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Processo n.º 26/11
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, veio o Ministério Público interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, da sentença proferida por aquele tribunal, em 9 de setembro de 2010, que recusou a aplicação da norma do n.º 5 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, decorrente da violação dos artigos 13.º e 59.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, designada por CRP).
2. O recorrido, Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública do Norte, instaurou ação administrativa comum, que foi convolada em ação administrativa especial e que corre presentemente contra a Administração Regional de Saúde do Norte, peticionando o reconhecimento do direito dos seus representados, trabalhadores do setor público, à remuneração base prevista na tabela II anexa ao Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, correspondente ao índice 120 da carreira médica de clínica geral em dedicação exclusiva; a condenação da recorrida à execução dos atos materiais decorrentes do reconhecimento desse direito remuneratório, incluindo todas as diferenças remuneratórias desde o início de funções até à decisão; a declaração de inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, na medida em que admite a diferenciação remuneratória em função do estatuto jurídico de contratação dos trabalhadores, por violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 13.º e 59.º da CRP.
Para fundamentar as suas pretensões, o recorrido alega, em síntese, que os seus representados são técnicos superiores de vários serviços públicos e que se encontram, presentemente, a exercer as funções de Coordenadores de Unidades de Gestão Administrativa em Centros de Saúde, em virtude de nomeação em regime de comissão de serviço, pelo período de três anos, na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril.
Não obstante tais representados terem optado, desde o início de funções, pela remuneração da categoria de Coordenador de Unidade de Gestão Administrativa de Centro de Saúde, continuaram a receber a remuneração da categoria de origem, apenas acrescida do subsídio de função.
Tal circunstância deve-se ao facto de a Administração Regional de Saúde do Norte (ARSN) entender que o regime remuneratório do n.º 5 do artigo 8.º do aludido Decreto-Lei apenas se aplica aos trabalhadores que não têm vínculo laboral à Administração Pública, interpretação que o recorrido considera ser violadora do princípio da igualdade, nomeadamente da máxima de que a trabalho igual deve corresponder salário igual, porquanto os coordenadores sem vínculo laboral à Administração Pública recebem pelo índice 120 da carreira médica de clínica geral, em dedicação exclusiva, o que corresponde a montante substancialmente mais elevado do que o auferido pelos coordenadores com vínculo à Administração Pública, sem que exista qualquer justificação para tal diferença.
A ARSN contestou, pugnando pela improcedência da ação e referindo - quanto à questão da invocada inconstitucionalidade - que não existe violação do princípio da igualdade, já que a comparação da situação dos vários coordenadores não pode ser feita apenas pelo índice remuneratório, desinserida do contexto mais vasto do regime da função pública, do qual resulta que os trabalhadores com vínculo laboral à Administração Pública detêm um estatuto que lhes confere garantias não usufruídas pelos não vinculados.
Por sentença de 9 de setembro de 2010, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou a ação procedente.
Considerou o Tribunal que o âmbito subjetivo de aplicação do n.º 5 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 60/03, de 1 de abril, se restringe aos coordenadores sem vínculo laboral à Administração Pública, tal como considerou a ARSN.
Porém, concluindo não existir fundamento material atendível para a distinção de remuneração base devida aos Coordenadores de Unidades de Gestão em Centros de Saúde sem vínculo de emprego público relativamente à dos Colegas que exercem as mesmas funções, mas detêm vínculo à Administração Pública, o Tribunal julgou a norma do n.º 5 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 60/03, na interpretação preconizada, inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 13.º e 59.º, ambos da CRP, determinando que o regime remuneratório fixado no referido n.º 5 do artigo 8.º seja também aplicado aos representados do recorrido.
3. Notificado para o efeito, o recorrente apresentou alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“1º
Não afronta o princípio da igualdade consagrado nos artigos 13.º e 59.º da Constituição, a norma do n.º 5 do artigo 8.° do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, na interpretação segundo a qual, por via da aplicação da tabela anexa que menciona, os coordenadores nomeados, sem possuírem vínculo à função pública, aufiram um vencimento superior ao de outros coordenadores nomeados, mas que detenham esse vínculo, como acontece no caso em análise.
2º
Efetivamente, a igualdade constitucionalmente consagrada não é meramente formal e uniformizadora, pelo contrário, trata-se de uma igualdade em sentido material, aferida em função da realidade social em que se inserem as pessoas visadas com a norma.
3.º
Pelo que, a norma em apreciação não pode ser analisada de forma isolada e desligada da regulamentação global, impondo-se a consideração dos regimes de trabalho, em bloco, que são diversos, consoante os coordenadores nomeados, tenham, ou não, vínculo à função pública.
4.º
Na verdade, são bem distintas as relações de emprego para quem desempenha uma atividade laboral por conta da administração pública (mesmo no novo regime de contrato de trabalho em funções públicas), ou do setor privado. Diferenciação que se traduz em dois regimes distintos, com todas as diversidades inerentes a esses regimes, globalmente consideradas (diferentes jurisdições, diferentes regras, quanto à constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego, diferentes regras contributivas, diferentes regimes de assistência na doença e de reforma).
5º
Do confronto dos dois regimes sobressai uma perspetiva menos protetora da relação de emprego privado, sem vínculo à função pública, nomeadamente, quanto à vulnerabilidade e aos mecanismos de cessação da relação.
6.º
Por outro lado, sublinhe-se a circunstância de, no caso em apreciação, os coordenadores nomeados, que têm vínculo à função pública, têm assegurados os seus lugares de origem a eles regressando, finda a comissão de serviço em que se encontram.
7.º
Como tal, a diferenciação resultante da interpretação normativa em causa, encontra fundamento bastante na diversidade dos regimes globais das relações de trabalho dos coordenadores nomeados, com, ou sem, vínculo à função pública.
8.º
Pelo que tal diferenciação não é arbitrária ou irrazoável.
9.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
4. O recorrido igualmente apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
“i. Considera-se que a norma posta em crise neste processo – nº 5 do art. 8 da Lei 60/2003, de 1 de abril – na interpretação segundo a qual, por via da aplicação da sua tabela anexa, os coordenadores nomeados, com vínculo à função pública aufiram um vencimento largamente inferior ao dos outros coordenadores nomeados sem vínculo à função pública.
ii. A igualdade em sentido material reclama que a remuneração destes dois grupos de profissionais seja exatamente a mesma, desde logo porque aferida em função do trabalho efetivamente desempenhado, em termos de qualidade, quantidade e espécie, o que resultou provado em primeira instância.
iii. Isto é, se se entender que a vontade do legislador foi a destrinça entre a remuneração destes profissionais com base no seu estatuto de origem, então a norma terá que ser considerada inconstitucional por violação dos art. 13º e 59º al. a), ambos da CRP.
iv. Porém, afigura-se ao ora contra alegante que a interpretação a dar ao preceito será a que sempre lhe emprestou no sentido da necessidade de fixar uma remuneração de referência para os nomeados não oriundos dos quadros da Administração Pública, nada tendo como referencia a proveniência dos respetivos profissionais, não sendo aqui chamada à colação elementos completamente estranhos à norma como seja, o estatuto dos intervenientes, a perspetiva menos protetora do emprego privado, o ter ou não assegurado o lugar de origem (o que pode também suceder com os do setor privado que podem pedir licença sem vencimento na entidade empregadora)
v. Isto para dizer que com a diferenciação pretendida pelo alegante a norma n°5 do art. 8° do DL 60/03, de 01/04, viola o principio da igualdade na sua formulação laboral de trabalho igual salário igual,
vi. Pelo que tal diferenciação é perfeitamente arbitrária e irrazoável
Termos em que deve improceder o presente recurso, com a inevitável declaração de inconstitucionalidade já reconhecida em primeira instância.”
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
5. O objeto do presente recurso centra-se na apreciação da constitucionalidade da norma extraída do n.º 5 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, aplicável aos coordenadores, por força do n.º 5 do artigo 11.º do mesmo diploma, que determina que a remuneração base constante da tabela II anexa ao referido diploma se aplica apenas aos nomeados, para o exercício de funções de coordenador de unidade integrante de centro de saúde, que não tenham vínculo laboral à Administração Pública.
A decisão recorrida recusou a aplicação de tal critério normativo, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violar o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP, na modalidade específica de garantia de que trabalho igual seja remunerado em termos iguais, nos termos do artigo 59.º do mesmo diploma.
Considerou o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ser constitucionalmente intolerável que o legislador consagre um tratamento diferente, quanto à remuneração base, aos coordenadores de centros de saúde, como contrapartida pelo exercício de idênticas funções, somente com fundamento na circunstância de terem ou não vínculo laboral à Administração Pública.
6. Analisemos, primeiramente, o diploma em que se insere a norma em apreciação.
O Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, de acordo com o seu preâmbulo, corresponde a uma alteração legislativa destinada a promover a evolução do sistema de organização dos cuidados de saúde primários para um novo modelo, designado por rede de prestação de cuidados de saúde primários, que se pretende que constitua a base dos cuidados de saúde em geral, tendo como principal referência a ação dos centros de saúde e dos médicos de família.
Este modelo prevê a coexistência, a par da ação do Estado, de entidades de natureza privada e social que possam colaborar na gestão e prestação de cuidados de saúde primários, segundo novos modelos organizacionais, cuja introdução, segundo o preâmbulo do diploma, se destina a inverter a ineficácia do sistema de saúde tradicional, obviando a alguns problemas do Serviço Nacional de Saúde, nomeadamente a existência de deficiências na acessibilidade e equidade dos cuidados de saúde e o crescimento descontrolado das despesas públicas.
A responsabilidade do Estado na prestação dos cuidados de saúde primários implica, igualmente, a constituição de equipas de saúde multiprofissionais, cuja ação demanda a correspondente responsabilização de uma liderança e a planificação das tarefas por objetivos, com incentivos à produtividade e qualidade assistencial.
É neste contexto que o Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, prevê a figura dos coordenadores, incumbidos de dirigir as unidades, que devem integrar os centros de saúde, de acordo com a respetiva orgânica. Nesse âmbito, compete-lhes “gerir as atividades inerentes às respetivas unidades, assegurando o seu funcionamento eficiente e a qualidade dos serviços e cuidados prestados”, prestando apoio ao diretor do centro de saúde e exercendo competências atribuídas ao mesmo, sob delegação do próprio (artigos 9.º, n.º 1, e 11.º, n.os 1 a 3).
Os coordenadores são nomeados em comissão de serviço, pelo Conselho de Administração da Administração Regional de Saúde, sob proposta do diretor do centro de saúde, por um período de três anos, sendo o seu recrutamento feito “de entre indivíduos licenciados, vinculados ou não à Administração Pública que possuam experiência e perfil adequados ao exercício das respetivas funções.” (artigo 11.º, n.º 4, e 8.º, n.º 2).
Não obstante o Decreto-Lei n.º 60/2003, que vimos de analisar, tenha sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 88/2005, de 3 de junho, foi expressamente definido, no artigo 3.º, n.º 1, deste último diploma, que o pessoal dirigente que exerce funções, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 60/2003, “mantém, durante o período das atuais comissões de serviço, todas as condições de exercício profissional e regalias remuneratórias que lhe foram por aquele concedidas”, deixando assim clara a estabilidade das situações dos coordenadores das unidades.
7. Para verificarmos se a diferenciação remuneratória dos coordenadores dos centros de saúde, com fundamento na circunstância de terem ou não vínculo laboral à Administração Pública, se encontra em desconformidade com o princípio da igualdade, torna-se imperioso explicitar previamente o conteúdo deste princípio constitucional.
Utilizando a síntese plasmada no Acórdão n.º 96/2005 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt, onde poderão ser encontrados todos os arestos deste Tribunal, identificados infra), podemos referir o seguinte:
“ O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental, tem como fundamento a igual dignidade social de todos os cidadãos. São três as dimensões que o princípio convoca: (a) a proibição do arbítrio, que torna inadmissível a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objetivos de relevância constitucional, e afastando também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; (b) a proibição de discriminação, impedindo diferenciações de tratamento entre os cidadãos que se baseiem em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; (c) e a obrigação de diferenciação, como mecanismo para compensar as desigualdades de oportunidades, que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (…).”
A igualdade assume-se como um conceito relativo, que só adquire significado relevante no contexto de uma comparação.
Por outro lado, a análise comparativa pressupõe a eleição de determinado critério, à luz do qual se estabelecerá a relação de identidade ou diferenciação.
“Estando em causa (…) um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado diretamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério.” (Maria da Glória F.P.D. Garcia, Estudos sobre o princípio da igualdade, Almedina, 2005, p. 51).
Refere a mesma Autora que a escolha do critério de qualificação da igualdade consubstancia o ponto nevrálgico do princípio que analisamos, “pois é o critério que irá introduzir coerência interna entre as situações iguais e o tratamento igual” (ibidem, p. 55).
O princípio da igualdade compatibiliza-se, porém, com uma multiplicidade de critérios, apenas impondo que os mesmos não sejam arbitrários, mas assentem num fundamento material razoável e suficiente. Desta forma, a “escolha última dos critérios residirá na liberdade de conformação dos poderes públicos, não sendo o princípio da igualdade minimamente afetado por tal escolha”, desde que “o critério escolhido encontre uma justificação razoável e suficiente no fim ou na ratio do tratamento jurídico” (Maria da Glória F.P.D. Garcia, op. cit., p. 56).
Assim, por forma a respeitar o espaço de conformação legislativa, o controlo judicial não se imiscui na escolha do critério determinante das distinções efetuadas para aferir da sua maior ou menor racionalidade ou oportunidade, mas apenas procede a uma sindicância da efetiva existência de um critério e do seu fundamento justificante, que terá de ser objetivo, compreensível e suficiente face à ratio do regime.
A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 370/2007 deste Tribunal Constitucional:
“ (…) a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983, pág. 120, …).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico.”
Já no Acórdão n.º 157/88 se referira, de modo idêntico:
“(…) Retomando aqui, uma vez mais, o entendimento que este Tribunal vem perfilhando (na esteira, de resto, da Comissão Constitucional e da doutrina) acerca do sentido e alcance do princípio da igualdade, na sua função 'negativa' de princípio de 'controlo' (…), tudo estará em saber se, ao estabelecer a desigualdade de tratamento em causa, o legislador respeitou os limites à sua liberdade conformadora ou constitutiva ('discricionariedade' legislativa) que se traduzem na ideia geral de proibição do arbítrio. Ou seja: tudo estará em saber se essa desigualdade se revela como 'discriminatória' e arbitrária, por desprovida de fundamento racional (ou fundamento material bastante), atenta a natureza e a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista (e, logo o objetivo do legislador) e, bem assim, o conjunto dos valores e fins constitucionais (i. é, a desigualdade não há de basear-se num 'motivo' constitucionalmente impróprio).”
E no Acórdão n.º 187/90, igualmente se esclarecia:
“(…) a «teoria da proibição do arbítrio» não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionaridade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.”
8. A refração do princípio da igualdade, no âmbito laboral, está consagrada no artigo 59.º da CRP. Aí se reconhece um princípio fundamental de igualdade, proibindo-se diferenciações injustificadas.
Também no que respeita aos direitos dos trabalhadores, a Lei Fundamental não veda, em absoluto, diferenciações. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do referido artigo 59.º, todos os trabalhadores têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual.
Os critérios enunciados neste dispositivo são relevantes para aferir a identidade ou desigualdade de situações, autorizando distinções neles fundadas.
Neste contexto, o legislador ordinário dispõe de uma ampla margem de liberdade de conformação, dentro dos critérios de diferenciação atendíveis, que se acentua especialmente “em relação ao estatuto remuneratório das pessoas que exercem funções públicas” (Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, anotação ao artigo 59.º, p. 1152).
A aferição da conformidade com o princípio da igualdade não pode partir de uma comparação atomística de determinado aspeto específico de uma situação jurídica, a que se encontram subordinados certos trabalhadores, por contraposição com outros, sujeitos a regime diverso, antes envolvendo, também, a convocação das circunstâncias que fundamentam a diferenciação, e que, no caso, deverão, ainda, caber nas categorias diferenciadoras selecionadas pelo artigo 59.º da Lei Fundamental.
9. Transpondo estas considerações para a situação em análise no presente processo, vejamos se existe fundamento material, fundado num interesse constitucionalmente relevante, para a diferenciação de remunerações - resultante da norma que constitui objeto do recurso - que torne tal solução constitucionalmente tolerável.
De acordo com o diploma legal em apreço, o exercício das funções de coordenador depende de nomeação, em comissão de serviço, recaindo a escolha entre indivíduos vinculados ou não à Administração Pública.
A comissão de serviço, enquanto modalidade constitutiva de uma relação jurídica de emprego público, corresponde a uma forma de titular o “exercício transitório de funções públicas em situações específicas, a saber o exercício de cargos não inseridos na carreira – como são os cargos dirigentes e certos cargos públicos em que é valorizada a confiança pessoal e/ou técnica nos designados – e a aquisição de certa qualificação profissional por parte de quem tem uma relação jurídica de emprego público constituída por tempo indeterminado. De comum, o caráter transitório, precário ou reversível do provimento.” (Ana Fernanda Neves, “O direito da função pública”, em Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. IV, Almedina, outubro de 2010, p. 450).
Para as pessoas que dispõem de uma vinculação de emprego público preexistente, a comissão de serviço determina a “cativação” do lugar de origem, entendida esta como a manutenção da titularidade do lugar – que implica a manutenção dos direitos correspondentes, nomeadamente o de promoção, contagem de tempo de serviço, aposentação, reocupação – sem o desempenho do cargo respetivo. (João Alfaia, Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público, Vol. I, Almedina, 1985, p. 397 a 400).
Nas palavras do mesmo Autor, “a ratio legis de tal figura jurídica é por demais evidente: se um indivíduo que possui estabilidade num emprego público vai, em virtude do interesse público, ocupar um outro lugar com investidura provisória, temporária ou transitória, há que salvaguardar-lhe o direito adquirido no lugar que ocupa até à investidura no novo lugar se converter em definitiva ou, (quando não haja hipótese disso) até ao regresso ao lugar de origem.” (João Alfaia, op. cit., p. 324).
Ora, a solução jurídica da salvaguarda do lugar de origem, de que beneficiam os trabalhadores com vínculo ao setor público, é fator que contribui de forma determinante para a diversa natureza das prestações laborais em causa. A circunstância de os trabalhadores sem vínculo não verem protegido a seu regresso à origem, aquando do termo da comissão de serviço, traduz-se numa maior onerosidade do trabalho por estes realizado, explicando o Estado a remunerá-los de modo mais generoso.
Isto porque, a inexistência de cativação do lugar de origem, sem a consequente manutenção do vínculo preexistente, e de todo o regime de direitos e deveres associados a tal estatuto, evidencia o agravado custo da relação jurídico-laboral privada, independentemente das vicissitudes do exercício do novo cargo.
Na verdade, o que justifica a diferenciação legalmente estabelecida é o desigual esforço resultante de diferentes condições de regresso à origem - e não a diferente categorização subjetiva do trabalhador - que torna claro o custo diverso do exercício das funções (e, por isso, do trabalho), distinto para quem deixa para trás a sua vida, na certeza do regresso, em relação aos que o fazem na incerteza do amanhã.
Por outro lado, o mesmo interesse público na contratação, em comissão de serviço, dos trabalhadores mais capazes, com a experiência e perfil adequados a uma gestão eficiente e que garanta a qualidade dos serviços, justificador da cativação do lugar dos trabalhadores com vínculo, fundamenta ainda o estímulo da remuneração acrescida por parte da Administração àqueles que, provindo do setor privado, e não tendo a vantagem de manutenção do lugar de origem, sempre necessitariam de um incentivo para alterar a sua vida pessoal ocupando uma posição precária na Administração Pública. A procura, não restrita aos trabalhadores com vínculo, pela Administração, dos trabalhadores de maior qualidade, para o exercício das funções em comissão de serviço, traz-lhe um custo acrescido que é, no caso, o do incremento salarial aos que acolhe do exterior.
Estas circunstâncias conduzem a que, não apenas se subtraia a escolha do legislador, plasmada na norma em análise, à chancela da arbitrariedade ou da distinção desrazoável e injustificável, por se encontrar um fundamento material suficiente para a diferenciação salarial, como, ainda, tal distinção, justificada pelo necessário incentivo ao recrutamento dos que melhor possam contribuir para a realização do interesse público, cabe nos critérios de diferenciação constitucionalmente atendíveis, fixados pelo artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP.
De tudo quanto fica dito decorre não existir violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 5 do artigo 8.º, em conjugação com o n.º 5 do artigo 11.º, ambos do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril, que determina que a remuneração base constante da tabela II anexa ao mesmo diploma se aplica apenas aos nomeados, para o exercício de funções de coordenador de unidade integrante de centro de saúde, que não tenham vínculo à função pública;
b) e, em consequência, julgar procedente o recurso, determinando a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 27 de fevereiro de 2013. Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração anexa).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por considerar que o princípio trabalho igual salário igual, consagrado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto refração do princípio da igualdade no âmbito laboral, apenas poderá justificar diferenciações na retribuição do trabalho que sejam reconduzíveis, direta ou indiretamente, a qualquer das categorias mencionadas nesse preceito (e, como tal, fundadas na diferente quantidade, natureza e qualidade do trabalho), não bastando a invocação de um fundamento material que assente na mera qualidade subjetiva do trabalhador decorrente do seu estatuto profissional de origem.
O caso vertente, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 60/2003, de 1 de abril (aplicável por remissão do artigo 11.º, n.º 4), os coordenadores das unidades dos centros de saúde são recrutados «de entre indivíduos licenciados, vinculados ou não à Administração Pública que possuam experiência e perfil adequados ao exercício das respetivas funções», estipulando o subsequente n.º 5 que a remuneração base estabelecida no tabela II anexa se aplica apenas aos indivíduos nomeados que se não encontrem vinculados à função pública, estabelecendo assim uma distinção remuneratória para o exercício da mesma atividade em função da circunstância de o titular do cargo dirigente provir do setor público ou do setor privado.
A lei admite, em geral, que o recrutamento para certos cargos dirigentes possa ser efetuado de entre indivíduos que não possuam vínculo à Administração Pública (artigo 18º, n.º 1, da Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro), e nada obsta que o legislador possa atribuir, para o exercício desses cargos, uma remuneração superior àquela que resulta do estatuto remuneratório dos trabalhadores que exercem funções públicas, como forma de alargar o âmbito de escolha e obter o concurso de pessoas provenientes do setor privado que possam preencher, com vantagem relativamente a outros possíveis candidatos vinculados por uma relação de emprego público, os requisitos de competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequados ao exercício das respetivas funções.
O ponto é que, desde que a opção tenha incidido sobre um trabalhador vinculado à função pública, dentro dos critérios discricionários de avaliação, deixa de haver qualquer fundamento legítimo para distinguir, no plano remuneratório, em função da situação profissional de origem, quando é certo que o dirigente é indigitado para o cargo por possuir a experiência e o perfil considerados adequados e é chamado a desempenhar a função em condições de paridade com um outro interessado que ocupe um cargo idêntico, ainda que este tenha estado antes sujeito a uma relação laboral de direito privado.
A diferenciação remuneratória apenas poderia basear-se no diferente nível de qualificações exigíveis para o preenchimento do lugar ou na diferente caracterização do trabalho prestado (em matéria de eficiência, produtividade ou objetivos alcançados), e não em meras considerações atinentes à estabilidade no emprego que se afigura ser um elemento de ponderação inteiramente estranho à relação laboral e que não pode servir como critério atendível para que o mesmo tipo de trabalho seja remunerado em termos quantitativamente diferentes.
Teria assim negado provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Carlos Alberto Fernandes Cadilha