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Procº nº 609/97. Plenário. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. No processo, pendente pelo Tribunal de comarca de Santa Maria da Feira e referente às próximas eleições à Câmara Municipal daquela cidade, na sequência de um fax remetido àquele Tribunal pelo cidadão A., o respectivo Juiz, por despacho de 23 de Outubro de 1997, solicitou ao mandatário do Partido Social Democrata-PPD/PSD que fosse esclarecida a categoria profissional e local de trabalho do candidato B. que, na lista apresentada por aquele Partido, figurava em segundo lugar.
Na sequência dessa solicitação o referido mandatário veio indicar que tal candidato era perito de fiscalização tributária, sendo o seu local de trabalho a 2ª Repartição de Finanças do concelho de Santa Maria da Feira, juntando uma 'Declaração', passada pelo chefe daquela Repartição, na qual se referiu que o dito candidato tinha a categoria de perito de fiscalização tributária de 2ª classe e exercia a sua actividade na mencionada Repartição como Adjunto do respectivo Chefe, desenvolvendo a sua actividade profissional 'na
área Coordenação/controlo e execução de tarefas de serviço interno' .
Em 29 dos mesmos mês e ano exarou o citado Juiz despacho por intermédio do qual, tendo em conta o estipulado nos artigos 93º, 94º e 97º, nº
1, alínea i), do Decreto Regulamentar nº 42/ /83, de 20 de Maio, e na alínea a) do nº 1 do artº 4º do Decreto- -Lei nº 721-B/76, de 29 de Setembro, julgou inelegível o candidato B., já que das disposições daquele Decreto Regulamentar se havia de extrair que o mesmo deveria ser tido como um funcionário de finanças que exercia funções de chefia.
2. Tendo desse despacho reclamado o candidato, o aludido Juiz, por despacho de 7 de Novembro de 1997, indeferiu a reclamação.
É do assim decidido que vem interposto o vertente recurso no qual o impugnante, em síntese, sustenta:-
que as funções que actualmente exerce - as de Adjunto do Chefe da 2ª Repartição de Finanças do concelho de Santa Maria da Feira - são efectivamente, por força do prescrito no artº 42º, nº 1, do Decreto-Lei nº 408/93, de 14 de Dezembro, tidas como o desempenho de um cargo de chefia;
todavia, a inelegibilidade ditada pala alínea a) do nº 1 do artº 4º do D.L. nº 701-B/76, no respeitante aos funcionários de finanças que desempenhem funções de chefia, não poderá ser analisada por critérios meramente formais, antes o devendo ser por motivos assentes em base teleológica, a fim de se descortinarem as razões de ordem material que a ditam, já que as inelegibilidades constituem restrições ao exercício de um direito fundamental;
se, aquando da edição do Decreto-Lei nº 701-B/76, os poderes dos chefes das repartições de finanças eram muito amplos, de entre eles avultando o poder de lançar e liquidar impostos, alguns deles constitutivos das receitas dos municípios, o que justificaria a inelegibilidade constante daquela alínea, o que é certo é que, com a designada Reforma Fiscal de 1988, tais poderes de lançamento e de liquidação deixaram de ser atribuídos àqueles funcionários;
como o recorrente desempenha funções na área de coordenação/controlo e execução de tarefas de serviço interno, não tem contacto directo com o público no âmbito delas, o que, aliado àquela falta de poderes, significa que não há o perigo da captatio benevolentiae dos eleitores;
resultando, pois, que não haverá hoje razões materiais para a inelegibilidade em causa e, de todo o modo, porque a circunstância de um funcionário de finanças com funções de chefia ser candidato à eleição de uma câmara municipal não pode ser vista como algo que possa atentar à independência e imparcialidade no exercício das suas funções, a subsistência daquela inelegibilidade, ditada pela alínea a) do nº 1 do artº 4º do D.L. nº 701-B/76, no respeitante a tais funcionários, deve perspectivar-se como inconstitucional por violação dos princípios da igualdade, de participação política, do direito de acesso a cargos públicos e de não ser prejudicado pelo exercício de cargos públicos.
Cumpre decidir.
II
1. De harmonia com a já várias vezes mencionada alínea a) do nº 1 do artº 4º do D.L. nº 701-B/76, não podem ser eleitos para os órgãos do poder local, entre outros que agora não vem ao caso, os funcionários de finanças com funções de chefia.
Como tem sido realçado por este Tribunal (cfr., por entre outros, o Acórdão nº 528/89, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
14º volume, 333 e seguintes), a partir da 2ª Revisão Constitucional a razão de ser daquele preceito deve ser perspectivada como radicando, quer no afastamento do perigo da captatio benevolentiae, quer na necessidade de garantir a isenção, independência e desinteresse pessoal dos titulares de cargos políticos.
Na evolução da sua jurisprudência, e relativamente aos funcionários judiciais, este órgão de administração de justiça veio, embora com votos dissidentes, de entre os quais o do ora relator, a considerar que, sendo a razão material da sua inelegibilidade fundada no afastamento do perigo da captatio benevolentiae, a mesma só deveria ser aceite relativamente ao âmbito local, ou seja, só deveria constituir restrição ao direito de ser eleito para os
órgãos autárquicos da área onde os funcionários judiciais desempenhavam, como tais, as respectivas funções.
Por intermédio da Lei nº 9/95, de 7 de Abril, tocantemente
àqueles mesmos funcionários, o nº 2 do artº 4º do D.L. nº 701-B/76 veio excepcionar da inelegibilidade ditada pela alínea a) do seu nº 1 a situação daqueles 'que se candidatem a órgãos do poder local sediados em área de jurisdição diferente daquela onde exercem a função judicial'.
Essa alteração legislativa levou a que os Juízes dissidentes da maioria, em recente aresto, tirado em 13 do corrente no Procº nº 604/97
(Acórdão nº 6 78/97, ainda inédito), tivessem aceite que a alteração legislativa introduzida pela dita Lei nº 9/95 se havia de repercutir na situação dos funcionários de finanças com funções de chefia, já que diferentes se não postavam as razões de inelegibilidade para uns e para outros, razões essas que se suportam em atalhar o perigo decorrente de tais funcionários, por virtude das funções que exercem, poderem influenciar os eleitores.
Neste contexto, a inelegibilidade em apreço - reportada a funcionários de finanças com funções de chefia - há-de ser vista como incidindo, e tão só, no âmbito local, à semelhança da excepção consagrada para os hoje designados secretários de tribunais superiores e oficiais de justiça no nº 2 do artº 4º do D.L. nº 701-B/76.
2. Ora, in casu, o candidato José Fernando Moreira exerce funções como adjunto de chefe de repartição de finanças de um concelho a cuja câmara se candidata.
Desta arte, a situação de que curam os autos, perante a postura interpretativa deste Tribunal, cai no âmbito da alinea a) do nº 1 do artº 4º do D.L.nº 701-B/76, norma que foi aquela com base na qual a decisão ora impugnada veio a afastar o referido candidato da lista apresentada à Câmara Municipal de Vila da Feira pelo Partido Social Democrata.
2.1. Anote-se, desde já, que, muito embora as disposições legais a que o despacho sob censura apelou, ínsitas no Decreto Regulamentar nº 42/83, se não encontrem revogadas ex vi da alínea b) do artº 57º do Decreto-Lei nº 408/93, este último diploma, tendo em conta (como se refere no seu preâmbulo) a 'reforma fiscal, iniciada em 1986 com a introdução do imposto sobre o valor acrescentado
(IVA) e prosseguida em 1989 com a substituição do sistema de tributação cedular pelo da tributação unitária do rendimento e pela contribuição autárquica', veio introduzir algumas acentuadas alterações nos serviços da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos.
Com, de algum modo, idêntica justificação à carreada
àquele preâmbulo, o ora impugnante intenta sustentar que as funções desempenhadas por um adjunto de chefe de repartição de finanças não são de molde a, caso se candidate a um órgão de poder local abrangido na área territorial onde tais funções são exercidas, poder influenciar os eleitores e, em consequência, a inelegibilidade prescrita pela alínea a) do nº 1 do artº 4º do D.L.nº 701-B/76, quando aplicável àquela espécie de funcionários, constituiria uma restrição constitucionalmente insolvente.
Torna-se claro que, mais não fosse em face dessa argumentação, se impõe ao Tribunal, atentos os apertados limites que o legislador constituinte concedeu ao legislador ordinário para este poder impôr inelegibilidades, saber qual o leque de funções que aquela categoria de funcionários pode legalmente desempenhar e se esse desempenho tem a potencialidade de exercer influência no eleitorado.
É esse o passo que se irá agora dar.
2.2. A Direcção-Geral das Contribuições e Impostos - serviço do Ministério das Finanças cujo objectivo é o de executar a política fiscal e a quem compete a liquidação e cobrança dos impostos, as fiscalização e justiça tributárias e as informação e investigação tributárias (cfr. artigos 1º e 2º do D.L. nº 408/93) - dispõe, a par de serviços centrais, serviços distritais e locais, sendo estes últimos 'os serviços da administração fiscal responsáveis pelos actos necessários ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nos casos previstos na lei, de execução dos serviços complementares de gestão fiscal, sob coordenação da respectiva direcção distrital, bem como de outras actividades que lhes forem cometidas por lei ou decisão superior' (cfr. artº
4º).
De harmonia com o artº 36º (que sofreu nova redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 42/97, de 7 de Fevereiro), ao 'nível local, a DGCI dispõe de repartições de finanças, directamente dependentes do director distrital de finanças, às quais incumbe executar as operações e praticar os actos necessários ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, nos casos previstos na lei; exercer as actividades de inspecção e de justiça tributárias, no âmbito da respectiva área fiscal, executar os serviços complementares de administração tributária ou outros, sob coordenação do respectivo serviço distrital e executar quaisquer outras tarefas que lhes forem cometidas por lei ou determinação superior.'
Nas repartições de finanças, os respectivos chefes podem ser coadjuvados por um a quatro ou por um a três adjuntos (consoante de trate de repartições dos níveis I ou II - cfr. nº 6 do artº 36º, na indicada redacção), sendo aqueles e estes considerados como exercendo cargos de chefia tributária e para os quais são nomeados em comissão de serviços por despacho do director-geral das contribuições e impostos (cfr. artº 42º), fazendo parte do quadro da respectiva Direcção-Geral (cfr. quadro anexo ao D.L. nº 408/93).
3. Desta resenha, e não olvidando o regime dos mais relevantes tributos hodiernamente existentes, resulta que, embora seja certo que se não pode asseverar hoje em dia, que, relativamente aos mesmos, são os chefes das repartições de finanças (coadjuvados pelos seus adjuntos) que os liquidam e lançam, nem por isso são menos relevantes as suas funções, as quais, necessariamente, têm enorme impacto nos sujeitos passivos dos tributos
(pense-se, verbi gratia, nos poderes de fiscalização, designadamente os previstos no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, nos poderes de avaliação e actualização dos bens sujeitos à incidência da contribuição autárquica e nas competências da administração fiscal de nível local nos processos regulados pelo Código de Processo Tributário, nomeadamente nas respectivas execuções fiscais).
Importa, assim, que, referentemente a cargos de tal relevância, se criem mecanismos por meio dos quais se obstacule ao perigo de, apresentando-se os respectivos titulares a concorrer a uma eleição, o eleitorado poder vir a ser influenciado em face das funções que o candidato desempenha. Esses mecanismos, está bem de ver, reportamo-los à consagração legal de uma inelegibilidade.
Ora, existindo, em abstracto, um tal perigo, não pode deixar de reconhecer-se que aquela restrição ao exercício de direitos fundamentais de participação política tem adequado suporte material, podendo mesmo dizer-se que ela, identicamente em abstracto, é necessária.
E, por outro lado, o próprio Diploma Básico prevê, ele mesmo, a possibilidade de uma tal sorte de restrição ao dispor no seu artigo 50º, nº 3, que no acesso a cargos electivos a lei pode (só pode) 'estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos'.
A credencial constitucional (que, como se disse já, é efectuada em mui apertados termos), que se extrai daquela disposição obviamente que não impõe ao legislador ordinário o estabelecimento de inelegibilidades como a de que ora tratamos. E nem é lícito a este Tribunal emitir juízos sobre a questão de saber se porventura outros funcionários existem no universo da Administração Pública que, mercê dos cargos que exercem, deviam também, para obstar ao perigo da captatio benevolentiae, padecer de tal restrição.
Essa foi uma opção do legislador e a este órgão compete somente dizer se estamos, no particular em causa, perante um «não direito» - caso seja feridente da Lei Fundamental - e não perante um «bom ou um mau direito».
E nem se diga que o facto de o legislador não ter contemplado eventuais casos de outros funcionários, isso vai criar uma situação de desigualdade inaceitável, intolerável ou injustificada.
É que, de uma banda, nem o Tribunal divisa quais sejam esses casos, nem o recorrente os indica e, de outra, não é constitucionalmente imposto ao legislador ordinário o estabelecimento de inelegibilidades para todas as situações de onde decorra o perigo de influenciação do eleitorado.
Não se vá ainda sem dizer que a capitis diminutio conferida pela alínea a) do nº 1 do artº 4º do D.L.nº 701-B/76 confrontadamente, quer com outros funcionários da Administração ali não elencados, quer com os cidadãos em geral, é, por si, algo de atentatório do princípio da igualdade, mesmo nas suas variadas vertentes sobre as quais o recorrente discorre.
Não se poderá, neste ponto, passar em claro que a Constituição prevê a possibilidade de determinados cidadãos (recte, de cidadãos que se encontrarem em determinadas situações) não poderem exercer um direito fundamental, por ela proclamado, de participação política passiva (cfr. artigos 50º, nº 3, 154º, números 1 e 2), pelo que a instituição de inelegibilidades posta a cargo do legislador ordinário, para a eleição dos órgãos autárquicos e para a Assembleia da República, não é algo que não tenha sido querido pelo legislador constituinte, pese embora tenha fortemente condicionado a liberdade daquele, razão pela qual, sem mais, não será lícito dizer que a inelegibilidade decorrente de normativos constantes da lei ordinária vai ferir direitos de cidadania e capacidade política, mormente passiva, do sujeitos àquela restrição, ainda que ela decorra do exercício de um cargo público.
Por último, sublinhe-se que, não obstante o impugnante alegar que, em concreto, desempenha funções numa área na qual não tem contacto com o público, tal alegação não tem qualquer virtualidade de infirmar o que veio de se dizer.
Na verdade, o que releva é uma categoria funcional que é legalmente definida como sendo um cargo de chefia, sendo que o desempenho de funções na área invocada, que no preciso momento é efectuado pelo recorrente, pode, em qualquer ocasião, ser modificado, não se alegando, sequer, se ele sempre foi o mesmo desde que o aludido recorrente ascendeu a tal categoria.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, declarando inelegível para as eleições para a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira o candidato José Fernando Moreira.
Lisboa, 18 de Novembro de 1997 Bravo Serra José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Messias Bento Armindo Ribeiro Mendes Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa