto objectivo: a gravidade da pena aplicada ou que se
quer ver aplicada. Mas não afecta o seu estatuto processual uma vez desencadeada
a nova fase processual, podendo não só contrariar a pretensão do agravamento da
condenação, como pugnar pela sua atenuação ou, até, pela absolvição.
Consequentemente, a norma em causa também não viola o princípio da igualdade de
armas entre a acusação e a defesa em processo penal.
(...)”.
5. O acórdão n.º 628/2005 afastou-se da conclusão então alcançada nos seguintes
termos:
“(...) 7. Convocando esta jurisprudência [o acórdão está a referir-se aos
acórdãos n.ºs 451/2003, 102/2004 e 640/2004 e aos que neles aparecem citados], o
Tribunal Constitucional reconhece que o recorrente já dispôs de um grau de
recurso. Assim, não se verifica qualquer violação do direito ao recurso
consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, na dimensão que impõe a
previsão pelo legislador ordinário de um grau de recurso.
Todavia, a garantia constitucional do direito ao recurso não se esgota
nesta dimensão. Na verdade, tal garantia, conjugada com outros parâmetros
constitucionais, pressupõe, igualmente, que na sua regulação o legislador não
adopte soluções arbitrárias e desproporcionadas, limitativas das possibilidades
de recorrer – mesmo quando se trate de recursos apenas legalmente previstos e
não constitucionalmente obrigatórios (assim, vejam‑se os Acórdãos do Tribunal
Constitucional nºs 1229/96 e 462/2003, consultáveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
A questão de constitucionalidade objecto do presente recurso coloca, na verdade,
um problema de violação do princípio da igualdade articulado com o direito ao
recurso. E isso sucede na medida em que da interpretação normativa em causa
apenas resulta um condicionamento da recorribilidade para o arguido e não já
para o Ministério Público. Com efeito, o Ministério Público ao recorrer no
sentido do agravamento da responsabilidade do arguido impede o funcionamento do
artigo 409º do Código de Processo Penal. E o mesmo se passa, de acordo com tal
dimensão normativa, com o assistente.
O Tribunal Constitucional, no citado acórdão nº 640/2004, também apreciou a
conformidade à Constituição da norma impugnada, tendo por parâmetro o princípio
da igualdade de armas. No aresto referido, depois de sublinhar que o processo
penal não é um “processo de partes”, explicitou que o fundamento da
inadmissibilidade do recurso nesta constelação de casos é a pouca relevância da
questão a decidir aferida em função da pena que pode ser aplicada em concreto.
O Tribunal realçou também que, no âmbito de um recurso a interpor pelo
Ministério Público, a defesa poderá ainda pugnar pela atenuação da pena ou até
pela absolvição.
No entanto, cabe evidenciar de novo que a interpretação normativa que veda a
possibilidade de recurso depende, no seu teor, da proibição da reformatio in
pejus. Por outro lado, o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 499/97 (D.R., II
Série, de 21 de Outubro de 1997), referiu que o fundamento constitucional da
proibição da reformatio in pejus é a protecção do direito de recorrer, removendo
a lei, por via de tal proibição, uma inibição natural que poderia limitar a
iniciativa de interpor recurso por parte da defesa. Mas, na questão de
constitucionalidade de que agora se trata, o funcionamento da proibição da
reformatio in pejus, instituto que, como se viu, encontra a sua justificação na
tutela constitucional do direito de recurso, tem um efeito “periférico” ou
“colateral” que se traduz numa limitação do direito de recorrer. Assim, trata‑se
de uma decorrência lateral da proibição da reformatio in pejus que ultrapassa a
essência do seu sentido constitucional.
8. Por força do funcionamento da proibição da reformatio in pejus incorporada
na citada dimensão normativa é, pois, negada a universalidade de uma regra de
irrecorribilidade (no sentido de abranger todos os sujeitos processuais), já que
a proibição de reforma da decisão em desfavor do arguido não funciona na
perspectiva da acusação.
Na verdade, mesmo que fosse aceitável constitucionalmente uma limitação do
recurso apenas quanto ao arguido, não se justificaria que o Ministério Público
também ficasse limitado quando pretendesse interpor o recurso no exclusivo
interesse da defesa. Uma tal hipótese levaria à consagração de uma regra em que
a recorribilidade seria limitada para tudo o que implicasse o interesse da
defesa e já não quando estivesse em causa o agravamento da posição do arguido.
O argumento segundo o qual a igualdade não estaria em causa com esta
interpretação normativa por força do estatuto do Ministério Público não é
procedente, pois a função do Ministério Público não se circunscreve à
representação do interesse da acusação.
Não é, por conseguinte, o estatuto do Ministério Público que se reflecte na
presente interpretação normativa, mas apenas um funcionamento anómalo da
proibição da reformatio in pejus.
Por outro lado, a argumentação a partir do estatuto do Ministério Público não
abrange sequer o assistente.
Verifica‑se, portanto, uma arbitrária e desproporcionada desigualdade entre a
posição do arguido e a posição da acusação quanto ao direito ao recurso.
Ante estas razões, conclui-se pelo desrespeito da igualdade na regulamentação do
direito ao recurso.
9. Por fim, a garantia constitucional do direito ao recurso pressupõe uma
determinação prévia desse direito e das condições do respectivo exercício, que o
torne susceptível de reconhecimento pelo respectivo titular no momento relevante
para o seu exercício – o da notificação do acórdão – e que não o condicione ao
comportamento de outros sujeitos processuais. Ora, também neste plano se divisa
um enfraquecimento da garantia constitucional do direito ao recurso na
interpretação normativa em crise.”
6. Ora, como repetidamente o Tribunal tem afirmado, a Constituição não impõe um
triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal.
Não se pode, portanto, tratar a questão de constitucionalidade agora em causa na
perspectiva de procurar justificação para uma limitação introduzida pelo direito
ordinário a um direito de recurso constitucionalmente tutelado.
A norma que constitui o objecto do presente recurso, e que define, nos termos
expostos, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
releva, assim, do âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Como se afirmou no acórdão n.º 640/2004, não é arbitrário nem manifestamente
infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de
recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no
caso, possa ser aplicada.
A norma em apreciação não viola, pois, qualquer direito constitucional ao
recurso ou qualquer regra de proporcionalidade.
7. Também não ocorre uma eventual violação do princípio da igualdade,
considerado isolada ou conjugadamente com o direito ao recurso.
Com efeito, e para além do que se disse já, o critério utilizado para definir a
admissibilidade de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça – a possibilidade
de ser aplicada uma pena mais grave do que um determinado limite – torna
irrelevante saber quem pode ou não tomar a iniciativa de a provocar (o arguido,
o Ministério Público, ou o assistente).
Acresce que, interposto recurso com o objectivo do agravamento da pena aplicada
em 2ª instância, o arguido, como recorrido, tem as mesmas possibilidades de
pugnar pela redução da pena ou pela absolvição de que disporia se fosse ele o
recorrente.
8. Finalmente, e também pelas razões já apontadas, também não procede o
argumento de que seria constitucionalmente imposto que o arguido soubesse, no
momento em que é notificado do acórdão da 2ª instância, se tem ou não direito de
recorrer e em que condições o pode exercer. Note-se, aliás, que se não vê como a
norma em apreciação o impeça.
O mesmo se diga, aliás, da hipótese de se considerar constitucionalmente exigido
esse conhecimento em momento ainda anterior.
9. Assim, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo
400º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é
admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de
Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o
tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um
crime a que seja aplicável pena superior a esse limite;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão
recorrido.
Lisboa, 24 de Janeiro de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Gil Galvão
Vítor Gomes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto
que junto
Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração de
voto anexa)
Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração junta)
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de
voto junta)
Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto
junta).
Rui Manuel Moura Ramos . Vencido, nos termos da declaração de
voto junta.
Artur Maurício
Declaração de voto
Votei no sentido da inconstitucionalidade pelas razões que passo a expor:
1. A norma em questão é o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo
Penal, interpretado, nos dizeres da fórmula decisória, “no sentido de que não é
admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de
Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1.ª instância, o
tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um
crime a que seja aplicável pena superior a esse limite”. A referida alínea f)
prevê uma excepção à regra da recorribilidade, dizendo que não é admissível
recurso de “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que
confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja
aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de
infracções” (itálicos aditados). Logo a contradição entre este texto do Código
de Processo Penal, ao excluir apenas acórdãos condenatórios “por crime a que
seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos”, e a norma apreciada,
que elimina o recurso mesmo de acórdãos de condenação “pela prática de um crime
a que seja aplicável pena superior a esse limite”, deveria ter levado o Tribunal
a apreciar a existência de uma limitação infundada e arbitrária ao direito
(legalmente reconhecido) ao recurso, que o Supremo Tribunal de Justiça (em
jurisprudência que, aliás, abandonou) procurara fundar numa utilização do
instituto da reformatio in pejus contrária ao seu sentido protector do arguido
recorrente.
Como fundamentação, a decisão de que discordei transcreve dois acórdãos do
Tribunal Constitucional (um dos quais é o acórdão recorrido, em sentido
contrário, e o outro o acórdão n.º 495/2003, que não tratou da questão da
manifesta violação das garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso,
resultante da intervenção perversa da proibição da reformatio in pejus, mas
apenas da chamada “igualdade de armas”), e alinha considerações que, a meu ver,
passam abertamente ao lado do problema levantado também no acórdão recorrido – a
ponto de nem sequer o tocarem, isto é, de nem sequer referirem (ainda que para
contrariar) que o acórdão recorrido assentara na retorsão do instituto da
reformatio in pejus, que existe para proteger o direito ao recurso do arguido,
com o fim de lho retirar, e na configuração de uma situação em que ao recorrente
não é possível saber, no momento em que a decisão lhe é notificada, se pode ou
não interpor recurso, ficando tal informação dependente da opção que a esse
respeito vier a ser tomada pela acusação.
Como é evidente, o que estava em causa não era a imposição constitucional de
qualquer “triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso”, ou qualquer
carácter “manifestamente infundado” de uma reserva da competência do Supremo
Tribunal de Justiça “aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso,
possa ser aplicada”. Antes o que esteve em questão no acórdão recorrido foi,
justamente, o entendimento (nem sequer abordado na presente decisão) de que a
garantia constitucional do direito ao recurso tem uma sua importante dimensão
mesmo quando a previsão legislativa de um recurso não era constitucionalmente
imposta, e a consideração das consequências sobre a situação processual do
arguido da invocação contra ele – a qual, se não estivesse em causa uma decisão
judicial e a liberdade do arguido, quase se diria irónica ou mesmo cínica – de
um instituto que foi criado e existe para o proteger.
2. No que toca ao referido conhecimento pelo arguido, “no momento em que é
notificado do acórdão da 2.ª instância, se tem ou não direito de recorrer e em
que condições o pode exercer”, o que se não consegue vislumbrar é, aliás, como
“se não vê que a norma em apreciação o impeça” – pois que, nas situações a que,
no dizer da própria decisão, se reporta a norma em causa, tal conhecimento
depende de circunstância que só posteriormente vem a ocorrer (isto é, o recurso
ser “interposto apenas pelo arguido”). A não ser que pretendesse antes aceitar,
implicitamente (pois se não assumiu explicitamente), que o arguido também não
poderá interpor recurso mesmo que a acusação recorra para que seja aplicada pena
superior a oito anos.
Este último entendimento é patentemente contra legem, pelo que deveria dispensar
maiores considerações. Lamento verificar que elas se impõem, já que à conclusão,
tirada a latere do fundamento do acórdão recorrido, no sentido da inexistência
de qualquer regime “arbitrário”, “manifestamente infundado” ou violador de
“qualquer regra de proporcionalidade” (qualificações utilizadas aparentemente em
paralelo e indistintamente), se junta agora um “argumento” – verdadeiramente
inaceitável para o sentido do direito (mesmo apenas legal) ao recurso – segundo
o qual “interposto recurso com o objectivo do agravamento da pena aplicada em
2.ª instância, o arguido, como recorrido, tem as mesmas possibilidades de pugnar
pela redução da pena ou pela absolvição de que disporia se fosse ele o
recorrente”. Cabe perguntar se, nesta lógica que “acresce”, não haveria antes
que abolir toda a possibilidade de recurso pelo arguido, pois que, interposto
recurso pela acusação, “o arguido, como recorrido, tem as mesmas possibilidades
de pugnar pela redução da pena ou pela absolvição de que disporia se fosse ele o
recorrente”...
A utilização de tal fundamentação, ao mesmo tempo que se passa ostensivamente ao
lado de argumentos baseados em garantias fundamentais em processo criminal,
resultantes (mais ou menos claramente) do acórdão recorrido e em que este
Tribunal firmou conhecida jurisprudência, seria, objectivamente, compatível com
a censura (que, porém, reputo infundada) de que o Tribunal teria aceite, ainda
que por omissão, que, consoante a atitude que a acusação adopte, também aquelas
garantias e direitos existem para uns, mas não para outros.
Paulo Mota Pinto
Declaração de Voto
1 – Votei vencido pelas razões constantes do Acórdão 628/2005 e cuja bondade não
vejo suficientemente rebatida na presente decisão.
2 – Na verdade, não descortino como não possa considerar-se afectar,
de forma constitucionalmente relevante, as garantias de defesa do arguido (art.
32º, n.º 1, da Constituição) uma solução interpretativa nos termos da qual o
acesso ao Supremo Tribunal de Justiça acaba por ficar dependente não,
simplesmente, da gravidade da pena prevista (ou aplicada) para o crime, mas da
circunstância aleatória de o Ministério Público vir a entender, após o exercício
da acção penal (acusação), que a pena concretamente aplicada, que acabe por
situar-se dentro do nível objectivo de gravidade subtraído à possibilidade de
intervenção do STJ, satisfaz, segundo apenas o seu ponto de vista, as exigências
de reparação da ordem jurídico-penal tida como violada.
3 – Na minha perspectiva, uma tal solução só seria
constitucionalmente tolerável – e aqui porque o patamar de gravidade em função
do qual o acesso ao escrutínio do STJ ser sempre o mesmo (pena aplicada ou
aplicável, em abstracto, superior a 8 anos) para todos os sujeitos processuais –
se a interpretação impugnada assumisse, igualmente, que o Ministério Público
estaria impedido de recorrer para o STJ quando a pena se situasse dentro desse
patamar, não obstante o mesmo poder ter ficado vencido nos recursos interpostos
após a dedução da acusação (Em tal caso, poder-se-ia sustentar valerem aqui as
razões aduzidas para defender a constitucionalidade do art. 16º, n.º 3, do CPP).
Ora, uma tal limitação não a assume a norma sindicada.
4 – Finalmente, não pode deixar de considerar-se constitucionalmente
aberrante que “a diminuição das garantias de defesa” do arguido,
consubstanciadas na possibilidade de recurso para o STJ acabe por resultar, na
lógica da interpretação constitucionalmente impugnada, apenas da
operacionalidade de uma limitação, cujo sentido é apenas o de limitar os poderes
do tribunal de recurso no que toca à definição da medida pena que pode ser
aplicada ao arguido, pondo-o a coberto de qualquer agravação, quando só ele
recorra ou o Ministério Público o faça no único interesse daquele – a proibição
de reformatio in pejus –, extraindo, assim, desta garantia um efeito que lhe é
estranho e perverso, porque desfavorável ao arguido, e totalmente externo à
garantia do direito ao recurso dentro dos graus abstractamente admissíveis.
Benjamim Rodrigues
Declaração de voto
Votei vencida por entender que a norma constante da alínea f) do nº 1 do artigo
400º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é
admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de
Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª instância, o
tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um
crime a que seja aplicável pena superior a esse limite, é inconstitucional por
violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Na medida em que o direito ao recurso em processo penal, consagrado no artigo
32º, nº 1, da CRP, não impõe o direito a um triplo grau de jurisdição (ou o
direito a um duplo grau de recurso), é constitucionalmente admissível uma
restrição ao recurso, desde que não seja desrazoável, arbitrária ou
desproporcionada (cf., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional
referidos no Acórdão deste Tribunal nº 640/2004). Neste sentido, não é
arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo
Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a
gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada, assim se
justificando o disposto no artigo 400º, nº 1, alínea f), do Código de Processo
Penal.
Porém, já não respeita aquele critério – é constitucionalmente admissível uma
restrição ao recurso, desde que não seja desrazoável, arbitrária ou
desproporcionada – não admitir a intervenção daquele Supremo Tribunal, quando a
pena de prisão prevista no tipo legal de crime for superior a oito anos, mas a
pena concretamente aplicada ao arguido – insusceptível de agravação por força da
proibição da reformatio in pejus – tenha sido inferior a oito anos.
Para além de a norma em causa frustrar completamente a razão de ser de uma
proibição que encontra a sua justificação na tutela constitucional do direito ao
recurso (artigo 32º, nº 1, da CRP), traduz-se numa restrição inadmissível deste
direito, na medida em que se insere num ordenamento jurídico-processual penal
que admite o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos
condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de
1ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior
a oito anos, ao mesmo tempo que permite o recurso directo para este Tribunal
(cf. artigos 399º, 400º, nº 1, alínea f), e 432º, alínea b), do Código de
Processo Penal).
Admitindo-se o duplo grau de recurso relativamente a crimes puníveis com pena de
prisão superior a oito anos e a recorribilidade directa para a última instância
de recurso, é constitucionalmente inadmissível que não haja recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, quando esta instância já não possa aplicar pena de
prisão superior a oito anos de prisão, por se tratar de recurso interposto
somente pelo arguido. Esta restrição contende com a estratégia de defesa do
arguido, a qual pressupõe uma determinação prévia do direito ao recurso e das
condições do respectivo exercício, que o torne susceptível de reconhecimento
pelo respectivo titular no momento relevante para o seu exercício – o da
notificação do acórdão condenatório em primeira instância – e que não o
condicione ao comportamento de outros sujeitos processuais, nomeadamente, ao
comportamento do Ministério Público.
Maria João Antunes
Declaração de Voto
Votei no sentido da confirmação do juízo de
inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 628/2005, da 2.ª Secção, que
subscrevi.
1. A norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal (CPP) – “1. Não é admissível recurso: f) De acórdãos
condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de
1.ª instância, por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito
anos, mesmo em caso de concurso de infracções” – tem sido objecto de recursos de
constitucionalidade reportados a três dimensões normativas:
1) Enquanto estatui que não cabe recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça (STJ) dos acórdãos das Relações que confirmem condenações
por crimes a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos (casos em
que nem as penas abstractamente aplicáveis aos crimes singulares nem a pena
máxima aplicável ao cúmulo ultrapassa os 8 anos de prisão): esta dimensão não
foi julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 435/2001 e 104/2005;
2) Na interpretação, adoptada pelo STJ, de que, no caso
de concurso de infracções, não cabe recurso para o STJ quando as penas
parcelares de prisão abstractamente aplicáveis a cada um dos crimes singulares
não são superiores a 8 anos, mesmo que a pena única abstractamente aplicável ao
cúmulo seja superior a 8 anos de prisão: esta dimensão não foi julgada
inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 189/2001 e 490/2003 [os Acórdãos n.ºs
336/2001 e 369/2001 não julgarem inconstitucional a norma em causa remetendo
para a fundamentação do Acórdão n.º 189/2001, mas do teor desses acórdãos não
resulta claro se, nos casos apreciados, a situação era a primeira (isto é, não
havia concurso ou, havendo‑o, a pena única abstractamente aplicável não era
superior a 8 anos de prisão) ou a segunda (isto é, as penas parcelares
aplicáveis eram inferiores a 8 anos de prisão, mas a pena aplicável ao cúmulo
ultrapassava esse limite)]; e
3) Na interpretação que entende não caber recurso para o
STJ de acórdãos condenatórios da Relação por crimes abstractamente puníveis com
pena superior a 8 anos de prisão, se o recurso tiver sido interposto pelo
arguido (ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse da defesa) e a
condenação na Relação tiver sido igual ou inferior a 8 anos de prisão, por se
entender que, nessa hipótese, por força da proibição da reformatio in pejus
consagrada no artigo 409.º, n.º 1, do CPP, o STJ não poderá aplicar pena
superior a 8 anos de prisão e, neste sentido, esta pena não seria de considerar
como aplicável (equipara‑se pena aplicável a pena aplicada não agravável): esta
dimensão não foi julgada inconstitucional pelos Acórdãos n.ºs 541/2003,
495/2003, 102/2004 e 640/2004.
O caso do presente recurso respeita a esta última
situação, uma vez que o recorrente foi condenado pela autoria (para além de um
crime de detenção ilegal de arma de defesa e de um crime previsto no artigo
275.º, n.º 4, do Código Penal) de um único crime de tráfico de estupefacientes,
que é punível, nos termos do n.º 1 do artigo 21.º do Decreto‑Lei n.º 15/93, de
22 de Janeiro, com pena de prisão de 4 a 12 anos, tendo a Relação confirmado a
condenação nas penas parcelares de 6 anos, de 1 ano e de 7 meses de prisão e na
pena única de 6 anos e 6 meses de prisão aplicada na 1.ª instância e sendo o
recurso para o STJ interposto apenas pelo arguido.
Os Acórdãos n.ºs 541/2003, 495/2003 e 102/2004
apreciaram a questão de inconstitucionalidade apenas na perspectiva da não
consagração constitucional de um terceiro grau de jurisdição.
Já o Acórdão n.º 640/2004 a apreciou também na
perspectiva da violação do princípio da igualdade, face à admissibilidade de,
perante a mesma decisão da Relação, ser admissível recurso do Ministério Público
em desfavor da defesa [Salvo o devido respeito, não se me afigura correcto o
entendimento do Acórdão n.º 102/2004 de que o Tribunal Constitucional não podia
conhecer dessa questão por não constituir objecto do recurso a norma que admite
o recurso do Ministério Público; sem ultrapassar o objecto do recurso, cingido à
norma que veda o recurso do arguido, nada impede o Tribunal Constitucional de,
para dar por verificada a violação do princípio da igualdade, tomar em
consideração o regime legal que, face ao mesmo acórdão da Relação, permite o
recurso do Ministério Público em desfavor da defesa].
Foi a tese defendida nesse Acórdão n.º 640/2004, da 3.ª
Secção, que o precedente acórdão do Plenário subscreveu, em detrimento da tese
que fez vencimento no Acórdão n.º 628/2005, da 2.ª Secção, ora recorrido.
Antes de enunciar as razões da minha adesão à tese do
Acórdão n.º 628/2005, importará fazer uma breve referência à evolução que a
questão ora em causa tem tido na jurisprudência do STJ.
2. A interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do
CPP questionada no presente recurso corresponde, ao que tudo indica, a um
corrente jurisprudencial transitória do STJ, que se verificou em 2003 e 2004,
que nunca foi pacífica e que actualmente está abandonada a nível das Secções
Criminais (ao que parece, só continua a ser seguida pelo Presidente do STJ, nas
reclamações que lhe são endereçadas contra despachos de não admissão de
recursos): não foi apurada em 2005 nenhuma decisão das Secções nesse sentido,
mas apenas no sentido tradicionalmente tido como correcto de que “pena
aplicável” é a pena abstractamente prevista para sancionar o crime por que o
arguido foi condenado: cf., por último, os Acórdãos de 10 de Fevereiro de 2005,
proc. n.º 3781/04, e de 24 de Fevereiro de 2005, proc. n.º 63/05.
A consideração de que “pena aplicável” é a pena
(abstractamente) aplicável e não a pena (concretamente) aplicada corresponde ao
entendimento generalizado da doutrina (cf. Manuel da Costa Andrade, Maria João
Antunes e Susana Aires de Sousa, “Tempestividade e admissibilidade de recurso
para o Supremo Tribunal de Justiça”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
ano 13.º, n.º 3, Julho‑Setembro 2003, pp. 419‑432, em especial p. 424 e nota 7,
e autores aí citados) e sempre foi assumida pelo Tribunal Constitucional como a
que claramente decorria do texto do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP;
lê‑se no Acórdão n.º 189/2001, a propósito dessa norma: “A norma que vem
questionada refere‑se claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja
pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente
aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções, que define os casos em que
não é admitido recurso para o STJ de acórdãos condenatórios das Relações que
confirmem a decisão de primeira instância”.
A corrente jurisprudencial em que a decisão recorrida no
presente recurso se insere foi inaugurada pelo Acórdão do STJ, de 8 de Maio de
2003, proc. n.º 1224/03‑5, assim sumariado:
“1 – Sendo permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos
despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei, não é admissível
recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que
confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja
aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de
infracções.
2 – Se foi aplicada uma única pena de 5 anos e 8 meses de prisão,
inferior a 8 anos de prisão, se bem que a moldura penal abstracta fosse de 4 a
12 anos de prisão, e a Relação rejeitou o respectivo recurso, a sua decisão
deve ser havida por confirmativa da condenação.
3 – Nesse caso, não pode o arguido recorrer para o STJ, pois que
então a pena nunca poderá ser agravada (artigo 409.º do CPP) e, por essa via,
aumentada, para além de 8 anos de prisão. Essa é a pena máxima aplicável, que
coincide, por força da proibição da reformatio in pejus, com a pena aplicada,
estando presente o limite da alínea f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
4 – Já seria obviamente diferente em caso de recurso do assistente
ou do Ministério Público, sem ser no interesse exclusivo da defesa, em que pena
aplicada e aplicável não coincidiriam.”
No mesmo sentido e com a mesma fundamentação decidiram
os Acórdãos do STJ de 15 de Maio de 2003, proc. n.º 1109/03‑5, de 22 de Maio de
2003, proc. n.º 1798/03‑5, de 12 de Junho de 2003, proc. n.º 2130/03‑5, de 26 de
Junho de 2003, procs. n.ºs 1797/03‑5 e 1526/03‑5, e de 16 de Outubro de 2003,
proc. n.º 3263/03‑5, entre outros.
A tese oposta foi inicialmente desenvolvida no voto de
vencido do Cons. Pereira Madeira aposto ao citado Acórdão de 26 de Junho de
2003, proc. n.º 1797/03‑5, e foi retomada e desenvolvida na fundamentação dos
Acórdãos de 2 de Outubro de 2003, procs. n.ºs 2720/03‑5, 2401/03‑5 e 2406/03‑5,
de 9 de Outubro de 2003, proc. n.º 2851/03‑5, de 16/10/2003, proc. n.º
2604/03‑5, e de 13 de Fevereiro de 2004, proc. n.º 444/04‑5, entre outros.
A fundamentação desta última corrente, actualmente
dominante no STJ, assenta em considerações que assumem relevo do ponto de vista
da apreciação da questão de constitucionalidade que constitui objecto do
presente recurso.
Partindo do princípio geral, vigente nesta matéria, da
ampla admissibilidade dos recursos (artigo 399.º do CPP), que só consente
excepções nos casos expressamente previstos na lei, entre estes o da alínea f)
do n.º 1 do artigo 400.º, esta última previsão, justamente por força da sua
excepcionalidade, não consente a interpretação, dificilmente compatível com a
sua literalidade, que equipara “pena aplicável” a “pena aplicada” (mas
insusceptível de agravamento em recurso), operando, por via da ampliação da
excepção, uma restrição do direito de recurso do arguido (ou do recurso do
Ministério Público no interesse da defesa).
Acresce que a interpretação em causa se revela, a
diversos títulos, desrazoável, o que, acarretando ofensa ao princípio da
proporcionalidade, é susceptível de fundar um juízo de inconstitucionalidade.
Desrazoabilidade que se revela, essencialmente, a três níveis: (i) pela falta de
previsibilidade do direito ao recurso; (ii) pela violação do princípio da
igualdade de armas; e (iii) pela perversa subversão da razão de ser da proibição
da reformatio in pejus, que desvirtua o critério da pena abstractamente
aplicável adoptado pelo legislador para a identificação das situações de maior
gravidade criminal.
Quanto ao primeiro aspecto, salientou‑se na referida
declaração de voto aposta ao Acórdão do STJ de 26 de Junho de 2003: “os
critérios de recorribilidade e ou irrecorribilidade expressos no Código de
Processo Penal, para assegurarem a necessária previsibilidade do direito em
causa, são, em geral, pelas razões expostas, tributários de fixação
apriorística, por isso ligados, como penhor dessa desejável previsibilidade, às
penas abstractas aplicáveis e não, como é pretendido, de alguma forma
dependentes das penas aplicadas pelas instâncias, portanto de verificação a
posteriori e, assim, de aplicação mais ou menos empírica ou casuística,
tornando‑se, por essa via, num direito em larga medida imprevisível e incerto,
já que dependente do resultado do julgamento de cada caso concreto, o que para
uma previsão de tão largo espectro como o direito ao recurso não parece
consagrar a melhor opção legislativa”. E mais adiante:
“Não parece razoável, com efeito, até do ponto de vista
constitucional do eficaz direito ao recurso, condicionar a sua existência,
afinal, ao concreto entendimento das instâncias, que, para o bem e para o mal,
teriam ao seu alcance o poder imenso de decidir, em última instância (!), da
recorribilidade ou não da decisão por elas proferida. E muito menos, deixá‑lo na
dependência de avaliação alheia, na certeza de que o Código de Processo Penal só
admite a figura do recurso subordinado «em caso de recurso interposto por uma
das partes civis» – artigo 401.º, n.º 1.
Daí que, nomeadamente, por razões de previsibilidade e segurança
jurídica, o critério da recorribilidade ou irrecorribilidade para o Supremo
Tribunal de Justiça não possa, e não deva, ser ligado, casuisticamente, a
posteriori, às penas concretas aplicadas, antes devendo ser aferido, em
abstracto e a priori, pelas molduras legais abstractas aplicáveis.”
Ou, como se expressou o acórdão de 2 de Julho de 2003,
proc. n.º 1882/03‑3:
“Sendo o recurso uma garantia constitucional, o Tribunal de
recurso, como qualquer outro Tribunal competente em matéria penal, deve também
ser predeterminado por lei. E predeterminado por lei tem de significar que, no
momento relevante para o exercício do direito de recurso, o Tribunal tem de
estar determinado e prefixado por derivação directa, pura e simples, da lei, e
não com a determinação condicionada por meras contingências do processo, como
seria o caso de ser ou não admissível recurso conforme o Ministério Público
recorresse ou não. O momento relevante do ponto de vista do titular do direito
de recurso é coincidente com o momento em que é proferida a decisão de que se
pretende recorrer: é esta que contém e fixa os elementos determinantes para a
decisão que o interessado toma sobre o exercício do direito. O Tribunal de
recurso e as condições de exercício do direito têm de estar determinados nesse
momento, não podendo, salvo afectação dos princípios do recurso e da
predeterminação do Tribunal, estar dependentes de condições subsequentes, não
domináveis pelo titular do direito e inteiramente contingentes, como seja, no
caso, a circunstância de o Ministério Público interpor ou não recurso. A
predeterminação do Tribunal e as condições do exercício do direito têm, pois, de
estar fixadas no momento relevante: seja, por exemplo, na acusação, nos casos em
que o Ministério Púbico usa da faculdade conferida pelo artigo 16.°, n.° 3, do
CPP, seja também no recurso, quando o titular do direito está em condições de o
exercer. A determinação ex post, contingente e ocasional, do tribunal de
recurso, ou mesmo sobre a existência do direito ao recurso, contraria, de modo
marcado, os referidos princípios, não podendo valer uma interpretação que seja
simultaneamente contra a letra e os princípios.”
Quanto à segunda perspectiva – violação do princípio da
igualdade de armas –, consignou‑se na citada declaração de voto que, na
interpretação criticada, “verificando‑se dupla conforme, isto é, convergência
de posições entre as instâncias quanto à condenação, só à acusação fica
reservado o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, direito que,
assim, é incompreensivelmente negado ao condenado, o que, privilegiando sem
razão aparente a «parte acusadora», coloca a defesa numa injustificada situação
de inferioridade e incomportável desigualdade processual”. Acrescentando:
“Nem se argumente, ex adverso, que, se o Ministério Público decidir
recorrer, então já o arguido o poderá fazer também em igualdade de armas ... e
que, enfim, a existir aqui alguma ofensa a tal princípio, ela compensaria de
algum modo a que – pendendo a favor do arguido – já resulta da
irrecorribilidade em caso de dupla conforme absolutória contemplada na alínea d)
do n.º 1 do mesmo artigo 400.º
É que, por um lado, não se vê onde possa residir a reclamada
igualdade de posições processuais ou de armas, quando o direito ao recurso do
arguido é subtraído à sua própria avaliação e fica dependente de ponderação e
avaliação alheias, e por outro, tratando‑se, ali – na dupla conforme
absolutória – de preservar a absolvição, dá‑se, por essa via, corpo visível à
regra da liberdade consagrada, nomeadamente, no artigo 27.º, n.º 1, da Lei
Fundamental – e, sobretudo, a garantia constitucional de processo criminal,
decorrente da «dignidade da pessoa humana» (artigo 1.º), de que «todo o arguido
se presume inocente» (artigo 32.º, n.º 2) – o que não sucede no caso vertente,
em que a violação favorece a parte acusadora (na decorrência de uma qualquer
presunção de culpabilidade do arguido) em detrimento precisamente da parte
constitucionalmente presumida inocente.
Além de que, e salvo o devido respeito, a haver, ali, violação de
tal princípio, não seria digno da melhor solução jurídica, remediar um mal,
contrapondo‑lhe outro igual ... Finalmente, a dupla conforme absolutória – ao
contrário também do que sucede na situação ora em apreço – aporta consigo a
reposição definitiva da paz social de algum modo afectada pelo caso, o que, só
por si, justificaria a discriminação positiva que a lei lhe confere.”
Por último, a interpretação criticada implica uma
utilização perversa do instituto da proibição da reformatio in pejus. Na
verdade, segundo a opção do legislador, “a gravidade do crime (que justifica a
intervenção do STJ no recurso) resulta, não da pena efectivamente aplicada, mas
da moldura penal abstractamente aplicável, pois ao longo do processo é esta
moldura que acarreta para o arguido determinadas sujeições processuais muito
penosas, respeitantes, por exemplo, à aplicação e duração da prisão preventiva.
Daí que violaria o princípio da lealdade processual considerar‑se o crime como
«muito grave» (face à pena abstractamente aplicável) para impor deveres ao
arguido, mas «pouco grave» (face à pena efectivamente aplicada) para lhe retirar
o direito de recorrer”, consequência esta última que implica volver a proibição
da reformatio in pejus (que visa justamente fomentar o uso do recurso, afastando
a inibição que poderia resultar do receio de o arguido ver a sua condenação
agravada) em prejuízo do próprio condenado, negando‑lhe o direito ao recurso.
3. Recenseada a jurisprudência relevante, para a questão
em análise, do Tribunal Constitucional (supra, n.º 1) e do STJ (supra, n.º 2), é
tempo de, sinteticamente, enunciar os fundamentos deste voto dissidente.
Não se questiona a afirmação de que a Constituição não
impõe ao legislador ordinário a instituição de um triplo grau de jurisdição, ou
de um duplo grau de recurso, em processo criminal.
Mas entende‑se – como o Tribunal Constitucional sempre
tem entendido – que se o legislador, apesar de a tal não estar
constitucionalmente obrigado, prevê, em certas situações, esse triplo grau ou
duplo recurso, na respectiva regulamentação não lhe é consentido adoptar
soluções desrazoáveis, desproporcionadas ou discriminatórias.
E, a meu ver, essa desproporcionalidade, face ao
critério normativo objecto do presente recurso, é patente a vários níveis,
atingindo um grau de intolerabilidade que justifica a emissão de juízo de
inconstitucionalidade.
É, desde logo, flagrante a desigualdade de tratamento
entre a defesa e a acusação, quando, face a uma mesma decisão condenatória (por
crime punível com pena de prisão superior a 8 anos, mas concretamente fixada em
medida inferior a 8 anos), não se admite, à partida, o recurso do arguido (ou do
Ministério Público no exclusivo interesse da defesa) e se consente sempre o
recurso do Ministério Público (em desfavor da defesa) e do assistente. Nem se
diga, como se faz no n.º 7 do precedente acórdão, que “interposto recurso com o
objectivo do agravamento da pena aplicada em 2.ª instância, o arguido, como
recorrido, tem as mesmas possibilidades de pugnar pela redução da pena ou pela
absolvição de que disporia se fosse ele o recorrente”. A questão não é essa e
seria, aliás, dificilmente imaginável que alguém ousasse defender que,
interposto recurso pela acusação (pública ou particular), a intervenção do
arguido, como recorrido, só pudesse consistir em pugnar contra o agravamento da
condenação, ficando tolhido de defender a redução da pena ou a sua absolvição. A
questão está antes em que a interpretação em causa retira ao arguido o direito
de autonomamente interpor recurso, ficando a sua capacidade impugnatória
inteiramente dependente da estratégia dos seus adversários processuais.
Em segundo lugar, a mesma interpretação não assegura a
devida predeterminação dos direitos de defesa e do tribunal competente. No
momento relevante para o efeito (quando é notificado do acórdão condenatório da
Relação), o arguido não sabe se pode interpor recurso para o STJ ou não. Tudo
vai depender da conduta processual futura de terceiros: do assistente e do
Ministério Público. Se estes interpuserem recurso (e se, analisado o interposto
pelo Ministério Público, se concluir que o mesmo é desfavorável ao arguido –
caso contrário nem sequer o recurso do Ministério Público é admissível, salvo se
também o assistente tiver recorrido), surge para o arguido o direito de
recurso. Se o não fizerem, essa faculdade impugnatória fica‑lhe vedada. Neste
contexto, não vejo como não seja bem visível que a interpretação em apreço
impede o arguido de, no momento em que é notificado do acórdão da Relação, saber
se pode recorrer para o STJ. Viola os princípios do recurso e da
predeterminação do tribunal a colocação do direito de o arguido recorrer para o
STJ na dependência “de condições subsequentes, não domináveis pelo titular do
direito e inteiramente contingentes, como seja, no caso, a circunstância de, no
caso, o Ministério Público [ou o assistente] interpor ao não recurso”, como se
expressou o citado acórdão do STJ de 2 de Julho de 2003, sublinhando que quer a
existência de recurso criminal, como garantia constitucional, quer a
determinação do tribunal de recurso, como qualquer outro tribunal competente em
matéria penal, tem de estar, no momento relevante para o exercício do direito de
recurso, prefixado por derivação directa, pura e simples, da lei. A determinação
ex post, contingente e ocasional, inteiramente dependente de condutas
processuais de terceiros, quer do tribunal recurso, quer da própria existência
de recurso, afronta flagrantemente aqueles princípios constitucionais.
Finalmente, é desrazoável utilizar perversamente o
instituto da proibição da reformatio in pejus – que, ao afastar o risco
(potencialmente inibidor da interposição de recurso) de o arguido, apelando para
tribunal superior, ver agravada a sua condenação, visa justamente fomentar o
exercício da faculdade de recorrer – para tolher ou limitar o direito de
recurso. Ao que acresce a adopção de uma dualidade de interpretação do critério
da “pena aplicável”, como indiciador da gravidade criminal, sempre em desfavor
do arguido. O legislador associou aos casos mais graves, equilibradamente,
maiores ónus e maiores garantias para o arguido: para os crimes mais graves,
consente‑se o recurso a meios de prova potencialmente mais lesivos de direitos
do arguido (por exemplo, intercepções telefónicas) e a imposição de medidas de
coacção mais graves e duradouras, mas simultaneamente reforçam‑se as garantias
impugnatórias. Neste contexto, surge como desrespeitador desse equilíbrio, por
exemplo, considerar como relevante para exasperar os prazos de duração máxima de
prisão preventiva o critério da pena abstractamente aplicável e simultaneamente
abandoná‑lo, substituindo‑o pelo critério da pena concretamente aplicada não
agravável por força do funcionamento anómalo da proibição da reformatio in
pejus, para negar o direito de recurso do arguido. Um arguido que viu confirmada
pela Relação a sua condenação em pena de prisão inferior a 8 anos por crime
abstractamente punível com pena superior a esse limite, continua a estar sujeito
ao alargamento do prazo máximo de prisão preventiva de 2 anos para 30 meses, por
“se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito
anos” (artigo 215.º, n.º 2, do CPP), mas, se pretender recorrer para o STJ, essa
faculdade é‑lhe negada por se entender que não lhe é “aplicável” pena superior a
8 anos de prisão.
Em suma: a interpretação normativa questionada, pela
intolerável desrazoabilidade, indeterminação e discriminação entre acusação e
defesa que encerra, viola o princípio da proporcionalidade, a que o legislador
ordinário está constitucionalmente vinculado na regulação dos recursos que
preveja, mesmo que não se trate de recursos constitucionalmente impostos.
Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
Votei vencida no presente Acórdão, essencialmente pelas razões que constituem a
fundamentação do Acórdão nº 628/2005, da qual fui Relatora.
1. Essas razões não foram, desde logo, superadas pela argumentação do
Ministério Público, recorrente, nos presentes autos.
Contra a fundamentação do Acórdão nº 628/2005, o Ministério Público invocou a
situação em que o arguido é condenado numa pena concreta de dois anos de prisão
pela prática de um crime ao qual corresponde a pena cujo limite máximo
ultrapassa os oito anos de prisão, para a comparar com um arguido ao qual é
aplicada a pena de seis anos pela prática de um crime cujo limite máximo da pena
seja também de seis anos de prisão. Sublinhou o recorrente, a partir dessa
comparação, que o arguido ao qual é aplicada a pena de dois anos de prisão pode
recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, ao passo que o arguido condenado em
seis anos de prisão não pode interpor tal recurso. Pretendeu, deste modo,
realçar a pretensa incongruência da aferição da gravidade de um crime em função
da “pena hipoteticamente aplicável” e não em função da pena realmente aplicada,
justificando, assim, do ponto de vista constitucional a solução normativa em
causa neste processo.
No entanto, o entendimento segundo o qual a referência à pena aplicável é uma
referência à medida da pena em abstracto não se pode confundir com o
entendimento segundo o qual tal referência se reportará à “gravidade hipotética
ou abstracta do crime”, como pretendeu o Ministério Público. Na verdade, a
selecção dos crimes cuja gravidade fundamenta o recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça assenta no critério da gravidade do ilícito que a norma sancionatória
exprime em geral para uma categoria de factos. A relevância da gravidade do
ilícito não é afectada pela sua graduabilidade, conforme resulta da alínea a) do
nº 2 do artigo 71º do Código Penal, o qual determina que a medida da pena em
concreto tem em conta “o grau de ilicitude do facto”. Esse critério, a par do
que se estabelece no artigo 71º, nº 1, segundo o qual a determinação da medida
da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do
agente e das exigências da prevenção, corresponde à previsão de uma
individualização da pena, em função de circunstâncias que envolvem
acidentalmente a realização do facto, mas que não alteram essencialmente a
natureza da gravidade do ilícito, ou seja, a pertença do facto a uma categoria
determinada.
Entendimento diverso abriria espaço para a sobreposição da configuração
acidental concreta do facto à sua qualificação como um certo tipo de ilícito.
Assim, a pena aplicada apenas revela o limite concreto da responsabilidade por
culpa do agente, dentro de um quadro de gravidade do ilícito previamente
definido pelo legislador.
Não é pois adequada ao sistema do Código, sedimentado numa sólida tradição
quanto à teoria geral do crime, a equiparação ou comparação invocada pelo
Ministério Público, já que os níveis de gravidade dos dois ilícitos configurados
são diferentes. É essa diferença que justifica (ou fundamenta) o regime do
recurso, e que permite confundir uma mera variação individualizadora da pena
dentro de uma moldura com as alterações qualitativas da própria moldura,
correspondentes já a um diferente tipo de ilícito. É aliás esta a razão que
permitirá, na fase de recurso, o agravamento da pena concreta para além do
limite dos oito anos, nestes últimos casos. E é, em última análise, essa
perspectiva que justifica a recorribilidade na perspectiva do legislador
De resto, se algum problema de constitucionalidade se colocar no caso deverá ser
apreciado no processo próprio e não no presente, no qual o crime é punível com
pena cujo limite máximo ultrapassa os oito anos de prisão.
O recorrente invocou ainda o critério da sucumbência do processo civil para
explicar o entendimento que fez vencimento no Acórdão nº 640/2004. Mas, em
Direito Penal, é justificável que seja a gravidade do ilícito e a medida da pena
correspondente e não critérios baseados no valor pecuniário o critério
fundamental de referência para a recorribilidade. De resto, o Tribunal
Constitucional sempre considerou que os critérios do recurso do processo civil
não têm aplicação necessária no processo penal e vice‑versa (cf.,
exemplificativamente, os Acórdãos nºs 429/99, 722/98 e 201/94, todos em
www.tribunalconstitucional.pt).
O recorrente referiu, por fim, que, na perspectiva que defende, não está em
causa a atribuição de uma prerrogativa estatutária ao Ministério Público. No
entanto, no Acórdão impugnado também se considerou que não estava em causa o
estatuto do Ministério Público, “mas apenas um funcionamento anómalo da
proibição da reformatio in pejus”, o que corresponde a um discurso diverso.
2. No presente Acórdão, a fundamentação acolhida também não superou, a meu ver,
os fundamentos do juízo de inconstitucionalidade a que o Acórdão nº 623/2005
chegou. Baseou‑se tal fundamentação em três argumentos, que não são susceptíveis
de rebater, em termos lógico‑jurídicos, as razões a favor da
inconstitucionalidade.
Assim, a invocação da não exigência constitucional de um triplo grau de
jurisdição ou de um duplo grau de recurso não constitui qualquer argumento que
possa justificar a norma que admita a possibilidade de duplo grau de recurso
para agravar a responsabilidade do arguido, determinada pela acusação.
A não imposição constitucional de um duplo grau de recurso não justifica uma
diferenciação de posições entre a acusação e a defesa no processo penal devido a
um funcionamento anómalo da proibição da reformatio in pejus.
Admitir este tipo de argumento é o mesmo que reconhecer que é uma resposta
satisfatória à eventual violação da igualdade pela previsão legal de uma
diferente idade de reforma entre homens e mulheres, o facto de uma certa idade
da reforma não ser constitucionalmente imposta.
Em segundo lugar, não é uma resposta adequada à questão da violação da igualdade
e do direito ao recurso o facto de nos casos em que o recurso seja admissível –
apenas aqueles em que é interposto com o objectivo do agravamento pela Acusação
– o arguido ter “as mesmas possibilidades de pugnar pela redução da pena ou pela
absolvição de que disporia se ele fosse recorrente”. Com efeito, a violação da
igualdade dá‑se a montante quanto à possibilidade de recorrer que é subtraída à
defesa, criando‑se uma espécie de recurso subordinado. Também, não está,
directamente em causa a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça se
reservar, em via de recurso, à apreciação dos casos mais graves, aferindo a
gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada. Não é essa
dimensão normativa sequer questionada. O que está antes em causa é que a
possibilidade anterior seja determinável estritamente pelo Ministério Público ou
pelo Assistente, através de um funcionamento indevido da proibição da reformatio
in pejus.
Por outro lado, é óbvio que o recorrente não pode prever quais as suas
possibilidades processuais de actuação no momento em que é notificado do acórdão
da segunda instância e que essa situação é limitativa da orientação da defesa.
3. Finalmente, entendo que a dimensão normativa em causa, destruindo a
universalidade do direito ao recurso, altera o equilíbrio entre os sujeitos
processuais, Ministério Público ou Assistente, por um lado, e Arguido, por outro
lado, afectando a estrutura acusatória do processo na fase do recurso, em que
não podem predominar nem o interesse nem o poder processual de uma das posições.
Abre, assim, um directo confronto com o artigo 32º, nº 5, da Constituição, que
prevê aquela estrutura acusatória, como modo imparcial de definir o Direito.
Maria Fernanda Palma
Declaração de voto
Acompanhando a posição tomada no acórdão recorrido, que subscrevi, votei no
sentido da confirmação do juízo de inconstitucionalidade dele constante pelas
razões que sumariamente passo a referir.
Diferentemente do que decorre da exposição da tese que fez vencimento (nº 4 do
acórdão), tal não resulta de se pretender que o direito ao recurso consagrado no
artigo 32º, nº 1 da Constituição exigiria por si, sem mais, a possibilidade de
recorrer vedada pela interpretação normativa em análise. Também creio que aquele
preceito não impõe qualquer triplo grau de jurisdição. Mas tenho igualmente por
assente que, quando preveja um grau de recurso a que não está
constitucionalmente obrigado, o legislador não deixa de estar vinculado a não
consagrar soluções desproporcionadas ou discriminatórias.
E é a meu ver o que ocorre quando se admite ao Ministério Público ou ao
assistente a interposição de recurso em desfavor da defesa e se nega essa
possibilidade ao arguido (ou ao mesmo Ministério Público, no exclusivo interesse
da defesa). Desigualdade que ocorre ademais num contexto algo paradoxal, pela
circunstância de virem assim a reverter contra o arguido, no caso que ora nos
ocupa, as consequências de um instituto (o da reformatio in pejus) criado com o
objectivo de o proteger. Acresce que a tese que fez vencimento coloca igualmente
o arguido, no momento em que lhe é notificada uma decisão, perante a
indeterminação das condições de que depende o exercício do seu direito ao
recurso, um vez que só lhe é aberta tal faculdade se ela for inicialmente
exercida, contra si, pelo Ministério Público ou pelo assistente – o que implica,
ademais, que elementos essenciais do seu estatuto processual passem a estar
dependentes do comportamento (que ele não domina e naquele momento nem sequer
conhece) da sua contraparte.
A desrazoabilidade e flagrante desproporcionalidade da situação assim criada ao
arguido carecem a meu ver de qualquer justificação, sendo por isso, geradoras da
desconformidade constitucional que lhe era assacada no acórdão recorrido.
Rui Manuel Moura Ramos