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Processo n.º 921/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art.º 78º-A da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, na sua actual versão, da decisão sumária proferida pelo
relator onde se decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 113.º,
n.º 9, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido que a
notificação pessoal da acusação do arguido estrangeiro e que não conheça a nossa
língua, pode ser feita em português” e não tomar conhecimento da questão de
constitucionalidade dos artigos. 111.º, al. c), e 113.º, n.º 9, do C.P.P.
interpretados no sentido de sancionar como nulidade relativa com regime de
arguição e sanação dos arts. 120º e 121º do C.P.P. uma notificação da acusação
feita em língua que o arguido não entende”.
A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“[1 –] A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional
ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro (LTC), invocando que “o Tribunal (...) ao não ter dado conhecimento
do conteúdo da Acusação na língua que o recorrente entendesse, fez uma errada
interpretação e aplicação das normas contidas no art. 111.º, c), conjugado com o
art. 92.º do C.P.P. por expressa violação dos arts. 16.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1,
da C.R.P. e art. 6.º, n.º 3, al. a) da CEDH” e que “considerar que a tratar-se
de nulidade esta estaria sanada nos termos dos arts. 120.º e 121.º do C.P.P.,
esta interpretação choca com disposto no art. 32.º, n.º 1, da C.R.P. e art. 6.º,
n.º 3, al. a) da CEDH”, tendo sustentado, no requerimento de interposição, a
“inconstitucional[idade] [d]a norma do art. 113.º, n.º 9, do CPP, quando
interpretada e aplicada como o foi no sentido que a notificação pessoal da
acusação do arguido estrangeiro e que não conheça a nossa língua, pode ser feita
em português por violação dos princípios ínsitos no art. 32.º, n.º 1, da CRP e
art. 6.º, nº 3, al. a) e e) da CEDH” e que a “entender-se que a notificação da
acusação que terá de ser feita em língua que entenda nos termos do art. 111.º,
al. c) e 113.º, n.º 9, do C.P.P. é estabelecida sob pena de nulidade relativa
com regime de arguição e sanação dos arts. 120.º e 121.º do C.P.P., está fazendo
o Tribunal errada interpretação e aplicação das normas violando os princípios
constitucionais ínsitos nos arts. 32.º, n.º 1, art. 6.º, n.º 3, al. a), e e) da
CDH e arts. 204.º e 20.º, n.º 2, da C.R.P.”.
[2 –] Perscrutando os autos, deles resulta:
[2.1 –] O Arguido, inconformado com o teor do despacho que lhe indeferiu, com
fundamento em extemporaneidade, o requerimento de abertura de instrução,
interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo aí sustentado, em
síntese, que:
«(...)
A) O Arguido é cidadão holandês e não entende a língua
portuguesa.
B) O despacho de acusação, notificado ao Arguido no dia 10.12.2004, não
foi traduzido em língua que ele conheça nem foi nomeado intérprete idóneo para o
assistir nessa acto.
C) A falta de tradução do despacho acusatório em língua que o arguido
compreenda ou a falta de tradução por intérprete no momento da notificação do
despacho de acusação traduz-se na própria inexistência da notificação e não numa
mera irregularidade dependente de arguição.
D) A notificação traduzida na língua do arguido apenas foi cumprida a
23.03.2005.
E) Só a partir desse momento é que o Arguido A. estava em condições de
tomar as decisões necessárias à continuação do processo e devidamente garantir o
seu direito de defesa e consequentemente requerer a abertura de instrução,
porque só nessa altura conseguiu entender concretamente os termos da acusação.
F) Desse modo, o fim do prazo normal de vinte (20) dias para requerer a
abertura de instrução terminaria a 18.04.2004.
G) O requerimento de abertura de instrução deu entrada no 2º juízo do
tribunal judicial de Ílhavo a 14.04.2005.
H) Como tal, não é intempestivo o requerimento de abertura de instrução e
não pode ser rejeitado por inadmissibilidade legal.
I) A decisão pronunciada pelo Tribunal judicial da Comarca de Ílhavo
viola, pois, o disposto nos arts. 287º e 113º, nº 9, do Código de Processo
Penal.
J) Entender-se que a não notificação da Acusação na língua que o
recorrente perceba, quer por escrito, quer oralmente, será considerada uma
nulidade sanável ou meramente irregularidade, carece de razão.
L) O art. 113º ordena obrigatoriamente a notificação pessoal do arguido do
despacho Acusatório.
O art. 119º, al. c), fere de nulidade insanável a falta de comparência do
arguido a casos em que a lei exige a sua comparência C.P.P.
M) Já a mesma cominação não é aplicada às partes civis ou
assistente – al. b) do art. 112º do C.P.P.
N) Os actos processuais de notificação podem padecer de inexistência, nulidade
absoluta, art. 119º, e sanáveis ou relativas, art. 120º do C.P.P., que se
encontram sujeitos ao regime de sanação, art. 121º do mesmo diploma, ou mera
irregularidade, art. 118º, nº 2, e 123º do C.P.P..
O) A considerar-se mera irregularidade, como referiu o despacho e promoção,
entende-se que não tem razão, porque vem claramente referido na lei a cominação
por falta de notificação pessoal obrigatória nos termos do art. 113º, nº 9, do
C.P.P..
P) Todavia e seguindo o entendimento da M. Juíza, esta entendeu que tal era
susceptível de se enquadrar numa daquelas situações, ou por menos nas
irregularidades;
Já que a seguir ao requerimento do recorrente ordenou que o mesmo fosse
notificado da Acusação, reparando dessa forma a irregularidade.
Q) Mesmo que esta não tenha sido arguida em tempo, a M. Juíza
reparou-a, quer a pedido do arguido, quer oficiosamente como o poderia ter feito
e como fez nos termos do art. 123º, n.º 2, do C.P.P..
R) Ao ter reparado a irregularidade da notificação, todos os actos subsequentes
àquela deveriam ter sido anulados, (na parte respeitante à marcação de
julgamento), porquanto acarreta consequências relativamente ao exercício do
direito de requerer eventualmente instrução ou arguir nulidades, podendo
traduzir-se numa limitação da defesa do arguido, nos termos do art. 287º do
C.P.P..
S) Considerando tratar-se de irregularidade no caso concreto e ter esta sido
reparada pela M. Juíza, o Tribunal fez errada interpretação das normas
constantes do art. 122º do C.P.P., ao não ter anulado os actos subsequentes
àquele ferindo este de inconstitucionalidade material, nos termos do art. 32º da
C.R.P..
T) Deve pois, considerando-se reparada a irregularidade, considerar em tempo o
pedido de instrução de acordo com os preceitos legais acima mencionados.
U) Outro entendimento da lei, e outra aplicação aos presentes factos, violará os
artigos 32º, nº 1, 202º, nº 1, e 203º, parte final, da Constituição da República
Portuguesa e os princípios consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, cuja ratificação foi aprovada pela Lei 65/78 de 13 de Outubro, artigos
5º, nº 2, 6º, nº 3, al. a), e). Não se entender tempestivo o requerimento
oportunamente apresentado violará frontalmente a Lei Geral e a Lei Fundamental,
bem como os mais elementares direitos de defesa do Arguido, em particular do ora
recorrente».
[2.2 –] Notificado do parecer do Representante do Ministério Público junto do
Tribunal da Relação de Coimbra – onde se pugnou pela improcedência do recurso –
o Recorrente veio sustentar que:
«(...)
O Tribunal de Ílhavo ao não ter dado conhecimento do conteúdo da Acusação
na língua que o recorrente entendesse, violou os princípios Constitucionais e os
Princípios Consagrados na Convicção Europeia dos Direitos do Homem, tal como se
referiu na Motivação de Recurso.
Fez uma errada interpretação e aplicação das normas contidas no art. 111º-c),
conjugado com o art. 92º do C.P.P. por expressa violação dos arts. 16º-1 e 32º-1
da C.R.P. e art. 6º, nº 3, al. a) da CEDH.
Considerar que a tratar-se de nulidade esta estaria sanada nos termos dos arts.
120º e 121º do C.P.P., esta interpretação choca com disposto no art. 32º-1 da
C.R.P. e art. 6º, nº 3, al. a), da CEDH.
Nulidade aqui, só pode ser absoluta, insanável, pois aquela norma constitucional
e da Convenção estabelece de forma clara os direitos do acusado, art. 6º, nº 3,
als. a) e e) e art. 32º nº 1, art. 16º, 12º e 13º da C.R.P..
Neste sentido TEDH Ac. 19-12-89, Série A – nº 168 caso Kamasinki
É pois inconstitucional a norma do art. 113º, nº 9, do CPP, quando interpretado
no sentido que a notificação pessoal da acusação do arguido estrangeiro pode ser
feita em português por violação dos princípios ínsitos no art. 32º, nº 1, da CRP
e art. 6º, nº 3, als. a) e e) da CDH.
Se se entender que a notificação da acusação que terá de ser feita em língua que
entenda nos termos do art. 111º al. c) e 113º nº 9 do C.P.P. é estabelecida sob
pena de nulidade relativa com regime de arguição e sanação dos arts. 120º e 121º
do C.P.P., está fazendo o Tribunal interpretação e aplicação violadora dos
princípios constitucionais ínsitos nos arts. 32º, nº 1, art. 6º, nº 3, als. a) e
e) da CDH e arts. 204º e 20º, nº 2, da C.R.P.».
[2.3 –] Por Acórdão de 27 de Julho de 2005, o Tribunal da Relação de Coimbra
decidiu negar provimento ao recurso, considerando que:
«(...)
Parece resultar do requerimento apresentado que o recorrente entende só agora
ter sido notificado da acusação.
No entanto, como acima se evidenciou, foi notificado da acusação, pessoalmente
em 10.12.2004. E em 13.22.004 na pessoa da sua ilustre advogada constituída.
A apreciação da tempestividade do requerimento da abertura da instrução - na
data que havia muito tinha sido designada para a audiência, sem que o arguido
tivesse arguido qualquer nulidade, quer da notificação da acusação quer da do
despacho que designou data para julgamento - envolve a da questão prévia de
saber, em primeiro lugar, se acusação tinha que ser traduzida, por escrito, para
a língua do arguido e, caso assim se entenda, se a correspondente omissão,
constituiu nulidade insanável da notificação da acusação, apenas se tendo esta
por realizada quando o arguido foi notificado da tradução.
A acusação em si constitui realidade diversa da respectiva tradução, como tal
perspectivadas também, autonomamente pelo legislador.
Para o não domínio do idioma, nomeia-se intérprete. Para o não domínio dos
aspectos jurídicos da causa é nomeado defensor.
Sendo certo que, uma vez nomeado intérprete no processo, ele fica disponível
para traduzir ao arguido tudo o que se mostre relevante durante a marcha normal
do processo até ao acto nobre e solene da audiência de discussão e julgamento.
Estando a tradução orientada para a tradução verbal, nos casos em que o arguido
presta declarações sobre a matéria indiciada ou sobre a matéria da acusação.
Apenas havendo violação dos direitos do arguido no caso de se verificar, em
concreto (v. gr. por o arguido não ter defensor que dominem a língua portuguesa,
não podendo por isso, na prática, prevalecer-se do intérprete que lhe foi
nomeado e esteve disponível) esteve efectivamente impossibilitado de saber
aquilo por que responde.
O que não sucede no caso, logo por ter sido ouvido sobre a matéria que veio a
constar da acusação, já devidamente assistido por defensor que se exprime na
língua em uso no tribunal e ainda por intérprete que traduziu tudo o que foi
entendido relevante para o conhecimento dos factos e a defesa sobre os mesmos
que o arguido entendeu apresentar.
Com efeito, no caso foi nomeado intérprete ao arguido logo no interrogatório a
que foi submetido e durante o qual foi confrontado com a matéria que levou à
detenção. Defensor que se manteve, tendo havido sempre intérprete nomeado no
processo, disponível para ultrapassar qualquer dificuldade resultante da
barreira linguística - a solicitação da defesa ou da acusação ou por
determinação do tribunal.
Além de que esteve sempre o arguido devidamente representado por advogado
português, a quem competia, caso alguma dúvida relevante para defesa do arguido
o exigisse, levantar a questão - como veio a levantar, quanto o entendeu
relevante, vendo aliás a sua pretensão deferida, logo que a suscitou.
Não deixando se ser contraditório que só agora tenha entendido ser relevante -
para a defesa a realizar no local privilegiado, o julgamento - a tradução de
determinada peça, há muito conhecida, e daí pretender retirar, a posteriori,
efeitos retroactivos de um acto que só agora quis ver praticado.
Ora, nenhum dispositivo legal impõe que a notificação da acusação a arguido
estrangeiro tenha de ser efectuada através de entrega do respectivo texto
traduzido na língua estrangeira que o arguido compreende embora se aceite que
para melhor ser ouvido sobre o seu conteúdo, a tradução prévia, por escrito,
facilitará a realização da audiência, evitando designadamente que o intérprete
tenha que e fazer no momento.
Nos actos processuais, a regra é a de que nos actos judiciais, tanto escritos
como orais, se utiliza a língua portuguesa (art. 92º, nº 1, do CPP).
Sendo certo que a comunicação com pessoas que não dominem o idioma faz-se
através da nomeação de intérprete (art. 92º, nº 2). Intérprete que assiste o
arguido em todos os actos em que participa, traduzindo, em cada acto, aquilo que
for relevante para o arguido, que está presente e assistido simultaneamente por
defensor e por intérprete que vai fazendo, a par e passo, a tradução daquilo que
releva, para acusação e defesa, com a possibilidade do exercício permanente e
continuado do contraditório.
Nada obrigando à tradução formal, escrita, da acusação - o direito de defesa é
assegurado pela nomeação de intérprete, que passa a estar disponível para todo o
acto de tradução que se revele necessário, devendo estar fisicamente presente
nos actos solenes e estruturantes do processo em que o arguido participa (vg.
interrogatório/audiência). Tal como sucedeu no caso em apreço.
E, como já decidiu o T. Constitucional (Acórdão nº 547/98, de 23 de Setembro, in
BMJ nº 479º, p. 212) o art. 92º, nº 2, do CPP, em conjugação com o disposto no
art. 111º, nº 1 al. c) do mesmo Código, interpretado no sentido de que a
notificação da acusação deduzida contra o arguido que desconhece a língua
portuguesa não carece de tradução escrita pelo intérprete nomeado, não lesa as
suas garantias de defesa, constitucionalmente estabelecidas nos artigos 32º nº
1; 16º nº 3 al. a) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No mesmo sentido
v, também Ac. da Relação de Lisboa publicado in www.dgsi.pt/jtrl.nfs./ proferido
no âmbito do processo nº 45483 de 01.07.1998, citado na douta resposta.
Assim, no caso, a notificação da acusação foi regular, pelo que a abertura da
instrução devia ter sido requerida no prazo legal a partir de tal notificação.
*
Porém, ainda que se entendesse que não sendo a notificação da acusação
acompanhada da respectiva tradução, a omissão da tradução só poderá constituir
uma nulidade relativa nos termos do art. 120º nº 3 al. c) do CPP e, por isso,
arguível até três dias após a notificação da acusação, o que não aconteceu
nestes autos pelo que a mesma se encontraria sanada - neste sentido, cfr. Ac.
RP, in CJ Ano XXIX, tomo IV, pg. 214 e segs..
A não tradução da acusação (o que é diferente da não notificação da acusação,
designadamente quando foi nomeado no processo, previamente, intérprete que
assistiu ao interrogatório do arguido e permaneceu nomeado no processo e que o
mandatário que se exprime na língua nacional} não constitui nulidade prevista no
regime dos artigos 118º, 119º e 120º, todos do CPP.
Caindo assim no âmbito das meras irregularidades, pelo que, por não ter sido
arguida nos termos e prazos aludidos nos artigos 118º, nºs 1 e 2 e 123º, nº 1,
do CPP, se encontrava há muito sanada, quando o arguido veio requerer a abertura
da instrução, mais de 4 meses depois de notificado, pessoalmente e na pessoa do
mandatário forense constituído, do teor da referida acusação, sem que a falta da
tradução lhe tivesse suscitado reparo.
Na verdade, tendo por referência a data da notificação da acusação à ilustre
advogada do arguido (posterior à deste) o prazo para abertura de instrução
terminou em 06.01.2005.
Sendo o requerimento - apresentado já em 14.04.2005, mais de 4 meses após a
notificação da acusação - manifestamente extemporâneo.
Não merecendo assim censura o despacho que a rejeitou».
[2.4 –] Novamente inconformado, o Arguido requereu a aclaração desse aresto
e arguiu a sua nulidade e, simultaneamente, interpôs, ad cautelam, recurso para
este Tribunal.
[2.5 –] Por Acórdão de 12 de Outubro de 2005, o Tribunal da Relação de
Coimbra decidiu indeferir a arguição de nulidade e o pedido de aclaração do
Acórdão de 27 de Julho.
[2.6 –] O Arguido apresentou, então, um “novo” requerimento de interposição
de recurso para o Tribunal Constitucional, de conteúdo idêntico ao anterior,
tendo ambos os recursos sido admitidos.
[3 –] Integrando-se o caso sub judicio no âmbito normativo recortado no
artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, passa a decidir-se com base nos seguintes
fundamentos.
[3.1 –] Em primeiro lugar, cumpre começar por salientar que o recurso de
constitucionalidade não está, entre nós, configurado como um recurso de amparo,
ou como um processo de «queixa constitucional» (Verfassungsbeschwerde,
staatsrechtliche Beschwerde, recurso de amparo), no âmbito do qual se possa
confrontar as decisões judiciais qua tale com os parâmetros constitucionais,
sindicando directamente o acto de julgamento de uma determinada factualidade e a
correcção jurídica da concreta “interpretação-aplicação” do direito
infraconstitucional.
Contudo, tal não significa uma “protecção enfraquecida dos direitos
fundamentais, uma vez que “os particulares podem, nos feitos submetidos à
apreciação de qualquer tribunal e em que sejam parte, invocar a
inconstitucionalidade de qualquer norma (...) fazendo assim funcionar o sistema
de controlo da constitucionalidade (...) numa perspectiva de controlo
subjectivo” (cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 4.ª edição, Coimbra, 2000, p. 493).
Em todo o caso, os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional estão
delimitados e vinculados à aferição da bondade constitucional de normas –
critérios normativos – não lhe cabendo, por isso, apreciar as nuances
fáctico-concretas de um determinado problema e o juízo de valoração fáctica
realizado pelo Tribunal recorrido.
[3.2 –] Esclarecido este ponto, cumpre passar a analisar, nesses termos, o
critério normativo que constituiu ratio decidendi da decisão recorrida, sendo
certo que este assenta na consideração, inferida dos artigos 92.º, n.º 2 e
113.º, n.º 9, do Código de Processo Penal, de que nada obriga à tradução formal,
escrita, da acusação – o direito de defesa é assegurado pela nomeação de
intérprete, que passa a estar disponível para todo o acto de tradução que se
revele necessário, devendo estar fisicamente presente nos actos solenes e
estruturantes em que o arguido participa.
Antes, porém, não pode deixar de referir-se que, embora tenham sido
interpostos e admitidos dois recursos de constitucionalidade, devem
considerar-se como correspondendo a um só.
Na verdade, a decisão recorrida é a mesma, ou seja o acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra, de 27 de Julho de 2005, apenas acontecendo que um foi
interposto antes de arguida a sua nulidade e pedida a sua aclaração e o outro
depois de indeferidos esses pedidos (razão pela qual, em face do disposto nos
arts. 686º, n.º 1, do CPC, e 69º da LTC são ambos tempestivos) e o seu objecto é
também o mesmo, pois versam sobre as mesmas normas.
De resto, como o próprio recorrente alegou no requerimento de interposição
do primeiro recurso, este foi, aí interposto à cautela.
Como, expressamente, se refere no acórdão recorrido, o critério normativo
nele seguido é integralmente sobreponível ao que foi sindicado pelo Acórdão n.º
547/98 (publicado no Diário da República II Série, de 13.03.1999 e nos Acórdãos
do T. C. 41º vol., pp. 27 e ss.).
Considerou-se nesse aresto, inter alia, que:
«(...)
Inserido no Título II do Livro II do CPP, que dispõe sobre “Da forma dos actos e
da sua documentação”, o artigo 92º, depois de consagrar no seu nº 1 a regra da
utilização da língua portuguesa nos actos processuais, estabelece no nº 2 o
seguinte:
'Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a
língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que
a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais
conheçam a língua por aquela utilizada.'
Nenhuma outra norma do CPP respeitante quer às notificações em geral, quer à
notificação da acusação ao arguido dispõe sobre a intervenção de intérprete
quando o notificando desconhecer ou não dominar a língua portuguesa.
A citada norma ínsita no nº 2 do artigo 92º do CPP é, porém, suficientemente
ampla para compreender a exigência de nomeação e intervenção de intérprete
quando houver lugar à notificação do arguido naquelas circunstâncias.
Já o que a norma não concretiza é o conteúdo da intervenção processual do
intérprete.
Não se pondo em dúvida que o intérprete há-de verter para a língua estrangeira
adequada o acto a notificar, a lei processual não expressa, com efeito, se essa
versão deve ser integral e em que termos (escritos ou orais) se impõe que ela se
materialize.
O acórdão recorrido não se pronuncia sobre o primeiro aspecto, certamente por os
autos não documentarem o que o recorrente sempre deixou mais ou menos
explicitamente alegado: a interpretação não fora integral.
Não pode, por isso, este Tribunal conjecturar o que no acórdão recorrido se não
pressupôs no juízo efectuado sobre a constitucionalidade da norma em causa e
que, consequentemente, não abarca qualquer pronúncia sobre a conformidade da
mesma norma à CRP quando interpretada no sentido da suficiência de uma versão
parcial ou sintética do acto da acusação.
Já isso não acontece quanto à inexigibilidade da forma escrita da versão em
língua estrangeira da acusação, juízo que claramente se formula no acórdão
impugnado e o recorrente controverte.
Ora, a intervenção de intérprete no acto de notificação da acusação a arguido
que desconhece ou não domina suficientemente a língua portuguesa é medida que
decorre necessariamente da estruturação de um processo criminal que assegure
todas as garantias de defesa ao arguido.
O conhecimento da acusação pelo arguido é para este determinante da opção pela
estratégia de defesa que vier a desenvolver no processo; e, de imediato (no
prazo de vinte dias a contar da notificação da acusação - artigo 287º, nº 1, al.
a), do CPP), é decisivo para a formulação do seu juízo sobre a conveniência de
requerer a abertura da instrução, pretensão que, nos termos do nº 3 do mesmo
artigo 287º, deve expressar as razões, de facto e de direito, de discordância
relativamente à acusação.
A notificação deve, assim, assegurar ao arguido o estudo e ponderação da peça
acusatória, em termos que facultem a tomada das relevantíssimas decisões que, a
partir desse momento, se lhe impõem.
Como se deixou dito, não prescreve o CPP formalidades especiais para a
notificação da acusação; esta deve processar-se nos termos gerais, tendo em
conta que o seu fim é o de transmitir “o conteúdo do acto realizado ou de
despacho proferido no processo” (artigo 111º, nº 1, al. c), do CPP).
A transmissão do conteúdo do acto ou despacho opera-se, nos termos do artigo
228º, nº 3, do CPC (ex vi artigo 4º do CPP), com a entrega “de todos os
elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à
plena compreensão do seu objecto”.
Em termos gerais, pois, a notificação da acusação efectua-se com a entrega ao
notificando de cópia da peça acusatória, procedimento que assegura cabalmente os
direitos de defesa do arguido.
Do ponto de vista da conformidade com as garantias de defesa do arguido
constitucionalmente consagradas no artigo 32º nº 1 da CRP, a questão que se
coloca é, afinal, a de saber se, no caso de arguido que desconheça a língua
portuguesa, a entrega de cópia da acusação escrita em português, acompanhada da
transmissão oral do seu conteúdo, por intérprete, na língua conhecida pelo
notificando, assegura, de igual modo, os direitos do arguido.
Numa primeira análise, mas tendo como outro parâmetro de constitucionalidade os
princípios da equiparação dos estrangeiros aos cidadãos portugueses em matéria
de direitos fundamentais (artigo 15º, nº 1, da CRP), a resposta seria negativa.
Com efeito, a perfeita equiparação do cidadão estrangeiro ao cidadão português
postularia que, tal como a este é entregue cópia da acusação em língua que ele
compreende, ao primeiro devesse igualmente ser entregue cópia da mesma peça
vertida na língua por ele conhecida.
Trata-se, no entanto, de uma argumentação de pendor formalista que não atende à
necessidade de uma regulação adaptada a realidades irredutivelmente diferentes e
que não contenda com outros bens e valores igualmente protegidos, esquecendo que
essa pretendida equiparação, entendida em termos substanciais, sempre se poderá
alcançar, ainda que por meios diversos, desde que, em concreto, os direitos
igualmente concedidos a nacionais e estrangeiros possam por estes ser plenamente
exercidos.
A verdade é que não se vê qualquer obstáculo de ordem constitucional a que as
garantias de defesa do arguido, genericamente asseguradas pelo artigo 32º, nº 1,
da CRP, se traduzam, no caso, na consagração de normas processuais distintas,
desde que elas igualmente assegurem que o fim da garantia em causa - o de
permitir uma defesa eficaz, desde logo com a tomada das decisões já acima
referidas com base no conhecimento minucioso da matéria da acusação - possa ser
alcançado.
Já não estará aqui em questão a igualdade formal com o direito do cidadão
português, mas a possibilidade ou impossibilidade de serem conformes à CRP
outras formalidades de notificação da acusação, adaptadas aos casos de cidadãos
sem conhecimento da língua portuguesa, diversas da formal equiparação que
constituiria, para estes últimos, a entrega de tradução escrita da peça
acusatória - o parâmetro de constitucionalidade reside, agora e só, no princípio
consagrado no artigo 32º, nº 1, da CRP.
Sendo a fórmula do nº 1 do artigo 32º da CRP uma expressão condensada das
restantes normas do mesmo artigo, ela não deixa de traduzir uma cláusula geral
que abrange garantias não especificadas nos números seguintes mas igualmente
reclamadas por uma tutela eficaz dos direitos de defesa dos arguidos (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, nota II ao artigo
32º, p. 202).
Num processo em que a equidade, a igualdade de armas, o acusatório, são, entre
outros, princípios que os direitos de defesa reclamam, o conhecimento detalhado
e esclarecido, por parte do arguido, do que (de facto e de direito) lhe é
imputado na acusação reveste-se - como se deixou já dito - de uma importância
decisiva.
Inscreve-se, pois, nas garantias de defesa que o processo criminal, por
imperativo constitucional, deve assegurar, a que se consubstancia no direito do
arguido àquele conhecimento pleno da matéria constante da acusação, em termos -
acrescente-se - que permitam o seu estudo consciente e aprofundado, pois só
assim se perfazem as condições indispensáveis para o acusado preparar a defesa
que entender mais adequada.
Ora, afigura-se que a tradução oral da acusação, por intérprete, não compromete
as garantias de defesa do arguido consagradas no comando constitucional com a
assinalada dimensão.
Na verdade, esta forma de notificação não obsta a que o arguido p. ex. vá
colhendo da leitura as notas (escritas) que entender convenientes, peça
esclarecimentos ao intérprete ou solicite repetições sobre trechos eventualmente
mais complexos, tudo no sentido de uma percepção completa, minuciosa e profunda
da peça acusatória.
Competindo ao funcionário encarregado da notificação a transmissão fiel do
conteúdo da acusação, o desempenho perfeito da função de interpretação há-de
permitir ao arguido os procedimentos referidos em termos que o apetrechem com o
conhecimento necessário e suficiente para gizar a estratégia de defesa
subsequente.
Se assim não for, não é já uma questão de desconformidade da norma ínsita nos
artigos 92º, nº 2, e 111º, nº 1, al. c), do CPP, interpretada nos termos em que
o foi, que se coloca, mas uma outra - aqui sim - de irregularidade ou
deficiência no desempenho da função de intérprete, que o recorrente, aliás, não
parece ter verificado, quando subscreve a certidão de notificação fotocopiada a
fls. 32 onde afirma “de tudo ficar bem ciente”.
Dir-se-á que se trata de uma forma menos “cómoda” de o arguido tomar cabal
conhecimento da acusação, obrigando-o eventualmente a tarefas complementares que
seriam desnecessárias se o texto da acusação fosse desde logo entregue na versão
em língua estrangeira apropriada; mas se é de facto assim, não pode dizer-se que
ocorra uma qualquer compressão, minimamente relevante, dos direitos de defesa do
arguido garantidos pelo artigo 32º, nº 1, da CRP.
Invoca ainda o recorrente a violação do artigo 6º, nº 3, al. a), da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem.
Vale aqui o que se disse no Acórdão deste Tribunal nº 352/98, in DR II Série, nº
160, de 14/7/98, a propósito de invocação semelhante noutro processo:
'(...) se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deve ser perspectivada num
sentido de aplicação directa no ordenamento jurídico nacional, é necessário não
olvidar que, se dos preceitos constitucionais relativos aos direitos
fundamentais já se retirarem em todas as suas vertentes (aqui se incluindo as
que se extratam de uma interpretação, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira
in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 138, 'de acordo com
as regras hermenêuticas, à ordem constitucional dos direitos fundamentais'), o
alcance e sentido que porventura se encontrem naquela Convenção, nada lhe sendo,
pois, acrescentado por esta, o recurso à mesma é, de todo e na realidade das
coisas, destituído de sentido (cf. por entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal
nºs 14/84, nº 2.2, parte final, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 2º vol., pp. 339 e segs. e 222/90, idem, 16º vol., pp. 635 e
segs.).
Parafraseando, e com a adaptação que se imporá, os autores e obra citados - que
se reportam não à Convenção dos Direitos do Homem, mas sim à Declaração
Universal dos Direitos do Homem e a propósito do nº 2 do artigo 16º da
Constituição - esta questão “é praticamente irrelevante, pois a Constituição não
só consumiu a Declaração”, sendo muitas das disposições constitucionais
reprodução textual, ou quase textual, de disposições daquela, mas também inclui
direitos não referidos na Declaração.
Dispõe o artigo 6º, nº 3, al. a), da CEDH:
'3 ' O acusado tem, no mínimo, os seguintes direitos:
a) Ser informado no mais curto espaço, em língua que entenda e de forma
minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada;”
A este preceito importa aproximar o que consta da al. e) do mesmo artigo 6º, nº
3, que reconhece ao acusado o direito de “fazer-se assistir gratuitamente por
intérprete, se não compreender ou não falar a língua usada no processo”.
Ora, sobre estes preceitos a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem (TEDH) colhe-se do que foi decidido no Caso Kamasinski (Acórdão de
19/12/89, série A, nº 168), onde, entre outras questões, se suscitava a de saber
se a Convenção obrigava, na comunicação da acusação ao arguido que não dominasse
a língua usada no processo, à tradução escrita da peça acusatória.
Muito embora chamando a atenção para o extremo cuidado de que deve revestir-se a
notificação da acusação, o TEDH ali expressamente reconheceu que a Convenção não
exige a tradução escrita da peça acusatória.
Nada, pois, de substancialmente diverso do que o artigo 32º nº 1 da CRP postula
como garantia de defesa do arguido, a que se conforma o preceituado nos citados
artigos do CPP, com a interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido.
Improcede, deste modo, a invocada inconstitucionalidade das normas ínsitas nos
citados preceitos do CPP».
Tais considerações têm total validade e procedência no caso dos autos, onde
o arguido dispôs, igualmente, sempre, de intérprete “disponível para ultrapassar
qualquer dificuldade resultante da barreira linguística - a solicitação da
defesa ou da acusação ou por determinação do tribunal”, nos termos do acórdão
recorrido.
Assim, reiterando a fundamentação constante de tal aresto, deve julgar-se
improcedente a suscitada questão da “inconstitucional[idade] [d]a norma do art.
113º, nº 9, do CPP, quando interpretada e aplicada como o foi no sentido que a
notificação pessoal da acusação do arguido estrangeiro e que não conheça a nossa
língua, pode ser feita em português por violação dos princípios ínsitos no art.
32º nº 1 da CRP e art. 6º, nº 3, als. a) e e), da CEDH”.
[3.3 –] Resta, por fim, considerar a questão equacionada pelo Recorrente de
saber se “entender-se que a notificação da acusação que terá de ser feita em
língua que entenda nos termos dos arts. 111.º, al. c), e 113.º, n.º 9, do C.P.P.
é estabelecida sob pena de nulidade relativa com regime de arguição e sanação
dos arts. 120º e 121º do C.P.P., está (...) Tribunal [a fazer] errada
interpretação e aplicação das normas, violando os princípios constitucionais
ínsitos nos arts. 32.º n.º 1, art. 6.º n.º 3 al. a) e e) da CDH e arts.. 204.º e
20.º n.º 2 da C.R.P.”.
Ora, mesmo admitindo que, numa tal formulação verbal, o recorrente esteja a
recortar uma questão de inconstitucionalidade reportada a normas jurídicas, e
não apenas a questionar a correcção, no plano do direito infraconstitucional, da
dimensão normativa que o acórdão recorrido alcançou por via interpretativa,
convocando, nesta tarefa, argumentos referentes à Lei fundamental, facilmente se
compreenderá que o Tribunal Constitucional não pode, nesta sede, tomar
conhecimento dessa questão.
É que qualquer juízo que este Tribunal viesse a fazer sobre essa “norma”
não teria a virtualidade de contender com o decidido.
É certo que o Tribunal da Relação afirmou que “ainda que se entendesse que
não sendo a notificação da acusação acompanhada da respectiva tradução, a
omissão da tradução só poderá constituir uma nulidade relativa nos termos do
art. 120º nº 3 al. c) do CPP e, por isso, arguível até três dias após a
notificação da acusação, o que não aconteceu nestes autos pelo que a mesma se
encontraria sanada”.
Contudo, este fundamento está claramente assumido, na economia da decisão
como argumento adjuvante ou de reforço da decisão de não provimento do recurso,
senão mesmo a título hipotético, académico ou como simples obter dictum.
Ora, o Tribunal Constitucional só pode tomar conhecimento do objecto do recurso
quando a norma sindicanda tenha constituído ratio decidendi do juízo recorrido,
bem se compreendendo que assim seja uma vez que só quando estiver em causa a
inconstitucionalidade da(s) norma(s) que constitui[u](ram) a ratio decidendi do
juízo recorrido é que a decisão do Tribunal Constitucional poderá projectar-se
sobre o caso sub judice, contendendo, nessa medida, com a decisão recorrida,
posto que, como se afirmou no Acórdão n.º 112/84, o Tribunal Constitucional,
enquanto “(...) órgão jurisdicional, nunca age, nem pode aceitar agir, como se
fosse um órgão consultivo em matéria jurisdicional (...), toda e qualquer
apreciação e declaração de inconstitucionalidade de uma norma não pode deixar de
produzir efeito no caso sub judice; não pode, e não deve, com efeito, o Tribunal
Constitucional, pronunciar-se sobre «pleitos puramente teóricos ou académicos»
(cf. Acórdão n.º 149 da Comissão Constitucional)”.
Tal sucederá, inequivocamente, em todas as situações onde a formulação de um
juízo de constitucionalidade sobre determinada norma não se venha a repercutir
na decisão recorrida, porque o critério legal em crise não foi, afinal, aplicado
ao caso concreto como ratio decidendi do juízo proferido.
De resto, mesmo no puro plano do recurso de constitucionalidade, sempre estaria
prejudicada a pronúncia sobre tal questão (art.ºs 660º, n.º 2, do CPC e 69º da
LTC).
Na verdade, estando a nulidade processual, considerada sanada, estribada sobre
um juízo de inconstitucionalidade da norma a cuja aplicação se imputa a
nulidade, deixa de haver qualquer utilidade no conhecimento da questão de
constitucionalidade da norma que diz respeito à sanação quando se considere não
sofrer aquela norma inconstitucionalidade.
Assim sendo, atento o exposto, não há, na parte indicada, que tomar conhecimento
do objecto do recurso.
[4 –] Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Considerar como constituindo um só os dois recursos interpostos nos dois
referidos momentos temporais diferentes;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 113.º, n.º 9, do Código de
Processo Penal, quando interpretada no sentido que a notificação pessoal da
acusação do arguido estrangeiro e que não conheça a nossa língua, pode ser feita
em português;
c) Não tomar conhecimento da segunda questão de constitucionalidade acima
identificada;
d) Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 6 UCs”.
2 – Inconformado, o Recorrente deduziu, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da
LTC, reclamação para a conferência, na qual sustenta que:
“(...)
Quanto a não julgar inconstitucional a norma do art. 113º nº 9 do C.P.P., como
foi interpretada e aplicada na decisão recorrida, salvo melhor opinião e com o
devido respeito, entende o recorrente que as circunstâncias do caso concreto são
totalmente distintas dos casos a que se faz alusão nos Acórdãos citados nesta
Decisão, pois que neste presente caso, não foi nomeado qualquer interprete na
sua língua maternal que lhe traduzisse quer por escrito, quer oralmente a
Acusação.
Anteriormente, já fora solicitado ao Digno Magistrado que fosse facultado
intérprete ao recorrente, o que foi indeferido a fls. 910, razão porque a
situação dos presentes autos não pode ser equiparada à dos Acórdãos de que se
faz menção.
Mas mesmo a considerar-se, como se considerou na decisão sumária, sempre também
se deveria ter tomado conhecimento da segunda questão de constitucionalidade.
Isto porque mesmo a entender-se que a notificação pessoal da acusação pode ser
feita em português a um estrangeiro que não conheça a nossa língua; a partir do
momento em que é ordenando a notificação pessoal da Acusação na sua língua
materna como de facto foi, dever-se-á entender que é a partir daí que toma
conhecimento dos factos e tem possibilidade de organizar a sua defesa.
Após a prolação daquele despacho a interpretação e a aplicação que fez o
tribunal «a quo» das normas contidas no art. 123º, nº 2 - 1 conjugado com a das
normas contidas nos nºs 1 e 2 do art. 122º do C.P.P. é materialmente
inconstitucional conforme o já referido na interposição de recurso para esse
Colendo tribunal.
A questão referente à inconstitucionalidade referida em segundo lugar não está
dependente da referida em primeiro lugar, pelo que devem V. Exas. tomar
conhecimento desta também. A questão da inconstitucionalidade a que se alude no
requerimento de interposição de recurso diz respeito à interpretação das normas
ali mencionadas e à forma como foram interpretadas e aplicadas na decisão
recorrida (neste sentido Ac. 151/94, 238/94 e 18/96)”.
3 – O Representante do Ministério Público junto deste Tribunal
pronunciou-se no sentido de considerar a presente reclamação como manifestamente
improcedente.
Cumpre agora julgar.
B – Fundamentação
4 – Na sua essência, são duas as questões suscitadas pelo
Reclamante.
Por um lado, o ora Reclamante alega que “as circunstâncias do caso
concreto são totalmente distintas dos casos a que se faz alusão nos Acórdãos
citados nesta Decisão”, por outro, sustenta que “a questão referente à
inconstitucionalidade referida em segundo lugar não está dependente da referida
em primeiro lugar, pelo que devem V. Exas. tomar conhecimento desta também. A
questão da inconstitucionalidade a que se alude no requerimento de interposição
de recurso diz respeito à interpretação das normas ali mencionadas e à forma
como foram interpretadas e aplicadas na decisão recorrida (neste sentido Ac.
151/94, 238/94 e 18/96)”.
Como é manifesto, tal argumentação não só não abala minimamente os
fundamentos como também acaba por encontrar resposta na própria decisão
reclamada.
Vejamos.
4.1 – Quanto à primeira questão, começou-se logo por referir na
decisão sumária que o recurso de constitucionalidade não está, entre nós,
configurado como um recurso de amparo, ou como um processo de «queixa
constitucional» (Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde, recurso de
amparo), no âmbito do qual se possa confrontar as decisões judiciais qua tale
com os parâmetros constitucionais, sindicando directamente o acto de julgamento
de uma determinada factualidade e a correcção jurídica da concreta
“interpretação-aplicação” do direito infraconstitucional”, pelo que, “em todo o
caso, os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional estão delimitados e
vinculados à aferição da bondade constitucional de normas – critérios normativos
– não lhe cabendo, por isso, apreciar as nuances fáctico-concretas de um
determinado problema e o juízo de valoração fáctica realizado pelo Tribunal
recorrido”.
Daí decorre, lapidarmente, que o julgamento de constitucionalidade vai
exclusivamente referido a uma norma e é independente não só de um juízo quanto à
correcção com que esse critério é aplicado à factualidade emergente dos autos,
mas também do material fáctico não projectado na norma do caso que conduziu à
decisão recorrida e de outros critérios que integrem a norma apreciada na
decisão impugnada, tal como a referente à disponibilidade de intérprete (art.
92º, nº 2, do CPP).
Tal basta para se alcançar uma compreensão minimamente acessível do recorte
funcional deste Tribunal, designadamente quanto ao desenho dos seus poderes
cognitivos, bem como para justificar os termos em que foi proferido o juízo de
não inconstitucionalidade.
4.2 – Quanto à segunda questão, reitera-se apenas que não tendo a norma em causa
sido aplicada como ratio decidendi do Acórdão recorrido, não há, como se
argumentou na decisão sumária – e não se controverteu na Reclamação – , que
conhecer da sua constitucionalidade.
C – Decisão
5 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
reclamação.
Custas pelo Recorrente com 20 (vinte) UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2005
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos