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Processo n.º 851/05
2ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. e mulher reclamam para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do disposto no n.º 4 do art. 76º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua
actual versão (LTC), do despacho proferido pelo Relator, no Supremo Tribunal de
Justiça (STJ), de 2 de Julho de 2005, que decidiu não admitir o recurso
interposto pelos ora reclamantes para o Tribunal Constitucional, com base no
fundamento de os recorrentes não haverem suscitado qualquer questão de
inconstitucionalidade nas alegações do recurso de revista e de só o terem feito
no requerimento de arguição de nulidade do acórdão proferido no recurso, em que
alegaram que “a interpretação e aplicação das normas invocadas viola o disposto
nos art. 20º, 205º, n.º 1, e 208º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa”.
2 – Os reclamantes refutam o despacho reclamado do seguinte jeito:
«1. O Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de fls. 450 de 18.01.2001, face à
alegação dos Recorrentes, na anterior revista sobre a transmissão da fracção 'B'
e a sua aquisição pelos Recorridos, sem pagamento de preço (o que equivaleria à
expropriação sem indemnização), de ser ou não inconstitucional respondeu que
'este Tribunal reconhece em termos que são de justificar-lhe poder ser ainda de
atribuir indemnização (sic).
2. Em função disso, concluiu 'Concede-se revista quanto ao pedido
formulado na al. d) para, em ampliação da matéria de facto (art. 729º nº 3 do
CPC) ser conhecido o direito à indemnização nos termos em que as partes
invocam'.
3. Em obediência a este acórdão, foi efectuado o julgamento nos termos
ordenados pelo Supremo Tribunal, subindo agora os autos pela segunda vez ao
Supremo Tribunal de Justiça.
4. Este acórdão não transitou em julgado, é vinculativo para as
instâncias e para o mesmo Supremo Tribunal quanto à delimitação do objecto do
processo e do recurso de revista - art. 672º do CPC.
5. Quer isto dizer que, tendo sido alegada, perante o Supremo Tribunal
de Justiça, a questão da inconstitucionalidade relativa à transmissão da
propriedade, sem pagamento de um preço ou indemnização, não careciam os
Recorrentes de expressamente a voltar a referir nas Conclusões da 2ª Revista.
6. O Supremo Tribunal de Justiça tinha o dever de ter em atenção a
delimitação que ele próprio tinha posto às instâncias e a ele mesmo, Supremo,
com a última das instâncias.
7. Contrariamente ao sustentado no despacho reclamado, tal questão foi
suscitada perante o Supremo Tribunal e o Supremo Tribunal tinha o dever de a
conhecer nos termos em que a deixara por apreciar no acórdão de fls. 450 e segs.
acima transcrito.
8. Assim, a questão a apreciar é de fundo, tem que ver com a forma como
é aplicado o direito material e não é meramente académica.
9. Formal e académico é o modo como se pretende coarctar o direito de
recurso para o Tribunal Constitucional por parte dos Recorrentes e justificar a
errada decisão sobre o objecto do processo
Nestes termos, deve ser revogado o despacho em apreço e ordenada a subida do
recurso nos termos requeridos, como é de
JUSTIÇA!»
3 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pronunciou-se sobre a reclamação, dizendo:
«A presente reclamação é manifestamente infundada, já que os ora reclamados não
suscitaram – nem durante o processo, nem sequer no requerimento de interposição
do recurso para este Tribunal Constitucional – qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso de
fiscalização concreta interposto».
B – Fundamentação
4 – O Tribunal Constitucional tem, constantemente, entendido que, nos recursos a
que alude a alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC, categoria em que se insere
aquele cuja não admissão é objecto desta reclamação, é necessário, para que este
Tribunal possa tomar conhecimento do recurso, que a questão de
inconstitucionalidade tenha sido suscitada em tempo e por modo funcionalmente
adequado, para que o tribunal recorrido pudesse conhecer dela.
Por seu lado, a suscitação, durante o processo, tem sido considerada, de forma
reiterada pelo Tribunal, como sendo a efectuada em momento funcionalmente
adequado, ou seja, em momento que o tribunal recorrido pudesse dela conhecer por
não estar esgotado o seu poder jurisdicional.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o tribunal
recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que convoca como
fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional, que conhece da
questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à instância
recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora de tal via.
É por isso que se entende que não constituem já momentos processualmente idóneos
aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição de nulidades, pedidos de
aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a obtenção de decisão com
aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento ou modificação, com base
em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia ter pronunciado (cf.,
entre outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no Diário da República II Série,
de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., p. 663;
n.º 374/00, publicado no Diário da República II Série, de 13 de Julho de 2000,
BMJ 499º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47º vol., p.713; n.º
674/99, publicado no Diário da República II Série, de 25 de Fevereiro de 2000,
BMJ 492º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol., p. 559; n.º
155/00, publicado no Diário da República II Série, de 9 de Outubro de 2000, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46º vol., p. 821, e n.º 364/00, inédito).
Excepção a tal regra são apenas aquelas hipóteses ditas de excepcionais em que o
recorrente é confrontado com a utilização insólita e imprevisível, por parte da
decisão, da norma, ou seja, naqueles casos em que seria desrazoável e inadequado
exigir do interessado um prévio juízo de prognose relativo a tal aplicação em
termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando antecipadamente
assim a questão de inconstitucionalidade (cf., entre outros, os acórdãos n.º
489/94, publicado no Diário da República II Série, de 16 de Dezembro de 1994, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º, p. 415; n.º 310/00, publicado no
Diário da República II Série, 17 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47º vol., p.853 e n.º 120/02, publicado no Diário da República
II Série, de 15 de Maio de 2002, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 52º, p.
575).
5 – Não negam os recorrentes que não hajam suscitado nas alegações do recurso de
revista a questão de inconstitucionalidade das normas que o acórdão que conheceu
do mérito do recurso aplicou como ratio decidendi.
Por outro lado, tão pouco alegam que hajam sido surpreendidos por qualquer
interpretação “insólita” ou “imprevisível”, com que não poderiam, razoavelmente,
contar.
O que os reclamantes defendem é que, em novo recurso de revista, interposto de
acórdão que foi proferido pela Relação em cumprimento da decisão de um anterior
recurso de revista, na qual se ordenou “a ampliação da matéria de facto (art.
729º, n.º 3, do CPC) de modo a ser conhecido o direito de indemnização nos
termos que as partes invocam”, se deve considerar como sendo também efectuada,
no novo recurso de revista, a alegação de inconstitucionalidade feita nas
alegações desse anterior recurso de revista.
Tal posição não pode, porém, aceitar-se. Os recursos de revista são
completamente autónomos, não estando entre si numa qualquer relação de
dependência. Ao decidir, em provimento parcial da primeira revista, que a
Relação procedesse à “ampliação da matéria de facto e conhecesse do direito à
indemnização nos termos que as partes invocam”, o STJ esgotou o objecto desse
recurso, que era o acórdão sindicado que havia decidido em termos diferentes.
O acórdão que a Relação vem a proferir em cumprimento do dever de
obediência à decisão do STJ apresenta-se como constituindo uma nova e diferente
decisão sobre a respectiva matéria.
Se, por não se conformar com o então decidido, a parte interpõe
recurso para o STJ, este recurso é um novo recurso, por ter por objecto uma
decisão jurisdicional diferente da primeira que foi sindicada na primeira
revista.
Consequentemente, cabe ao recorrente o ónus de alegar os fundamentos
com base nos quais entende que dever ser concedida a revista relativamente à
nova decisão, entre eles se contando as questões de constitucionalidade, mesmo
que estas se possam, porventura, colocar nos termos já antes invocados no
primeiro recurso de revista.
Estando o tribunal ad quem obrigado a conhecer, apenas, das questões
postas pelas partes nas alegações e respectivas conclusões do concreto recurso,
salvas as de conhecimento oficioso, não tem de apreciar questões postas em outro
recurso, cujo objecto não está, então, a sindicar.
Deste modo, tem de concluir-se que bem decidiu o despacho reclamado,
ao considerar que os reclamantes não suscitaram em momento funcionalmente
adequado a questão de constitucionalidade.
Mas, mesmo que se admitisse que no novo recurso se poderia fazer
aquisição da alegação de inconstitucionalidade feita na primeira revista, ainda
assim, sempre seria forçoso concluir pela inadmissibilidade do recurso, em
virtude de os reclamantes controverterem aí, não a conformidade com a
Constituição de qualquer norma jurídica, como é pressuposto do recurso de
constitucionalidade, mas a constitucionalidade da decisão judicial em si
própria.
Na verdade, na única conclusão das alegações, então apresentadas, em
que se poderá ver invocada essa questão de constitucionalidade, os recorrentes
dizem o seguinte:
«dd) Não aplicar os princípios acima expostos e enunciados, é impor
a transmissão do direito de propriedade da Cave para os Recorridos, sem terem de
pagar aos Recorrentes o valor patrimonial da mesma, é praticar um acto jurídico
novo, que constitui um título de transmissão 'forçada' de direitos de
propriedade, no domínio dos direitos de aquisição derivados, dando um conteúdo
diferente e mais amplo aos direitos de aquisição das fracções autónomas,
derivados da inscrição de propriedade nº 33.119, ap. 25 de 300672 e inscrição da
propriedade horizontal nº 5.658, ap. 20 de 300873 do prédio descrito sob o nº
14.206, no Livº B-41 da 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, é, de
facto, violar o disposto no art. 63º, nº 1 da Constituição da República
Portuguesa».
A reclamação tem, pois, de ser indeferida.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelos reclamantes, com taxa de justiça que se fixa em 20 UCs.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2005
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos