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Proc. nº 126/97
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Em processo comum e perante tribunal colectivo o MINISTÉRIO PÚBLICO requereu o julgamento de A., sociedade anónima com sede na Rua
............., em ........., e de B., casado, de nacionalidade canadiana, residente em ..........., imputando à primeira a prática de seis crimes de abuso de confiança fiscal, sendo um previsto na anterior versão do art. 24º do 'Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras' (RJIFNA) e os restantes na versão introduzida pelo Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e imputando idênticos crimes ao segundo, dado este ter agido na qualidade de presidente do conselho de administração da primeira arguida, sendo o seu accionista maioritário, levando a cabo uma apropriação indevida das quantias referentes ao imposto sobre valor acrescentado, quantias que não foram entregues ao Ministério das Finanças.
Realizado julgamento no Tribunal de Círculo de ................., vieram os arguidos a ser condenados por sentença proferida em 24 de Maio de 1996: a primeira arguida na pena de multa de 110.000 contos pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal; o segundo arguido na pena de dois anos de prisão, também pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal.
Inconformados com este acórdão, dele interpuseram recursos ambos os arguidos. Na motivação do recurso interposto pela arguida A. foi suscitada a
'questão processual' da intervenção no tribunal colectivo de um juiz que tomara decisões no inquérito, tendo, por isso, analisado 'elementos recolhidos pela acusação até esse momento'. Entre tais decisões constava a determinação da prisão preventiva do arguido B.. Acrescia ainda que o mesmo magistrado judicial era juiz do processo de recuperação da empresa A.. No entender da recorrente, 'o exercício de funções jurisdicionais no Inquérito impede que tal magistrado exerça as suas funções jurisdicionais no julgamento face ao que dispõe o art.
32º nº 4 da Constituição e o art. 40º do C.P.P.' (a fls. 876-877 dos autos). Nas conclusões, afirmou-se ainda que, tendo um dos magistrados que compunham o colectivo tomado decisões no inquérito, nomeadamente sobre a prisão de um co-arguido, implicava tal facto que esse magistrado tivesse 'feito um juízo de valor antecipado ao julgamento sobre os factos submetidos ao mesmo, violando-se assim o disposto no art. 40º do CPP e 32º nº 4 da Constituição' (a fls. 889 dos autos). E, em jeito de conclusão, depois de propugnar pela sua absolvição, a título subsidiário, requereu a anulação do julgamento e correspondente repetição, 'por ter sido violada a norma do art. 40º do CPP e 32º nº 4 da Constituição' (a fls. 893).
No Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral Adjunto exarou parecer nos autos onde referiu:
' Nos presentes autos e conforme consta de fls. 168 e 168 vº, o despacho que decretou, na fase de inquérito, a prisão preventiva do ora recorrente B. foi proferido pela Mma. Juíza C.. Esta mesma magistrada interveio no julgamento que condenou o mesmo arguido (v. fls. 849).
Ora, o Tribunal Constitucional, por acórdão de 10 de Julho de 1996, proferido no processo nº 674/92, julgou inconstitucional a norma constante do art. 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite ao juiz que, na fase do inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido
[intervenha no julgamento] por violação do art. 32º, nº 5 da Constituição.
Não foi esse, como aliás consta do mesmo acórdão, o entendimento do meu Exmº. Colega naquele Venerando Tribunal, como não é, com todo o respeito, a nossa opinião. Assim, e porque não se verifica o condicionalismo do art. 82º da Lei
28/82, de 15/11, e dado o disposto no art. 80º, nº 1, da mesma lei, não se propugna nos presentes autos a anulação do julgamento.' (a fls. 1001-1002)
Esta questão processual veio a ser julgada improcedente pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 1997, nos seguintes termos:
' Tendo intervindo no julgamento o juiz que validou a prisão por ter procedido ao interrogatório inicial do arguido verifica-se a nulidade do julgamento?
Convém desde já recordar que a previsão do artigo 40º do Código de Processo Penal dispõe tão-só que não pode intervir no julgamento o juiz que tiver presidido ao debate instrutório.
Não obstante o juiz não ter intervindo nesse debate poderá equacionar-se se o facto de o juiz ter ouvido o arguido envolve diminuição das garantias do processo criminal - artigo 32º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Este tema tem sido tratado a nível da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Este Tribunal tem decidido que o simples facto de um juiz ter já tomado decisões anteriores no processo não pode justificar, em si, apreensões quanto à sua imparcialidade. O que conta é a extensão e a natureza das medidas anteriormente tomadas - vejam-se neste sentido os casos citados no recurso 59/96 deste Supremo Tribunal de Justiça, cujo acórdão é de 30 de Outubro de 1996.
Ora no caso em apreço nenhuma razão se descortina para nos convencermos de que o simples facto de ter presidido ao primeiro interrogatório judicial do arguido tenha deixado influências ao ponto de julgar os factos determinantes da condenação nos termos em que foram estabelecidos pelo colectivo.
E do ponto de vista objectivo o elemento determinante consiste em saber se as apreensões da arguida podem ter-se por objectivamente justificáveis.
Mas também neste sentido é de afastar toda a suspeição pois sendo o Colectivo formado por três juízes não é de presumir que a livre apreciação deles fosse influenciada pelas impressões obtidas por um deles em acto processual anterior, praticado no início do processo.
E nenhum elemento objectivo nos permite concluir que o juiz que procedeu ao interrogatório ficasse vinculado pela decisão anterior e muito menos convencido da culpabilidade do arguido, mas antes se configura como inteiramente livre para concluir quanto ao fundo com base nas provas debatidas contraditoriamente em audiência.
Neste sentido pode ver-se também Figueiredo Dias em nota introdutória ao Cód. Processo Penal, editorial Arquitas/Ed. Notícias, pg. 13.
Não se mostra, assim, violado o art. 32º da C.R.P.' (a fls. 1078-1079)
2. Inconformado com esta decisão dela veio interpor a arguida recurso para o Tribunal Constitucional, invocando a alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional e indicando pretender que este último Tribunal apreciasse a questão de conformidade constitucional do disposto no art.
40º do Código de Processo Penal, questão essa 'suscitada na conclusão 1ª do recurso'. Referiu ainda que, 'no sentido preconizado pela Recorrente, já julgou o Tribunal Constitucional pelo seu Ac. 935/96, no Proc. 674/92 da 2ª Secção, publicado na II Série do D.R. 11-12-96' (a fls. 1088 e vº).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 1089.
3. Os autos subiram ao Tribunal Constitucional, tendo apresentado alegações recorrente e recorrido Ministério Público.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
' A) A Mma Juíza interveniente no Colectivo que julgou no Tribunal de Círculo de
................., foi Juíza de instrução no inquérito e foi-lhe submetida a questão de mérito acerca da suficiente indiciação dos factos integradores do crime imputado aos arguidos;
B) Tendo aquela entendido estar a prova suficientemente feita nos autos, após a consulta dos mesmos que já nesse acto continham toda a documentação e depoimentos que vieram a repetir-se em julgamento;
C) O que lhe deu um excessivo conhecimento da questão em apreço, sob o ângulo da tese acusatória;
D) Impondo-lhe conclusões quanto ao comportamento dos arguidos que influenciaram negativamente a apreciação livre da prova em audiência;
E) Conclusões tão fortemente assentes que lhe permitiram sustentar a decisão de mandar prender um arguido e recusar mais tarde a sua libertação;
F) Ultrapassando tais decisões a mera função de controle jurisdicional cometida ao Sr. Juiz de Instrução;
G) Pois tais decisões têm implícitas uma pronúncia sobre a matéria da acusação e da defesa;
H) Assim fez a Mma. Juíza ao não pedir escusa de participar no Colectivo uma errada interpretação do art. 40º do Cód. Proc. Penal;
I) E com isso violaram-se os princípios do contraditório e as garantias de defesa previstas no nº 4 do art. 32º da Constituição;
J) Sendo que os preceitos invocados não têm função de prevenção face à verificação de factos que objectivamente demonstram ter havido influência no julgador pelo facto de ter interferido no inquérito, mas tão-só prevenir essa eventual influência;
L) Ou seja, tais normas são sistema objectivo estrutural de prevenção para tornar difícil a violação dessas garantias;
M) Tendo-se verificado um caso notório de violação dessas garantias de defesa, ter-se-á por conclusão final que o julgamento deverá ser repetido sem a intervenção do membro do Colectivo que interviera no inquérito.' (a fls. 1094 vº
- 1095 vº)
Por seu turno, o Senhor Procurador-Geral Adjunto concluiu do seguinte modo as suas alegações:
'
1º
A norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento em que é apreciada a responsabilidade criminal de um arguido - pessoa colectiva - do juiz que, na fase do inquérito, decretou a prisão preventiva de um outro co-arguido - pessoa singular - e indeferiu a suspensão de tal medida de coacção, por motivos ligados ao estado de saúde do mesmo arguido, não viola o princípio constitucional das garantias de defesa, constante do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
2º
Na realidade, sendo perfeitamente diversa e autónoma a matéria que releva para o apuramento e medida da responsabilidade criminal da pessoa colectiva e a que interessa à imposição ao arguido, pessoa singular, da medida de prisão preventiva, não se vê em que medida poderá a decisão proferida sobre os pressupostos desta abalar ou pôr em crise a imparcialidade do julgador na apreciação dos pressupostos da infracção criminal imputável à pessoa colectiva, co-arguida nos autos.
3º
Termos em que deverá improceder o presente recurso.' (a fls. 1106-1107)
4. Foram corridos os vistos legais.
Importa, por isso, começar por analisar se estão reunidas as condições para que o Tribunal Constitucional conheça do objecto do recurso.
II
5. A recorrente afirmou, no requerimento de interposição do recurso, que pretendia impugnar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao juízo de não inconstitucionalidade do art. 40º do Código de Processo Penal de 1987, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Indicou ainda que a decisão recorrida acolhera um juízo de conformidade constitucional da referida norma em oposição com anterior acórdão do Tribunal Constitucional, que identificou.
A entidade recorrida, por seu turno, não suscitou qualquer questão prévia quanto ao conhecimento do objecto do recurso.
6. Entende-se que não há razões que obstem ao conhecimento do objecto do recurso.
Muito embora a recorrente tivesse, na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, imputado a inconstitucionalidade à própria composição do tribunal colectivo, considerando que o acto de intervenção nesse colectivo da magistrada que ordenara a prisão do co-arguido B. violava o art.
32º, nº 4, da Constituição e o art. 40º do Código de Processo Penal, a verdade é que, na sequência do parecer atrás transcrito do Procurador-Geral Adjunto junto do Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão recorrido apreciou uma questão de inconstitucionalidade normativa, considerando implicitamente que o art. 40º do Código de Processo Penal, na sua formulação literal, não violava o art. 32º da Constituição.
Há-de, assim, considerar-se que se mostram verificados os pressupostos do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Mas ainda que se adoptasse entendimento mais exigente e se admitisse que a circunstância de a recorrente não ter suscitado durante o processo uma questão de inconstitucionalidade normativa impediria o conhecimento do recurso, não obstante a decisão recorrida se ter pronunciado sobre a questão de inconstitucionalidade normativa referida, ainda assim se haveria de conhecer do presente recurso.
De facto, a recorrente acabou por interpor o recurso, - embora sem o fazer de forma muito clara - com fundamento também na alínea g) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional, do mesmo passo que o representante do Ministério Público - também conhecedor do acórdão nº 935/96 do Tribunal Constitucional, que expressamente cita no parecer de fls. 1001-1002 - se absteve de o fazer.
7. Cabe perguntar, porém, se a recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso, atenta a circunstância de a intervenção da Magistrada Judicial que integrou o tribunal colectivo, nas fases de inquérito e instrução, se ter cingido à decisão sobre a prisão preventiva do co-arguido B. e sua manutenção subsequente.
De facto, através do despacho de fls. 168, a Juíza Drª. C., na sequência do primeiro interrogatório do detido B., determinou que esse arguido aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, depois de ponderar o perigo de fuga e os riscos para a aquisição e conservação de provas. Esse despacho foi impugnado por recurso, tendo a referida Magistrada proferido despacho de sustentação. E a mesma Magistrada indeferiu um pedido de suspensão daquela medida de coacção, formulado pelo arguido com invocação de doença grave
(requerimento a fls. 171 a 174 dos autos), considerando, após ter ordenado a realização de exames clínicos e face aos resultados, que o estado de saúde desse arguido era compatível com a manutenção da prisão preventiva (despacho de fls.
511-512 dos autos).
Ora, e revertendo à questão acima formulada, não tendo o arguido B. impugnado a participação dessa Juíza no Tribunal Colectivo que o veio a condenar, poderá a pessoa colectiva co-arguida suscitar a questão da inconstitucionalidade do art. 40º do Código de Processo Penal?
De harmonia com o disposto no art. 72º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, podem recorrer as pessoas 'que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso'. No caso sub judicio e tratando-se de processo penal, é indiscutível que a co-arguida A. tenha legitimidade para interpor recurso da decisão de primeira instância condenatória, atento o disposto no art. 401º, nº
1, alínea b), do Código de Processo Penal. Acrescente-se, aliás, que o Supremo Tribunal de Justiça admitiu que a recorrente A. tinha legitimidade para suscitar, no seu recurso, a questão da inconstitucionalidade da participação no tribunal colectivo da referida Magistrada (cfr. ainda os arts. 402º, nº 1, e
403º do mesmo diploma legal).
Há-de concluir-se que a recorrente A. dispõe também de legitimidade para interpor o presente recurso, seja ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da Lei do Tribunal Constitucional - veja-se o disposto no nº 2 do art. 72º desta última Lei - seja ao abrigo da alínea g) do mesmo número e artigo acima indicados. De facto, da procedência do recurso poderá resultar a invalidação do julgamento da primeira instância, solução que beneficiará o co-arguido B., por lhe aproveitar o recurso (cfr. art. 402º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Penal e art. 74º, nº 2 e 3, da Lei do Tribunal Constitucional).
8. Não há, assim, obstáculos de ordem formal, ao conhecimento do objecto do recurso.
III
9. Constitui, pois, objecto de recurso a norma do último segmento do art. 40º do Código de Processo Penal - que apenas impede a intervenção no julgamento de um processo ao juiz que tiver presidido ao debate instrutório - na parte em que considera existir, ou quando interpretada no sentido de que não existe, tal impedimento relativamente ao juiz que haja ordenado e posteriormente haja mantido a prisão preventiva de um dos co-arguidos.
10. Se fosse o próprio recorrente que tivesse visto ser ordenada a sua prisão preventiva por determinado magistrado judicial, após o primeiro interrogatório, e que tivesse ainda visto ser confirmada a subsistência das condições de aplicação dessa medida de coacção, face a um requerimento por si formulado em momento processual subsequente, pelo mesmo magistrado judicial, não haveria dúvidas de que - se esse mesmo magistrado judicial tivesse intervindo no seu julgamento - ocorria situação perfeitamente idêntica à verificada no processo em que foi proferido o acórdão nº 935/96 (publicado no Diário da República, II Série, nº 286, de 11 de Dezembro de 1996), onde foi julgada inconstitucional 'a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição). Deve acrescentar-se que foi já proferido um segundo acórdão, com o nº 284/97, ainda inédito, onde se aplicou a doutrina do acórdão nº 935/96, mas nesse caso quem interpôs o recurso foi o Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Por se concordar com essa fundamentação dos acórdãos da 2ª Secção do Tribunal Constitucional, para ela se remete neste momento (deve referir-se que a adopção deste entendimento não briga com a solução que a 1ª Secção acolheu no acórdão nº 114/95, publicado na II Série do jornal oficial, nº 95, de 22 de Abril de 1995, onde se considerou que o art. 40º do Código de Processo Penal pode ser entendido de forma extensiva, não compaginável com mera interpretação literal, de forma a abranger 'outras situações em que um ou mais membros do tribunal desempenharam no processo outras funções de modo a considerar abalada a exigência de imparcialidade, como índice de crise da confiança geral na objectividade da jurisdição', embora, no caso sub judicio, a intervenção esporádica de um juiz que integrou o tribunal colectivo tivesse ocorrido no início da fase de inquérito, autorizando a emissão de mandados de busca que nem sequer tinham chegado a ser cumpridos, não havendo na altura qualquer referência ainda à pessoa do arguido recorrente nesses autos, situação que fundou o juízo de não inconstitucionalidade da norma do art. 40º do Código de Processo Penal, no segmento então aplicado).
11. O Senhor Procurador-Geral Adjunto, nas suas alegações, sustenta, porém, que, não obstante não haver obstáculos de natureza formal ao conhecimento do recurso, a doutrina do acórdão nº 935/96 não pode ser aplicada no presente recurso, por ocorrerem razões de natureza essencial que diferenciam ambas as situações, sob o ponto de vista do juízo de constitucionalidade. Aí afirmou esse Magistrado:
' O caso dos autos revela, porém, duas especificidades que reputamos de essenciais, relativamente à situação dirimida no Acórdão nº 935/96.
Assim, em primeiro lugar, importa referir que nenhum dos arguidos questionou, durante a audiência de julgamento, a constituição do tribunal - como havia sucedido na hipótese sobre que incidiu aquele acórdão nº 935/96 - o que, desde logo, inculca a ideia de que não consideraram susceptível de abalar a
«imparcialidade» do julgador a circunstância de um dos magistrados que integravam o colectivo ter tido a intervenção processual, durante a fase de inquérito, atrás relatada.
Verifica-se, por outro lado, que foi a arguida - pessoa colectiva A. - que tratou de suscitar tal questão de inconstitucionalidade, sendo certo que, como é obvio e decorre da própria «natureza das coisas», o destinatário da medida de coacção «prisão preventiva» tinha sido o arguido - pessoa singular – B..
Tal circunstância deita, a nosso ver, por terra a tentativa de «equiparação» deste caso ao dirimido através do citado acórdão 935/96: é que as várias questões debatidas e decididas através dos despachos proferidos pela Exmª. Juíza do Tribunal de Comarca de ...................., são perfeitamente irrelevantes para o apuramento dos pressupostos de responsabilidade criminal imputada à arguida A..
Na verdade, o que se decidiu naqueles despachos tem naturalmente a ver - apenas e exclusivamente - com factores e circunstâncias que se prendem com a pessoa do arguido B.: o concreto receio de fuga, o perigo de perturbação da aquisição e recolha de provas durante o inquérito e os reflexos da situação prisional decretada no seu estado de saúde.
Ora, como é óbvio, tais factos e circunstâncias não têm a mínima susceptibilidade de se repercutirem na apreciação dos pressupostos da responsabilidade criminal de uma co-arguida, pessoa colectiva [...].
É, por outro lado, perfeitamente irrelevante a circunstância - alegada pela recorrente - de aquela senhora magistrada ter tido intervenção em processos de natureza cível, visando a recuperação da empresa arguida nos presentes autos. Na realidade, entendemos que carece absolutamente de fundamento a interpretação, desproporcionada e maximalista, segundo a qual ficaria vedada ao juiz que interviesse em processo criminal o exercício de funções não apenas nesse mesmo processo, nas fases anteriores ao julgamento - mas em todo e qualquer processo, independentemente da sua natureza, em que figurasse como parte ou sujeito processual algum dos arguidos.' (a fls. 1104 a 1106 dos autos)
12. Que dizer desta argumentação tendente a demonstrar que as razões justificativas do julgamento de inconstitucionalidade adoptado nos acórdãos nºs. 935/96 e 284/97 não se aplicam ao caso sub judicio?
Tem-se por improcedente tal argumentação, desde logo porque se reconheceu legitimidade à ora recorrente para suscitar uma questão de constitucionalidade relativamente à norma aplicada a um co-arguido, isto é, relativamente ao art. 40º do Código de Processo Penal.
Mas tendo mesmo em consideração a situação processual da mesma recorrente, importa reconhecer que, como põe em relevo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, está em causa a responsabilidade penal de uma pessoa colectiva pela prática de um crime fiscal.
Como resulta do preâmbulo do diploma que aprovou o RJIFNA, uma vez esclarecida a opção da criminalização de algumas infracções fiscais, pôs-se ao legislador a questão de saber se se justificava o acolhimento neste domínio das
'razões de ordem pragmática [que] têm levado a que nos últimos anos se
[generalizasse] a tendência de admitir excepções ao dogma de individualidade da responsabilidade criminal'. A resposta dada foi afirmativa, considerando que a criminalização das condutas das pessoas colectivas responde 'ao moderno incremento das actividades delituosas imputáveis a grandes organizações económicas', nomeadamente no domínio do direito penal secundário, incluindo o direito penal fiscal. E o referido RJIFNA estatui, no seu art. 7º, nº 1, que as pessoas colectivas e equiparadas 'são responsáveis pelos crimes previstos no presente Regime Jurídico quando cometidos pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo', responsabilidade esta que 'não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes' (nº 3; cfr. ainda o art. 6º deste Regime Jurídico).
Ora, não havendo óbices de natureza constitucional à solução de responsabilizar criminalmente as pessoas colectivas (como se decidiu em múltiplos acórdãos do Tribunal Constitucional, nomeadamente nos acórdãos nºs.
212/95, 213/95 e 302/95, publicados no Diário da República, II Série, nºs. 144, de 24 de Junho de 1995, nº 145, de 26 do mesmo mês e ano e nº 174, de 29 de Julho de 1995, respectivamente), também não poderá sustentar-se que não sejam aplicáveis às pessoas colectivas arguidas as garantias do processo criminal que
'sejam compatíveis com a sua natureza' (art. 12º, nº 2, da Constituição).
Assim sendo, não se vê por que razão não poderá exigir a pessoa colectiva arguida que se lhe apliquem as garantias de imparcialidade do tribunal do julgamento, tal como se aplicam à pessoa singular que agiu como seu representante legal. De facto, confundindo-se no plano fáctico a actuação do representante com a do representado - residindo aí, aliás, uma das dificuldades clássicas da responsabilização criminal das pessoas colectivas, atento o princípio de non bis in idem (cfr. Sofie Geeroms, La Responsabilité Pénale de la Personne Morale: une Étude Comparative, in Revue Internationale de Droit Comparé, ano 48, 1996, págs. 559 e seguintes) - não poderá sustentar-se um regime processual penal mais gravoso para esta última, tanto mais que o representante também incorreu em responsabilidade penal no caso concreto.
Gozando a pessoa colectiva acusada de prática de crime da presunção constitucional da inocência, bem se compreende que não possa deixar de estar impedido o juiz que apreciou a culpa do representante legal dessa pessoa colectiva na fase de inquérito, quer decretando a prisão preventiva deste
último, quer reapreciando posteriormente a subsistência das razões que o levaram a decretar a prisão preventiva, concluindo no sentido da sua manutenção. É que não se trata da prática de 'actos isolados', mas de uma apreciação continuada das imputações de factos criminosos ao arguido pessoa singular - cuja vontade é imputada funcionalmente à própria pessoa colectiva representada por ele - com acesso às provas já recolhidas relativamente a esse arguido, apreciação essa que põe em causa o princípio constitucional da estrutura acusatória do processo penal (art. 32º, nº 5).
13. Tal como nos casos apreciados nos acórdãos nºs. 935/96 e
284/97, 'a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, no segmento em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, apenas decretou a prisão preventiva do arguido' acabou por ser aplicada numa 'dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da acusação, confirmou a prisão preventiva'. Neste caso como naqueles, o respectivo magistrado ficou 'com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes processos, que objectivamente, - e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento'.
A circunstância de nenhum dos arguidos ter suscitado a questão de constitucionalidade no início do julgamento não tem qualquer relevância, visto que a arguida pessoa colectiva suscitou tal questão em momento processual adequado, ou seja, na motivação do seu recurso, tendo havido contraditório sobre essa questão e vindo a mesma a ser apreciada e resolvida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
14. Por outro lado - e diferentemente do sustentado nas alegações da entidade recorrida - a circunstância de o destinatário das medidas de coacção ter sido o co-arguido pessoa singular, representante da pessoa colectiva, não põe em causa a aquisição pelo magistrado em causa 'da convicção de tal modo arreigada' quanto à responsabilidade daquele, convicção que vem fatalmente a estender-se quanto à responsabilidade do representado. Não pode, por isso, sustentar-se a completa cisão entre as duas responsabilidades criminais, tanto mais quanto é conhecido que a política criminal pretende, em domínios marcados do direito penal secundário, 'repartir melhor as sanções repressivas e atingir não apenas os indivíduos que actuam fisica e intencionalmente, mas também os guarda-ventos, atrás dos quais se abrigam e nos quais depositam os meios materiais propícios à sua acção' (formulação de André Vitu acolhida no citado acórdão nº 302/95). Acrescente-se que o facto de a pessoa colectiva não poder ser sancionada com pena de prisão detentiva não afasta a titularidade constitucional do seu direito à presunção de inocência ou do seu direito a um julgamento por um tribunal imparcial.
Só quanto ao argumento da recorrente atinente à invocada relevância do facto de a juíza que determinara a aplicação de medidas de coacção ao co-arguido ter sido a magistrada que julgara o processo de recuperação de empresas se deve reconhecer pertinência à critica formulada pelo Representante do Ministério Público. De facto, apreciando-se uma questão de inconstitucionalidade normativa de uma disposição do Código de Processo Penal, não tem de atender-se à pendência de uma acção de natureza cível onde interveio o mesmo magistrado, sob pena de transformar o recurso de fiscalização concreta de normas num recurso de amparo, não admitido no nosso Direito.
14. Nestes termos e pelas razões expostas, fazendo-se aplicação da doutrina dos acórdãos nºs. 935/96 e 284/97, há-de ser procedente o presente recurso.
III
15. De harmonia com o exposto e pelas razões referidas, decide o Tribunal Constitucional:
a) julgar inconstitucional a norma constante do art. 40º do Código de Processo Penal na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva de um dos co-arguidos, por violação do art. 32º, nº 5, da Constituição;
b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, que deverá ser reformulado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 4 de Novembro de 1997 Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa