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Processo n.º 260/03
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
A - Relatório
1 – A., identificada com os sinais dos autos, recorreu, para o Tribunal Central
Administrativo, da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que
julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente relativamente
a uma correcção de liquidação de IRC relativo ao exercício de 1989 – fls. 272 a
281 –, “em virtude de com ela não se conformar quanto à matéria de direito, pois
entende ter havido errónea apreciação dos factos provados e errónea qualificação
jurídica [d]a aplicação do direito”.
2 - Subidos os autos, o juiz Relator do Tribunal Central
Administrativo proferiu, em 17 de Setembro de 2001, o despacho que infra se
transcreve:
“Julgo que a recorrente só discorda do entendimento do juiz acerca dos factos
que deu como provados na sentença recorrida.
Com efeito, diz a alegação de recurso, «não merece qualquer censura a matéria
fixada como provada», mas «entende ter havido errada apreciação dos factos
provados» - cfr. fls. 294.
Assim, afigura-se ser exclusivamente de direito a matéria versada no presente
recurso, pelo que este TCA não será competente em razão da hierarquia para dele
conhecer.
Sobre esta questão excepcional ouçam-se as partes, em 10 dias”.
3 - Respondeu a recorrente afirmando que “em face do disposto no
artigo 280.º, n.º 1 do CPPT, será competente para conhecer do recurso o Supremo
Tribunal Administrativo – Secção de Contencioso Tributário”.
4 - Ouvidas as partes, o Juiz Desembargador Relator proferiu, em 3
de Dezembro de 2001, decisão sumária onde julgou incompetente, em razão da
hierarquia, o Tribunal Central Administrativo para conhecer do objecto do
recurso, declarando competente, em consequência, a Secção de Contencioso
Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. Tal decisão assentou nos
seguintes fundamentos:
“(…)
2. Segundo o artigo 3.º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(Decreto-Lei n.º 267/85 de 16-7) a incompetência do Tribunal, em qualquer das
suas espécies, logra prioridade de conhecimento em relação a qualquer outra
questão - cf. também o disposto no artigo 103.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, nos termos do artigo 45.º do Código de Processo Tributário,
a infracção das regras de competência em razão da hierarquia e da matéria
determina a incompetência absoluta do Tribunal; e a incompetência absoluta do
Tribunal é de conhecimento oficioso, podendo ser arguida pelos interessados ou
suscitada pelo Ministério Público ou pelo Representante da Fazenda Pública até
ao trânsito em julgado da decisão final.
Dentro da competência material, os tribunais estão hierarquizados por um
critério de divisão de funções.
À Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo compete
funcionalmente conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de
1.ª instância, excepto quando o recurso tenha por exclusivo fundamento matéria
de direito, situação em que a competência será, per saltum, da Secção de
Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo - cf. os termos da
alínea b) do n.º 1 do artigo 32.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º, ambos
do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Decreto-Lei n.º 129/84 de
27-4), na redacção do Decreto-Lei n.º 229/96 de 29-11, e também o que dispõe o
artigo 167.º do Código de Processo Tributário.
Para aferir da competência do tribunal em razão da hierarquia deve atender-se
aos fundamentos do recurso, e, portanto, tem de olhar-se para as conclusões da
respectiva alegação, onde se contêm esses fundamentos, pois são elas que definem
e delimitam o objecto do recurso - cf. os artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.ºs 1
e 3, do Código de Processo Civil.
Se em tais conclusões não se questionar, por insuficiência, excesso ou erro, a
matéria de facto considerada provada na decisão recorrida, mas apenas a
interpretação ou a qualificação jurídica que desses factos foi feita naquela
decisão, o recurso versa exclusivamente matéria de direito, não podendo ser
conhecido por este Tribunal Central Administrativo, por força das sobreditas
disposições legais - cf. a este respeito, entre outros, o acórdão desta Secção
deste Tribunal Central Administrativo, de 20-10-1998, proferido no recurso n.º
567/98.
No caso sub judicio, basta ler e atentar no teor das conclusões da alegação do
recurso, para logo concluirmos seguramente que em causa está apenas a
interpretação e a aplicação da lei aos factos constantes da sentença recorrida -
factos que não vêm questionados.
Com efeito, diz, inequivocamente, a ora recorrente, na sua alegação de recurso,
que «a divergência entre a recorrente e a Administração Fiscal assenta
unicamente na qualificação a dar no tratamento a conferir ao montante recebido
pela impugnante pela venda da fracção A do prédio urbano sito na Av.ª
--------------, n.ºs ---- a -----, em Lisboa, inscrito na matriz predial urbana
da freguesia de ---------- sob o artigo ------», e que «não merece qualquer
censura a matéria fixada como provada», antes «entende ter havido errada
apreciação dos factos provados».
A ora recorrente, reitera, aliás, «que o recurso de apelação foi por si
interposto da douta sentença», «em virtude de com ela não se conformar
efectivamente quanto à matéria de direito», pelo que «será competente para
conhecer do recurso o Supremo Tribunal Administrativo, Secção do Contencioso
Tributário» - cf. fls. 311.
A divergência da ora recorrente relativamente à sentença recorrida reside apenas
na interpretação que esta faz da lei, e dos princípios legais que ela tem por
aplicáveis ao caso.
Deste modo, o recurso versa exclusivamente matéria de direito, pelo que este
Tribunal Central Administrativo é incompetente em razão da hierarquia para dele
conhecer, cabendo essa competência à Secção de Contencioso Tributário do Supremo
Tribunal Administrativo”.
5 - A recorrente foi notificada da decisão por carta registada
enviada no dia 4 de Dezembro de 2001 – cf. fls. 315.
6 - Em 15 de Janeiro de 2002, o Juiz Desembargador Relator proferiu
um despacho de remessa dos autos para o Supremo Tribunal Administrativo – cf.
fls. 316.
7 - No Supremo Tribunal Administrativo, após ter sido considerado,
em 8 de Maio de 2002, que o processo estava “pronto para julgamento”, foi
prolatado um despacho, datado de 3 de Julho de 2002, onde se afirma que:
“A remessa do processo ao S.T.A. dependia de requerimento do recorrente (art.
18.º, n.º 2, do CPPT).
Esse requerimento não foi feito.
Trata-se de uma irregularidade processual, pelo que ordeno a remessa do
processo ao T.C.A. nos termos do artigo 19.º C.P.P.T..
(…)”.
8 - A recorrente, notificada do teor desse despacho, apresentou, ao
abrigo do disposto nos artigos 9.º e 111.º, n.º 2, da LPTA, Reclamação para a
Conferência, com base na seguinte argumentação:
“1. O douto despacho de que ora se reclama, determina que os autos baixem ao
Tribunal central Administrativo, em virtude de ter sido apurado que o Recorrente
não apresentou o requerimento a que se refere o artigo 18º, n.º 2 do CPPT,
tratando-se de uma irregularidade processual;
2. O Recorrente não se conforma com este despacho, porquanto considera que tal
irregularidade há muito se encontra sanada, quer pela remessa que foi feita pelo
T.C.A., quer pelo douto despacho de fls. 321 do Exm.º Sr Juiz-Conselheiro
Relator que o considerou pronto para julgamento, quer, ainda, pelo interesse em
agir demonstrado pelo Recorrente;
3. Com efeito, no requerimento de fls. 311, a Recorrente considerou ser o S.T.A.
competente para conhecer o recurso de apelação que instaurou, demonstrando,
assim, o seu interesse em agir junto daquele Tribunal;
4. Em 22.02.2002, a Recorrente foi notificada da distribuição do recurso nesse
Supremo Tribunal e para efectuar o preparo inicial, o que fez, renovando, assim,
o seu interesse em agir;
5. Concluso que foram os autos ao Exm.º Sr. Juiz-Conselheiro Relator em
16.04.2002, veio este a proferir despacho, em 8.05.2002, de visto e pronto para
julgamento;
6. Considera a Recorrente que, ao ter sido proferido este despacho de 8.5.2002,
o Sr. Juiz-Conselheiro Relator aceitou a competência do S.T.A. e sanou as
irregularidades processuais anteriores;
7. Acresce que, no entender da Recorrente, as normas processuais devem ser
interpretadas e aplicadas segundo o princípio constitucional de acesso ao
direito e à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º da Constituição da
República), pelo que, in casu, deverá a norma processual ser interpretada e
aplicada de modo a salvaguardar-se o interesse em agir da Recorrente, isto é,
considerar-se sanada a irregularidade processual.
8. Assim, pelos actos e despachos descritos e praticados no âmbito deste
recurso, entende a Recorrente que o S.T.A. aceitou a competência para conhecer
do recurso, devendo considerar-se suprida a irregularidade processual agora
invocada como fundamento do despacho reclamado.
9. Requer, em consequência, a Recorrente que seja revogado o despacho reclamado
e o recurso inscrito na tabela para julgamento”.
9 - O Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 19 de
Fevereiro de 2003, indeferiu a reclamação para a conferência, estribando-se na
seguinte fundamentação:
“(…)
Não há dúvida [de] que a recorrente, após a decisão do TCA a declarar-se
incompetente, não apresentou o requerimento a requerer a remessa dos autos a
este STA, como exige o art. 18.º, n.º 2, do CPPT.
Não há dúvida [de] que foi o relator que, oficiosamente, mandou remeter o
processo a este STA, sem que norma alguma dê esses poderes oficiosos aos
relatores do TCA.
Não há dúvida [de] que foram praticadas duas irregularidades – falta de
requerimento e falta de poderes oficiosos de remessa do processo a este STA.
Este STA não tem poderes para suprir o requerimento nem pode dispensar o
despacho [d]o relator a deferir esse requerimento.
Logo, há uma irregularidade que este STA não pode sanar, pelo que se
verificam os pressupostos de aplicação do disposto no art. 19.º do CPPT: mandar
baixar o processo para as irregularidades serem supridas, se ainda o puderem
ser.
Foi o que fez o relator no seu despacho de fls. 321 – cumpriu rigorosamente
o disposto no art. 19.º do CPPT.
O que vai acontecer depois, no TCA, não compete a este STA estar a
adiantar.
(…)”.
10 - Inconformada com esta decisão, vem agora a recorrente interpor,
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, na sua actual versão, recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade, porquanto “o acórdão em crise aplicou a norma que se extrai
do art. 18.º, n.º 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário, no sentido
de que, tendo o recurso sido enviado oficiosamente pelo TCA para o STA, não tem
este Tribunal Superior poderes para suprir o requerimento a requerer a remessa
dos autos ao STA, nem pode dispensar o despacho do relator a deferir esse
requerimento, norma aquela que viola as regras constitucionais do art. 20.º da
Constituição (…)”.
11 - Admitido o recurso, a recorrente, sustentando que “é pois
inconstitucional a norma que se extrai do artigo 18.º, n.º 2 do CPPT, na
interpretação segundo a qual o relator do Tribunal «a quo» não pode remeter o
processo para o Tribunal «a[d] quem» oficiosamente, carecendo sempre de
requerimento do particular, por violação das normas e princípios constitucionais
presentes nos art.ºs 20.º e 13.º da Constituição”, sintetiza a sua motivação nas
seguintes conclusões:
“1. O ora recorrente viu o seu recurso não ser apreciado pelo Tribunal
competente, porque segundo interpretação do STA de fls. ..., ao Relator do
Tribunal recorrido é vedado enviar oficiosamente o processo ao Tribunal ad quem,
mesmo depois de o recorrente se ter manifestado expressamente como sendo este o
competente, fazendo, assim, uma interpretação da norma que se extrai do art.º
18°, n.° 2, do CPPT.
2. Esta interpretação da norma é inconstitucional porque viola o princípio do
acesso ao direito e aos Tribunais (art.º 20.° da Constituição) e o princípio da
igualdade (art.º 13.° da Constituição) ao limitar sem justificação no processo
Tributário o direito ao recurso, limitação sem paralelismo no processo civil e
administrativo.
3. A referida interpretação normativa está viciada com inconstitucionalidade
material, directa e por acção, numa clara e evidente violação de direitos e
princípios constitucionalmente tutelados, como sejam o do direito à acção, da
igualdade e da justiça, com consagração, os dois primeiros, no art.º 20.° e
art.º 13.° da Constituição e o terceiro com consagração nos art.ºs 1°, 2° e 9°
da Constituição”.
Corridos os vistos, cumpre agora decidir.
B - Fundamentação
12 - A questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente vem
delimitada em torno da “norma que se extrai do artigo 18.º, n.º 2 do CPPT, na
interpretação segundo a qual o relator do Tribunal «a quo» não pode remeter o
processo para o Tribunal «a[d] quem» oficiosamente, carecendo sempre de
requerimento do particular, por violação das normas e princípios constitucionais
presentes nos arts. 20.º e 13.º da Constituição”.
Tal constitui, de facto, a ratio decidendi do juízo agora impugnado.
Contudo, importa começar por precisar que tal norma acaba por resultar da
conjugação do artigo 18.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo
Tributário com o disposto no artigo 19.º do mesmo diploma, pelo que, para a
decisão do presente problema, cumpre efectuar a transcrição de ambos os
preceitos legais.
Dispõe o artigo 18.º, n.os 1 e 2, que:
“1. A decisão judicial da incompetência territorial implica a
remessa oficiosa do processo ao tribunal competente no prazo de 48 horas.
2. Nos restantes casos de incompetência, pode o interessado, no
prazo de 14 dias a contar da notificação da decisão que a declare, requerer a
remessa do processo ao tribunal competente”.
Por sua vez, o artigo 19.º afirma que:
“O tribunal ou qualquer serviço da administração tributária para
onde subir o processo, se nele verificar qualquer deficiência ou irregularidade
que não possa sanar, mandá-lo-á baixar para estas serem supridas”.
No juízo da Recorrente, a norma em crise colidiria, na essência, com “o
princípio constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva
(artigo 20.º da Constituição da República), violando também o princípio “da
igualdade e da justiça” constitucionalmente tutelados.
Tal é, pois, o que importa apurar.
13 - Como foi já salientado pela jurisprudência deste tribunal, “não
obstante a Constituição da República não adiantar expressamente nenhum princípio
em matéria de recursos, tal matéria não é constitucionalmente neutra, nem
significa que a lei possa discipliná-la de forma arbitrária” (cf. Acórdãos n.os
51/88 – publicado no Diário da República II Série, de 22 de Agosto de 1988 e nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11.º, pp. 597 e ss. – e 199/96 -
inédito).
Assim, tem-se por certo que se é verdade que o legislador ordinário goza de uma
ampla esfera de liberdade na conformação do sistema de recursos nos diversos
âmbitos dogmáticos do direito, também não pode negar-se que a imposição de
regras processuais manifestamente inapropriadas, desrazoáveis e arbitrárias se
lhe encontra constitucionalmente vedada de molde a garantir uma adequada
efectivação do direito de acesso à justiça e aos tribunais.
Ora, no que toca à garantia constitucional de acesso ao direito e à justiça, o
Tribunal Constitucional já teve, por diversas vezes, oportunidade de explicitar
quais são as suas exigências, para o efeito de com elas confrontar normas que
impõem ónus processuais, resultando da consideração de tal jurisprudência que
não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição
de ónus processuais às partes, desde que, na linha do que supra se referiu, tais
encargos não sejam, nem arbitrários, nem desproporcionados, quando confrontada a
conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente
omissão.
Em jeito exemplificativo, atente-se nos acórdãos n.ºs 122/2002 e
255/98, publicados respectivamente, no Diário da República II Série, de 29 Maio
de 2002, e de 6 de Novembro de 1998 (este último, também, em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 39º vol. p. 495).
Explicitou-se, no primeiro aresto que:
«O direito processual constitui um encadeamento de actos com vista à consecução
de um determinado objectivo, qual seja o de se obter uma decisão judicial que
componha determinado litígio, o que, consequentemente, impõe, por um lado, que
as ‘partes’ assumam posições equiparadas para desfrutarem de igualdade
processual para discretear sobre as razões de facto e de direito apresentadas
por uma e outra (cf., sobre o ponto, Manuel de Andrade, Noções Elementares de
Processo Civil, t. I, próprio.364 e 365, e Acórdão nº 223/95, deste tribunal,
publicado no Diário da República, 2ª série, de 27 de Junho de 1995), e, por
outro, para se alcançar uma justa e equitativa decisão, mister é que haja
determinada disciplina, para, além de mais, se conseguir que a composição do
litígio se não ‘perca’ por razões ligadas a livre alvedrio das mesmas ‘partes’,
alvedrio esse que, no limite, poderia conduzir a uma ‘eternização’ de actos com
repercussão na não razoabilidade da tomada de decisão em tempo útil.
Daí que o processo, todo o processo – aqui se incluindo, obviamente o processo
civil –, para além de dever ser um due process of law (v., de entre outros, os
Acórdãos deste Tribunal n.ºs 249/97 e 514/98, publicados no Jornal Oficial, 2ª
série, de 17 de Maio de 1997 e de 10 de Novembro de 1998, respectivamente),
tenha de obedecer a determinadas formalidades que, elas mesmas, não podem deixar
de ser consideradas, numa certa perspectiva, como constituindo, inclusivamente,
factores ou meios de segurança, quer para as ‘partes’, quer para o próprio
tribunal.
As formalidades processuais ou, se se quiser, os formalismos, os ritualismos, os
estabelecimentos de prazos, os requisitos de apresentação das peças processuais
e os efeitos cominatórios são, pois, algo de inerente ao próprio processo. Ponto
é, porém, que a exigência desses formalismos se não antolhe como algo que, mercê
da extrema dificuldade que apresenta, vai representar um excesso ou uma
intolerável desproporção, que, ao fim e ao resto, apenas serve para
acentuadamente dificultar o acesso aos tribunais, assim deixando, na prática,
sem conteúdo útil a garantia postulada pelo n.º 1 do artigo 20º da Constituição.
Afora casos como esse, a exigência das formalidades processuais não poderá,
destarte, ser vista como a prescrição de obstáculos à livre e desmedida actuação
processual das ‘partes’».
E, nessa mesma linha, já antes o acórdão n.º 255/98 havia
precisamente explicitado que:
«As opções de legislador ordinário ao regular o processo de um
determinado ramo de direito são variadas, reconhecendo a jurisprudência
constitucional uma ampla liberdade de conformação àquele, desde que esteja
garantido às partes o acesso a, pelo menos, um grau de jurisdição. Salvo no que
toca ao processo penal, a liberdade de conformação do legislador na estruturação
dos pressupostos de recorribilidade das decisões para outras instâncias - quando
existentes - tem como limite a observância escrupulosa dos princípios da
igualdade e da proporcionalidade (cfr. sobre o sentido desta jurisprudência, por
último, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª ed.,
Lisboa, 1997, págs. 376-380; e o acórdão n.º 673/95 do Tribunal Constitucional,
in Diário da República II Série, n.º 68, de 20 de Março de 1996).
Este entendimento é sublinhado, de resto, nas alegações da entidade
recorrente, quando se sintetiza aí a orientação da jurisprudência
constitucional:
'... quando a lei de processo preveja que o acesso aos tribunais se possa
realizar em mais de um grau, terá o legislador ordinário de abrir a todas essas
várias e sucessivas vias judiciárias, garantindo que o direito ao recurso se
possa efectivar sem discriminação alguma, designadamente quanto aos
economicamente carenciados. Do mesmo modo que lhe não é constitucionalmente
lícito estabelecer restrições arbitrárias ou desproporcionadas que eliminem o
direito ao recurso em determinados processos ou situações, impondo um regime
discriminatório, não legitimado por justificação objectiva plausível - e
portanto violador do princípio da igualdade; ou proceder a uma redução
intolerável ou arbitrária do direito ao recurso, suprimindo «em bloco» o próprio
sistema vigente à data da entrada em vigor da Constituição da República
Portuguesa e, de algum modo, nela implicitamente consagrado através da
escalonada previsão de uma hierarquia dos vários órgãos jurisdicionais a que
alude a Lei Fundamental.' (...)
Na verdade, um regime tão estrito parece justificar-se pela necessidade de
impedir que recaia sobre o tribunal a necessidade de se substituir às partes,
exercendo como que uma tutela substitutiva, bem como pela necessidade de evitar
uma displicência processual das partes e dos seus representantes, de modo a que
não sejam praticados actos inúteis nem se gerem incidentes processuais
escusados».
Tendo assim em consideração tais linhas de força, direccionadas à composição e
delimitação da esfera tutelar que a Constituição assinala ao direito de acção
junto dos tribunais, deve reter-se que a exigência constante do artigo 18.º, n.º
2, do Código de Procedimento e Processo Tributário – impondo que nos casos de
incompetência (não territorial) do tribunal, seja o interessado a requerer a
remessa do processo ao tribunal competente no prazo de 14 dias – não se afigura
arbitrária, desrazoável ou manifestamente gravosa em termos de precludir o
direito de acção e o acesso a uma tutela jurisdicional efectiva.
Tal regime – que já constava da anterior regulamentação processual fiscal
(artigo 47.º do Código de Processo Tributário), seguindo de perto o disposto na
Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (artigo 4.º da LPTA) – encontra um
claro fundamento e justificação porquanto transfere para os interessados uma
ponderação quanto ao prosseguimento da acção quando estão em causa conteúdos que
contendem com a competência dos tribunais em razão da matéria e da hierarquia –
e que determinam a incompetência absoluta do tribunal –, assim se permitindo que
seja a parte interessada a decidir, em função da avaliação das condições
objectivas e subjectivas determinantes da interposição de recurso, se pretende
levar o litígio ao conhecimento do tribunal competente, ou se, deixando
transitar em julgado o despacho que declare a incompetência do tribunal, se
conforma com tal decisão, sem que com isto tenha de requerer a não remessa ao
tribunal superior.
Não se afigura, pois, desrazoável e sem fundamento o ónus que impõe ao
interessado que, uma vez notificado da decisão que declare a incompetência do
tribunal, requeira a remessa dos autos ao tribunal competente, para que o
julgamento da causa aí se realize, nem, do mesmo passo, se pode considerar tal
ónus processual como desproporcionado – mesmo considerando aqui o prazo
estabelecido para a apresentação do requerimento (que, aliás, permite claramente
a prática do acto em tempo útil) –, no sentido de fazer recair sobre a parte a
satisfação de um encargo desmesurado, limitador ou impeditivo do acesso ao
recurso, cabendo assim na esfera de liberdade do legislador quanto à modelação
do sistema de recursos que a Constituição acaba por autorizar.
14 - Não se ignora que a Recorrente acaba por se insurgir de forma mais
peremptória ou imediata contra a norma que, na ausência de tal requerimento e em
face da remessa oficiosa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo,
fundamentou a decisão desse Tribunal ordenar a remessa do processo ao Tribunal
Central Administrativo, para, nos termos do artigo 19.º do Código de
Procedimento e Processo Tributário, ser suprida tal irregularidade.
Contudo, também esta norma – na qual o Tribunal a quo louvou a ratio decidendi
do juízo recorrido –, em relação próxima com a justificação já apresentada no
ponto anterior, não contraria qualquer imperativo constitucional, maxime,
importando uma insustentável preclusão do direito de acção, vedando de forma
insustentável o acesso aos tribunais.
Na verdade, o cumprimento da norma sindicanda assentou, tout court, na
consideração de que o acto ou diligência em falta não podia ser praticado pelo
tribunal ora recorrido – pelo facto do Supremo Tribunal Administrativo “não ter
poderes para suprir o requerimento” nem para “dispensar o despacho do relator a
deferir esse requerimento” , assim se ordenando que os autos fossem devolvidos
ao Tribunal Central Administrativo “para as irregularidades serem supridas, se
ainda o puderem ser”.
Neste ponto há que reconhecer que a justificação para a exigência
do requerimento exigido pelo artigo 18.º, n.º 2, do Código de Procedimento e
Processo Tributário não pode deixar de ser também aqui mobilizável no sentido da
não admissibilidade da remessa oficiosa dos autos com a afirmação da consequente
irregularidade.
Assim, da interpretação normativa sufragada pelo Supremo Tribunal
Administrativo, ao exigir o cumprimento de um ónus processual legalmente
estabelecido e cuja imposição se deve ter por admissível face ao conteúdo
normativo dos preceitos constitucionais, não se pode extrair que saia afectada
intoleravelmente a garantia do acesso aos tribunais, porquanto, tal norma, assim
interpretada, não obstaculiza, de per se, o acesso à decisão jurisdicional do
problema controvertido, posto que dela apenas resulta a afirmação da competência
do Tribunal Central Administrativo quanto à sobredita irregularidade, tendo o
Supremo, de resto, afirmado explicitamente que “o que vai acontecer depois, no
TCA, não compete (...) estar a adiantar”.
Nesta perspectiva e porque na dimensão normativa aplicada não está sequer
antecipada qualquer solução normativa concernente à eventual impossibilidade de
cumprimento do referido ónus de apresentação do requerimento, em cuja projecção
a recorrente pudesse ter fundado quaisquer expectativas, não será também de
considerar que ela afecte o princípio da tutela da confiança, ínsito no
princípio do Estado de direito democrático (cf. sobre tal princípio, na
jurisprudência do Tribunal, os Acórdãos n.os 287/90 e 232/91, publicados nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, vols.17º, págs. 159 e
segs. e 19º, págs. 341 e segs.; 299/95 e 499/99, publicados no Diário da
República II Série, respectivamente, de 22 de Julho de 1995 e 12 de Fevereiro de
2000; especificamente sobre o problema da tutela da confiança relativamente ao
estabelecimento de prazos de caducidade, v. Acórdão n.º 554/03, publicado no
Diário da República II Série, de 18 de Fevereiro de 2004).
15 - É certo que o Recorrente veio, num momento anterior ao da decisão do
Tribunal Central Administrativo que se julgou incompetente para o conhecimento
da causa – em sequência do incidente suscitado pelo Desembargador Relator –
reconhecer expressamente como competente o Supremo Tribunal Administrativo.
Não está, porém, em causa uma interpretação que, ao julgar
suficiente tal manifestação do recorrente, ordenasse e determinasse a subida dos
autos considerando requerida a respectiva remessa, não tendo sido essa a
interpretação dada pelo Supremo Tribunal Administrativo, que, na ausência do
despacho a deferir a remessa dos autos, a considerou oficiosa.
Nem está em causa uma outra interpretação por aplicação da qual o
STA tivesse considerado que a peça processual de fls. 311 ( de 27/09/2001) –
resposta à questão prévia da incompetência em razão da hierarquia – corporizava
já o requerimento exigido pelo art.º 18º, n.º 2, do Código de Procedimento e
Processo Tributário ou sequer se essa interpretação não teria sido a mais
adequada no caso dos autos.
Concordando com o alegado pelo recorrente quando este afirma que “o
direito de acesso aos Tribunais consagrado de modo ímpar no art.º 20.º da
Constituição, inclui no seu conteúdo conceptual, entre outros, a proibição de
indefesa, que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do
particular perante os órgãos administrativos ou judiciais (...). A violação do
direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito
de defesa[s], verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas
processuais (...) acarreta a impossibilidade do particular exercer os seus
direitos de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus direitos” –,
o certo é que a exigência de cumprimento das regras processuais por parte do
Supremo Tribunal Administrativo, em que se consubstanciou a norma aplicada pela
decisão recorrida, não dificulta – em termos que se devam ter por injustificados
–, nem impede – atendendo ao sentido prático que dela emerge – o acesso aos
tribunais.
Basta, para o concluir, verificar que o Tribunal de 2ª Instância,
perante a referida peça processual de fls. 311, poderia não considerar-se
obrigado a efectuar a remessa dos autos ao STA e que, tendo-o feito, não é de
excluir que a recorrente tivesse podido insurgir-se contra a remessa oficiosa.
Não pode, pois, dizer-se que a exigência de requerimento não teria
desempenhado qualquer função processualmente útil.
Nestes termos, sendo constitucionalmente justificável a solução
legal supra considerada e havendo justificação para a não imposição da remessa
oficiosa em face do particular regime de incompetência que está em causa, não se
pode afirmar que a norma aplicada pelo tribunal a quo, redunde num formalismo
desproporcionado, arbitrário, injustificável e atentatório dos direitos que
assistem à Recorrente.
16 - Por fim, quanto à pretensa violação do princípio da igualdade,
pode afirmar-se que não se vislumbra que a norma aplicada pela decisão
recorrida padeça de inconstitucionalidade por atentar especificamente contra o
disposto no artigo 13.º, designadamente por criar (ou redundar n)uma situação de
desigualdade arbitrária ou discriminatória em relação a casos ou situações que
se devam ter por materialmente análogas, para além do que já se deixou firmado
quanto à própria configuração do pertinente sistema legal.
Com relevo para tal questão o recorrente afirma, nas suas alegações,
que “a diferença de tratamento é gritante, o Estado impõe uma regra
manifestamente original, no processo em que ele próprio é parte, regra que o
beneficia de modo injustificado face às regras em qualquer outro tipo de
processo. Ora, não se descobre fundamento material para tal diferença de regimes
que leva à preterição do direito de acção e ao contraditório”.
Contudo, também tal argumento não procede.
Em primeiro lugar, a norma sindicanda não conduz à preterição do
direito de acção e ao exercício do contraditório. Não o faz quando estipula um
condicionamento – não desproporcionado, inútil ou arbitrário – para a remessa
dos autos ao tribunal competente, nem tão-pouco quando considera insanável tal
irregularidade, limitando-se a remeter para o Tribunal Central Administrativo um
juízo sobre tal questão.
Depois, como decorre do teor normativo do preceito legal, tal
exigência não cria qualquer diferença de tratamento entre o Estado e os
particulares, porquanto a norma impõe a todos “os interessados” o referido ónus,
além de que tal regra, como se explicitou, não só é, de todo, “manifestamente
original”, como também encontra uma clara razão de ser em face do tipo de
incompetência que está em causa.
Finalmente e também pelos motivos já expostos, a norma sindicanda,
só por si, não “beneficia [o Estado] de modo injustificado face às regras em
qualquer outro tipo de processo”, pois sempre que estiver em causa a
incompetência absoluta do tribunal, sempre se mantém, nos termos dos artigos
atrás referidos, a exigência de que a remessa seja feita a requerimento do
interessado, não ficando também aquele liberto do cumprimento desse ónus
processual.
C - Decisão
17 - Destarte, por tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide
negar provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente com 15 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2005
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Maria Fernanda Palma (vencida por me parecer manifesta a violação do princípio
da proporcionalidade).
Mário José de Araújo Torres ( vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Votei vencido, por entender que a interpretação
normativa impugnada viola o direito de acesso aos tribunais, na perspectiva do
“princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e
preclusões impostos pela lei de processo às partes”.
Como assinala Carlos Lopes do Rego (“Os princípios
constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e
cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em Homenagem ao
Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, págs.
835-859), “a garantia da via judiciária – ínsita no artigo 20.º da Constituição
e a todos conferida para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos – envolve, não apenas a atribuição aos interessados legítimos do
direito de acção judicial (...), mas também a garantia de que o processo, uma
vez iniciado, se deve subordinar a determinados princípios e garantias
fundamentais: os princípios da igualdade, do contraditório e (após a revisão
constitucional de 1997) a regra do «processo equitativo», expressamente
consagrada no n.º 4 daquele preceito constitucional”. O referido autor destaca
ainda o “princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e
preclusões impostas pela lei de processo às partes”, o qual, no seu entender,
“pode fundar-se cumulativamente no princípio da proporcionalidade das
restrições (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição) ao direito de acesso à
justiça, quer na própria regra do processo equitativo”. Da análise da
jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta garantia da via judiciária,
o autor citado extrai a proposição de que:
“(...) os regimes adjectivos que prescrevem requisitos de natureza
estritamente procedimental ou «formal» dos actos das partes – isto é,
conexionados, não propriamente com a formulação essencial das pretensões ou
impugnações dos litigantes, mas tão-somente com o modo de apresentação ou
exposição dos respectivos conteúdos – devem:
a) Revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo, não
traduzindo exigência puramente formal, arbitrariamente imposta, por destituída
de qualquer sentido útil e razoável quanto à disciplina processual;
b) Conformar-se – no que respeita às consequências desfavoráveis
para a parte que as não acatou inteiramente – com o princípio da
proporcionalidade: desde logo, as exigências formais não podem impossibilitar
ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a actuação procedimental
facultada ou imposta às partes; e as cominações ou preclusões que decorram de
uma falta da parte não podem revelar-se totalmente desproporcionadas –
nomeadamente pelo seu carácter irremediável ou definitivo, impossibilitador de
qualquer ulterior suprimento – à gravidade e relevância, para os fins do
processo, da falta imputada à parte;
(...).”
A exigência, resultante da norma constante do n.º 2 do
artigo 18.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, de o interessado, perante decisão
judicial que declare a incompetência do tribunal por motivo diverso do da
incompetência territorial, dever requerer, no prazo de 14 dias a contar da
notificação daquela decisão, a remessa do processo ao tribunal declarado
competente, tem como justificação – como correctamente se assinala no
precedente acórdão – possibilitar à parte interessada ser ela “a decidir, em
função da avaliação das condições objectivas e subjectivas determinantes da
interposição de recurso, se pretende levar o litígio ao conhecimento do tribunal
competente, ou se, deixando transitar em julgado o despacho que declare a
incompetência do tribunal, se conforma com tal decisão, sem que com isso tenha
de requerer a não remessa ao tribunal superior”. [Anote-se que, no processo
perante os tribunais administrativos, a regra similar, que constava do artigo
4.º, n.º 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho – LPTA), com a diferença de o prazo de 14 dias se contar
da data do trânsito em julgado da decisão que declare a incompetência, foi
substituída pela regra, constante do artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, do Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de
Fevereiro (CPTA), da remessa oficiosa do processo ao tribunal administrativo
competente, seja qual for a causa da incompetência – e não apenas no caso de
incompetência territorial, como sucedia anteriormente –, com a única excepção do
caso em que o tribunal competente não pertença à jurisdição administrativa,
hipótese em que a remessa do processo ao tribunal competente continua a depender
de requerimento do interessado, mas já não da concordância da outra parte, como
sucedia anteriormente, por força da remissão do n.º 4 do artigo 4.º da LPTA para
o artigo 105.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.]
Ora, essa finalidade da regra em causa mostra-se
plenamente preenchida no caso dos autos, desde logo pela expressa manifestação
de concordância, por parte da recorrente, com o entendimento do Relator no
Tribunal Central Administrativo (TCA) de que competente para conhecer do recurso
jurisdicional por ela interposto era o Supremo Tribunal Administrativo (STA), e,
depois, pela actuação processual da recorrente, ao proceder ao pagamento da
taxa de justiça devida pela distribuição do processo no STA.
A apontada razão de ser da norma em causa mostra-se
realizada: a recorrente optou inequivocamente por considerar de seu interesse o
prosseguimento do recurso perante o tribunal tido por competente.
Em rigor, bastava que, no requerimento em que manifestou
a sua concordância com o entendimento do Relator do TCA, tivesse acrescentado
uma expressão do género “pelo que requer a remessa do processo ao STA” para que
nenhuma dúvida existisse quanto à admissibilidade dessa remessa, já que sempre
foi entendimento dos tribunais administrativos (incluindo os tributários) ser
admissível o exercício antecipado da faculdade em causa. Isto é: sempre se
entendeu que, apesar de a lei referir que o requerimento de remessa do processo
ao tribunal tido por competente devia ser apresentado no prazo de 14 dias a
contar da notificação (no caso do CPPT) ou do trânsito em julgado (no caso da
LPTA) da decisão que declarou a incompetência do tribunal inicialmente
demandado, nada obstava ao exercício antecipado desse direito, designadamente na
própria resposta ao parecer do juiz ou relator que tivesse suscitado a questão
da incompetência.
O eventual não rigoroso cumprimento desse requisito
meramente formal, num quadro em que se pode dar por satisfeita a razão de ser
substantiva da regra legal, e tendo em vista que a provável consequência dessa
falha será o entendimento (de certa forma pré-anunciado na seguinte passagem do
acórdão recorrido: “Logo, há uma irregularidade que este STA não pode sanar,
pelo que se verificam os pressupostos de aplicação do disposto no artigo 19.º do
CPPT: mandar baixar o processo para as irregularidades serem supridas, se ainda
o puderem ser” – sublinhado acrescentado) de que o requerimento que a recorrente
venha a apresentar no TCA, após baixa do processo do STA, a solicitar nova
remessa ao STA virá a ser julgado extemporâneo, por já há muito esgotado o prazo
de 14 dias subsequente à notificação da decisão que declarou a incompetência do
TCA, determina, a meu ver – salvo sempre o respeito devido pela opinião
contrária – a desproporcionalidade desta consequência, com irremediável
preclusão do direito da recorrente a que o mérito do seu recurso jurisdicional
seja apreciado, face à natureza venial da falta cometida, e a irracionalidade da
exigência do preenchimento formal de um requisito cuja razão se ser já se mostra
satisfeita.
A interpretação normativa coonestada pelo precedente
acórdão mostra-se, assim, funcionalmente desadequada, por destituída de
qualquer sentido útil e razoável quanto à disciplina processual, e
desproporcionada, na perspectiva da relação entre a diminuta gravidade da falha
cometida e as consequências que provavelmente irá determinar, com a irremediável
e definitiva perda do direito da recorrente ao recurso jurisdicional
interposto.
Por isso, sustentei que tal interpretação viola o
“princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e
preclusões impostas pela lei de processo às partes”, extraível do princípio da
proporcionalidade das restrições ao direito de acesso à justiça e da regra do
processo equitativo (artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da
Constituição).
2. O precedente acórdão considerou ainda ser
constitucionalmente conforme o entendimento do acórdão recorrido no sentido de
ser inadmissível a intervenção oficiosa dos tribunais envolvidos: o TCA, a
ordenar a remessa do processo ao STA sem prévio pedido expresso da recorrente
nesse sentido; o STA, a considerar supridas essas irregularidades.
Este entendimento convoca uma outra perspectiva de
encarar a questão: a da afirmação do princípio do inquisitório (ou da
oficiosidade) como decorrência do direito de acesso à justiça e da garantia de
tutela jurisdicional efectiva, com particular relevância no âmbito da justiça
administrativa (englobando a tributária).
Embora emitidas a outro propósito (intervenção do
tribunal na correcção de erro na identificação do acto contenciosamente
recorrido), são inteiramente pertinentes, no contexto do presente recurso, as
seguintes considerações de J. M. Sérvulo Correia (“Errada identificação do autor
do acto recorrido. Efectividade da garantia constitucional de recurso
contencioso – Anotação ao Acórdão de 22 de Setembro de 1992 do Tribunal
Tributário de 2.ª Instância”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano
54, III, Dezembro de 1994, e republicado em Estudos de Direito Processual
Administrativo, Lex, Lisboa, 2002, págs. 243-253):
“5. Como pelo Acórdão da 1.ª Secção, de 20 de Abril de 1989 (Caso
«Vitória do Povo»), julgou o Supremo Tribunal Administrativo, quando o n.º 2 do
artigo 20.º da Constituição garante o acesso aos tribunais para defesa dos
direitos, ou o n.º 3 (hoje, n.º 4) do artigo 268.º garante o recurso
contencioso, tem de entender-se que garantem uma defesa eficaz de direitos e um
recurso eficaz [in Acórdãos Doutrinais, n.º 339, pág. 336].
A eficácia do meio processual constitucionalmente garantido depende
naturalmente em boa parte do âmbito dos poderes do juiz na condução do
processo, e isso tanto mais nos processos dos contenciosos administrativo e
tributário, onde a paridade real das posições processuais da parte pública e da
parte privada é mais difícil de consagrar. Como bem observam Gomes Canotilho e
Vital Moreira, a plenitude do princípio da garantia jurisdicional
administrativa requer o alargamento dos poderes tradicionalmente reconhecidos
aos juízes do contencioso administrativo (e tributário, acrescentamos nós). A
tutela jurisdicional terá de consistir numa protecção efectiva, que só poderá
alcançar-se reconhecendo o juiz administrativo (e tributário) como juiz de
amparo [cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra,
1993, pág. 942].
Mas, se esse papel constitucionalmente exigido ao juiz
administrativo (em sentido amplo, isto é, compreendendo também o juiz
tributário) terá necessariamente de passar pela titularidade de uma gama de
novos poderes que assegurem remédios jurisdicionais ultrapassando o estreito
quadro tradicional, por maioria de razão ele impõe o emprego diligente pelo juiz
dos poderes de direcção do processo que o legislador já lhe atribuía: um
emprego guiado pelo imperativo da máxima preservação das oportunidades de
realização da justiça material.
Como a doutrina contemporânea reconhece, a preservação dos meios de
discussão jurisdicional dos actos de poder (Offenstehen des Rechtswegs)
encontra-se estreitamente relacionada com o modo da tramitação do processo
perante o tribunal. E a efectividade da protecção jurisdicional não é
compatível com a imposição de obstáculos desproporcionados de ordem processual
(unangemessenen Verfahrensrechtlichen Hindernisse) [cfr. Pieroth/Schlink,
Grundrechte- Staatsrecht, II, 5.ª ed., Heidelberg, 1989, pág. 262].
6. No âmbito do exercício do poder inquisitório – que abarca outros
planos do processo que não só o da realização da prova – dispõe o juiz
administrativo do poder de fazer evitar que um erro do recorrente (quase sempre
de técnica jurídica) na identificação do autor do acto recorrido erga um
obstáculo irracional à realização da justiça material.
O princípio do inquisitório é um dos princípios condutores do
recurso contencioso de anulação. Ele significa que o juiz exerce um papel
activo na direcção do processo, contribuindo para superar as limitações à
justiça material que poderiam resultar das falhas de conhecimento ou de
diligência processual das partes [cfr. Ule, Verwaltungsprozessrecht, 9.ª ed.,
Munique, pág. 133; Vedel/Delvolvé, Droit Administratif, 2.ª ed., Paris, 1990,
pág. 481].
A exigência de justiça material no Direito Público – que resulta
não só do principio do Estado de Direito mas também das disposições conjugadas
dos artigos 205.º, n.ºs 1 e 2, e 214.º, n.º 3, da Constituição – não permite que
a decisão do tribunal administrativo ou fiscal seja preparável apenas através
das iniciativas e dos impulsos processuais das partes. A plenitude da função
garantística da justiça administrativa impõe que o princípio do inquisitório
veja a sua aplicação salvaguardada como instrumento da justiça material [cfr.
Berg, “Grundsätze des verwaltungsgerichtlichen Verfahrens”, in Festschrift für
Christian-Friedrich Menger, Berlim, 1985, pág. 543].
Uma vez instaurado o processo, não fica interditada a iniciativa
das partes, que, designadamente, podem requerer diligências probatórias. É
normal que estas não sejam reduzidas à passividade. Mas é ao juiz que pertence
tomar ou fazer tomar as iniciativas adequadas para encaminhar o processo para a
fase do julgamento [cfr. Chapus, Droit du Contentieux Administratif, 2.ª ed.,
Paris, 1990, pág. 481].
7. O princípio do inquisitório deve pois ser posto ao serviço da
efectividade do recurso como objecto de garantia constitucional. Sem o
exercício do poder imparcial de direcção do processo pelo juiz, tornar-se-á em
muitos casos menos provável a constituição de um resultado materialmente justo
pela sentença final. Mas, quando a Constituição garante o recurso contencioso,
não pode deixar de o fazer em vista de um resultado que é o do possível
asseguramento da justiça administrativa material a cada cidadão. O acesso ao
tribunal não teria por si só grande significado se não se reunissem todos os
instrumentos capazes de fundar uma razoável expectativa de que a justiça
processual terá como desfecho a justiça material.
O princípio do inquisitório é um de tais instrumentos. É certo que a
sua aplicação não poderia ser de tal maneira alargada em detrimento do
princípio dispositivo que fosse retirada à margem de livre impulso processual
dos particulares a função garantística que também lhe assiste. Não obstante
isso, num sistema jurídico como o português, o princípio do inquisitório é
também em boa medida um corolário da função objectivista do recurso contencioso
da anulação. (...)
8. Já antes da entrada em vigor da LPTA, que deu formulação escrita
a esse princípio, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo se fixara
no sentido de permitir, em caso de erro desculpável, a correcção da
identificação do autor do acto recorrido.
Ao estabelecerem essa linha jurisprudencial, os nossos tribunais
administrativos alinharam com uma tendência detectável por parte de órgãos
congéneres de outros países qualificáveis como Estados de Direito.
Em Itália, por exemplo, não obstante o preceito legal que impõe que
a autoridade recorrida seja individualizada com exactidão sob pena de
inadmissibilidade insanável do recurso, a jurisprudência limitou o rigor de
tal consequência aos casos em que o erro na indicação tenha provocado
incerteza absoluta na individualização do sujeito ou do órgão [cfr. Cassarino,
Manuale di Diritto Processuale Amministrativo, Milão, 1990, pág. 211].
Esta ideia de que o erro na identificação só releva na medida em que
provoque a impossibilidade de trazer à lide uma das partes necessárias
corresponde por seu turno a uma das mais pujantes linhas de renovação do
processo contencioso administrativo contemporâneo: a da sobreposição do
imperativo da justiça material aos conceitualismos formalistas que
desnecessariamente inibem a reposição da legalidade nas situações concretas
[cfr. Nigro, “Il Giudice Amministrativo Oggi”, in La Riforma del Processo
Amministrativo, Milão, 1980, designadamente pág. 29]. É o processo que deve
servir a justiça material e não o contrário. O valor segurança põe, é certo,
limites à relativização das exigências de carácter meramente formal ou
instrumental. Mas tais limites devem confinar-se àquelas situações em que a
confiança de outros particulares merece ser tutelada ou em que, sem a sua
observância, fique prejudicado o contributo que os mecanismos processuais
deverão prestar à existência de condições de racionalidade da decisão
jurisdicional.”
No presente caso, a actuação do Relator do TCA, ao
determinar a remessa do processo ao STA, por ele considerado como competente,
com a expressa concordância da recorrente, corresponde a um adequado
entendimento do papel do juiz administrativo (incluindo o tributário), como
garante activo da efectividade da tutela jurisdicional que a Constituição
assegura aos administrativos. Inversamente, a posição do STA, coonestada pelo
precedente acórdão, ao considerar irregular aquela actuação e ao recusar-se a
suprir as pretensas irregularidades, mostra-se indiferente ao propósito de
“sobreposição do imperativo da justiça material aos conceitualismos
formalistas”, a que se encontram associados os princípios antiformalista, pro
actione ou pro habilitate instantiae.
Na verdade, no contexto do presente caso, nenhum direito
ou posição jurídica das partes envolvidas nem a racionalidade da decisão
judicial a proferir impediam que se considerassem supridas as eventuais
irregularidades processuais verificadas. Este suprimento, pelo contrário, surge
como uma exigência da prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de
mera forma, corolário da garantia constitucional da tutela jurisdicional
efectiva.
Também por estas razões votei no sentido do provimento
do recurso.
Mário José de Araújo Torres