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Processo n.º 1094/04
.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal
Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A.,
foi interposto recurso, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, de 15 de Abril de
2004. Considerou-se nesta sentença que a “taxa de salubridade”, prevista no
artigo 7º do Regulamento de Saneamento Básico da Câmara Municipal da Póvoa de
Varzim, é ilegal e inconstitucional pelo que viola o Princípio da Legalidade
Tributária previsto no artigo 103º, nº 2, da Constituição da República
Portuguesa e no artigo 8º da Lei Geral Tributária.
2. A recorrida impugnou judicialmente as liquidações e cobranças de taxa de
salubridade, efectuadas em 30 de Setembro de 2002, pela Câmara Municipal da
Póvoa de Varzim, sustentando, desde logo, a inconstitucionalidade do tributo,
uma vez que, por falta de sinalagma, aquele deixa de se configurar como taxa e
assume contornos de verdadeiro imposto. Foi julgada procedente a impugnação,
mediante sentença que, quanto à questão de inconstitucionalidade, se pronunciou
pela forma seguinte:
“(…) No caso sub judice importa agora analisar a ‘taxa de salubridade’ liquidada
e aqui impugnada, no sentido de apurar qual o serviço público individualizado a
que a ela corresponde.
No artigo 7° nº2 o Regulamento de Saneamento básico da Câmara Municipal da Póvoa
de Varzim diz que ‘A tarifa de salubridade consubstancia a comparticipação do
utente nos custos de exploração e conservação dos sistemas, correspondente aos
encargos da sua disponibilidade e utilização’.
A tarifa a que se refere este artigo serve para custear a exploração e
conservação dos sistemas, quais sistemas? E correspondente ao encargo da sua
disponibilidade e conservação. ‘Sua’ de quem? Qual? .
Não é do saneamento, nem de abastecimento de aguas, nem de lixos, nem se refere
a ramais de saneamento específicos, nem à drenagem de esgotos, nem à recolha de
resíduos sólidos, nem aferição de contador, nem limpeza de fossas, nem
desobstrução de colectores, nem desinfecção de cisterna, nem vistorias, pois
embora tudo isto faça parte da manutenção e conservação do saneamento básico,
tem as suas tarifas próprias, fls. 30, 31 e 32 dos autos.
Então qual é de facto a contrapartida pela taxa/tarifa de salubridade?
Invoca a Câmara na sua contestação que a norma se refere ao funcionamento dos
sistemas de distribuição pública e predial de água e de drenagem pública e
predial de águas residuais, visando a tarifa de salubridade compensar a
autarquia dos encargos decorrentes do facto de o sistema de saneamento básico se
encontrar permanentemente em funcionamento e apto a ser utilizado. Ao que parece
não se trata de um serviço semi-público individualizado e concreto, o qual
permita saber quem particularmente o pretende utilizar ou utiliza e como tal
tornar o seu uso dependente do pagamento de uma determinada quantia.
A existência de uma rede de pública de distribuição e drenagem de água é um bem
público e que satisfaz necessidades colectivas, indivisíveis, sendo por isso
impossível atribuir, num determinado momento, o seu uso a um sujeito passivo
individualizado e concreto.
A jurisprudência do S.T.A. no Acórdão n° 26472 refere-se a este assunto na
análise de uma tarifa de conservação de esgotos liquidada aos proprietários dos
imóveis prevista no Regulamento de canalizações e esgotos de Lisboa dizendo: ‘o
tributo em causa deve, assim, qualificar-se como taxa, dada a contrapartida
directa do serviço prestado pelo Município ao contribuinte: a conservação da
rede e tratamento de esgotos à qual os prédios se encontram ligados.
Fazendo o paralelismo das situações, parece evidente que a contra prestação a
que se refere o Acórdão citado, não tem equivalência no caso sub judice uma vez
que não se pode definir qualquer contra partida directa, a um sujeito passivo em
concreto, à qual possa corresponder uma taxa de salubridade.
Tratando-se de um verdadeiro imposto, a ‘taxa de salubridade’ liquidada pelo
Município da Povoa de Varzim é ilegal e inconstitucional pelo que viola o
Principio da Legalidade Tributária previsto no art. 103° nº2 da C.R.P. e no art.
8° da LGT”.
3. Recebidos os autos neste Tribunal, alegou o recorrente, nos seguintes termos:
“O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público da sentença –
proferida no Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto – que, nos autos de
impugnação judicial em que figura como recorrente A., desaplicou, com fundamento
em inconstitucionalidade orgânica, a norma constante do artigo 7°, n° 2, do
Regulamento de Saneamento Básico do Município da Póvoa de Varzim, por qualificar
como ‘imposto’ a ‘tarifa de salubridade’ ali instituída, como forma de obrigar à
comparticipação dos utentes dos serviços de fornecimento de água e de drenagem
de águas residuais nos encargos da disponibilidade e utilização das respectivas
infraestruturas.
A dirimição da questão de constitucionalidade suscitada passa, deste modo, por
determinar se tal tributo reveste ainda carácter ou natureza sinalagmática,
traduzindo uma utilização individualizável de bens do domínio público autárquico
pelo utente do sistema público municipal de fornecimento de água e drenagem de
águas residuais.
O artigo 1° de tal regulamento estabelece que o respectivo objecto é a regulação
das relações contratuais entre a autarquia e os utentes no que se refere à
prestação dos serviços de fornecimento de água, drenagem de águas residuais e
recolha de lixos. O ‘regime tarifário’ instituído caracteriza-se por:
- estabelecer directamente a ‘tarifa’ correspondente ao fornecimento de água,
com base nos valores efectivamente medidos;
- estabelecer, por via indirecta e presumida, a tarifa referente à drenagem de
águas residuais e recolha de lixos, com base – indirectamente – no consumo de
água facturada em certo período temporal, multiplicado pelo factor
correspondente às ‘tarifas de saneamento e de recolha de lixo’;
- finalmente, prever (a partir de 2001) uma tarifa adicional de salubridade,
consubstanciando a comparticipação do utente nos custos de exploração e
conservação daqueles sistemas, previstos no artigo 1°, calculada com base no
consumo médio mensal facturado no ano anterior.
É esta tarifa adicional de salubridade que a decisão recorrida qualifica como
imposto, por nela não vislumbrar qualquer correspectividade ou contrapartida
para os utentes.
Não parece, todavia, que assim seja, já que – como decorre da jurisprudência
constitucional, editada, nomeadamente, em sede de apreciação da conformidade
constitucional da ‘taxa de urbanização’ (cfr., por todos o Acórdão n° 357/99) –
não obsta à qualificação como taxa o facto de inexistir uma prestação
absolutamente individualizada aos particulares/utentes, nos casos em que a
contrapartida de certo ‘tributo’ se traduz na utilização ou possibilidade de
utilização de equipamentos ou infraestruturas urbanísticas ‘colectivas’; tal
como não obsta a tal qualificação jurídica o facto de ser impossível determinar
uma precisa ‘equivalência económica’ entre o montante do serviço e a taxa ou
tarifa imposta ao utente.
No caso dos autos, é inquestionável que os utentes dos serviços públicos de
fornecimento de águas, drenagem de águas pluviais e recolha de lixos beneficiam,
em termos individuais e ‘personalizados’, da existência e do funcionamento
eficaz e adequado de tais equipamentos colectivos, cuja manutenção implica, como
é notório, custos que transcendem o puro ‘preço’ do fornecimento da água
consumida, revestindo ainda natureza ‘sinalagmática’ a imposição de
comparticipação em tais encargos de exploração e conservação das infraestruturas
que potenciam a prestação do serviço.
É certo que o Regulamento em causa parece ter procedido (como nota, aliás, o
Ministério Público, no parecer de fls. 58 e segs.) a um desdobramento ou
autonomização das tarifas (propriamente ditas) de consumo e drenagem de águas e
de recolha do lixo (estabelecidas, em perfeita correspectividade económica, com
o valor individual e comprovado daquele consumo) e a ‘taxa de salubridade’,
destinada a suportar os custos globais de manutenção dos equipamentos colectivos
que integram as redes de fornecimento e escoamento de águas. Ou seja, em vez de
se prever uma taxa unitária agravada para a prestação de tais serviços (que
incluísse, no seu cômputo, quer o ‘consumo’ individualizado do utente, quer a
percentagem da sua comparticipação nos custos globais de manutenção da rede),
optou-se antes pelo desdobramento e autonomização de duas taxas – uma traduzindo
o preço do consumo efectivo ou presumido do utente e outra – a referida ‘tarifa
de salubridade’ - traduzindo a comparticipação de cada utente nos custos globais
de manutenção da rede.
Afigura-se, porém, que – no plano jurídico-constitucional – nada obsta a tal
desdobramento, não havendo, nomeadamente, nos autos qualquer elemento que
permita, com base um juízo de manifesta desproporcionalidade, qualificar a
tarifa de salubridade como traduzindo uma imposição contributiva que – por
transcender claramente o custo provável ou previsível de tais serviços de
manutenção das infra-estruturas urbanísticas em causa – pudesse ser desprovida
de fundamento sinalagmático”.
4. A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do juízo formulado pela
decisão recorrida, no que concerne à questão de constitucionalidade. Formulou as
seguintes conclusões:
“1. Estando em causa a eventual desconformidade da ‘taxa de salubridade’,
importa proceder à qualificação da aludida figura;
2. A ‘taxa de salubridade’ tem o seu fundamento legal no art. 20° da Lei das
Finanças Locais e no art. 7° n.º 2 do Regulamento de Saneamento Básico;
3. A questão suscitada perante este Tribunal é a de saber se o dito regulamento
apenas concretizou a lei habilitante ou se, pelo contrário, criou um verdadeiro
imposto;
4. Os Municípios têm competência legislativa para a criação de taxas em áreas do
seu interesse específico;
5. As taxas revestem carácter sinalagmático, que deriva funcionalmente da
natureza do facto constitutivo das obrigações em que se traduzem e que não
consiste na prestação de uma actividade pública especialmente dirigida ao
respectivo particular ou na utilização de bens do domínio público ou na remoção
de um limite jurídico à actividade dos particulares;
6. O imposto é uma prestação pecuniária, singular e reiterada, que não apresenta
conexão com qualquer contraprestação retributiva;
7. O critério de diferenciação entre imposto e taxa, segundo a jurisprudência
constitucional, consiste na unilateralidade ou bilateralidade dos tributos em
causa;
8. Sendo a ora recorrida utente do sistema público de saneamento básico, não há
qualquer outro serviço prestado para além dos serviços de fornecimento de água,
da taxa de saneamento relativamente aos esgotos e à recolha de resíduos sólidos,
que possa justificar a liquidação da ‘taxa de salubridade’;
9. Fica assim precludido o vínculo de reciprocidade que caracteriza as taxas,
uma vez que a ora recorrida não recebeu, nem recebe, qualquer contrapartida
económica proporcional por parte da Câmara;
10. O tributo cobrado pela Câmara apresenta-se como uma forma de
auto-financiamento da autarquia e, como tal, reveste contornos de verdadeiro
imposto;
11. Atenta a sua natureza jurídica, de verdadeiro imposto, só poderia ser criada
pela Assembleia da República (já não por deliberação da Assembleia Municipal da
Póvoa de Varzim) o que configura uma inconstitucionalidade orgânica e formal das
respectivas normas do Regulamento de Saneamento Básico e do Tarifário de
Saneamento Básico, nos termos dos arts. 103° n.º 3 e 165° n.º 1 al. i) da
Constituição”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Como resulta de quanto acima ficou relatado, está em causa no presente
recurso a qualificação jurídico-tributária da tarifa de salubridade, prevista no
nº 2 do artigo 7º do Regulamento de Saneamento Básico, aprovado pela Assembleia
Municipal da Póvoa de Varzim, em 27 de Junho de 1996, e alterado em 1 de Março
de 2001, cujo pagamento foi reclamado da ora recorrente.
Na decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto entendeu-se, tal como
sustentado pela agora recorrida, que, apesar da denominação adoptada, não estava
em causa qualquer taxa ou tarifa, mas antes um verdadeiro imposto, razão por que
se concluiu pela inconstitucionalidade da norma e pela sua desaplicação no caso
concreto. O Ministério Público sustenta posição contrária, entendendo que a
norma criou uma taxa.
É o seguinte o teor da norma em apreço:
“Artigo 7º
Regime Tarifário
1. Compete à Câmara Municipal estabelecer, nos termos legais, as tarifas
correspondentes aos serviços prestados no âmbito do saneamento básico e a tarifa
de salubridade.
2. A tarifa de salubridade consubstancia a comparticipação do utente nos custos
de exploração e conservação dos sistemas, correspondentes aos encargos da sua
disponibilidade e utilização.
3. A facturação será mensal e o seu montante será determinado em função do
consumo médio mensal de água em termos definidos pela Câmara Municipal” (itálico
aditado).
Importa ainda considerar, com relevo para o problema em apreciação, o teor dos
seguintes artigos do mesmo Regulamento:
“Capítulo I
Disposições Gerais
Artigo 1º
Objecto
O presente diploma regula as relações contratuais, entre a Câmara Municipal da
Póvoa de Varzim e os utentes, no âmbito da prestação dos serviços de
fornecimento de água, drenagem de águas residuais e recolha de lixos.
Artigo 2º
Contrato de saneamento básico
1. O contrato de saneamento básico estabelece as condições que se fixam entre a
Câmara Municipal e os utentes no que respeita à prestação por parte daquela dos
serviços descritos no artigo 1º
(...)
Artigo 9º
Denúncia do contrato
1. Os utentes podem denunciar, a todo o tempo, o contrato de fornecimento.
(...)
Capítulo II
Fornecimento de Água e Drenagem de Águas Residuais
(...)
Artigo 16º
Suspensão do fornecimento a pedido do utente
1. Os utentes podem requerer a suspensão do fornecimento de água.
2. (...)
3. A suspensão nos termos deste artigo não desobriga o utente do pagamento da
tarifa de salubridade.
(...)”.
Por outro lado, importa ainda atentar nos seguintes excertos das “Normas
Tarifárias de Saneamento Básico”, aprovadas pela Câmara Municipal da Póvoa de
Varzim, em 6 de Julho de 1998 (cf. Artigo 7º, nº 1, do Regulamento), que
estabelecem o tarifário relativo aos serviços prestados, pelos serviços
municipais, no âmbito do abastecimento de água, da ligação, conservação e
tratamento de esgotos e da recolha, depósito e tratamento de lixos, em todo o
concelho da Póvoa de Varzim:
“1. O presente tarifário abrange os serviços prestados no âmbito do
abastecimento de água, da drenagem dos esgotos e da recolha dos resíduos sólidos
e aplica-se a todo o concelho da Póvoa de Varzim;
(...)
12. Da factura/recibo mensal, que terá em consideração o tarifário anexo,
constarão as quatro parcelas seguintes:
a) a parcela do consumo de água será o produto
resultante da multiplicação do consumo facturado pela tarifa de água;
b) a parcela referente à drenagem dos esgotos será o
produto resultante da multiplicação do consumo de água facturado pela tarifa de
saneamento;
c) a parcela que se reporta à recolha dos resíduos
sólidos será o produto resultante da multiplicação do consumo de água facturado
pela tarifa de recolha de lixo;
d) a taxa de salubridade será determinada pela
potência do consumo médio mensal facturado no ano civil anterior elevado a 2,4
[(consumo em m3)2,4], valor este convertido em escudos e assumirá um valor total
mínimo de 1.000$00 e um valor unitário máximo (por m3) de 300$00 (...).
13. As tarifas dos serviços específicos referentes ao abastecimento de água, à
ligação, conservação e tratamento de esgotos e à recolha, depósito e tratamento
de lixos, relacionados na tabela anexa, serão processados em documento próprio;
(...)
15. Ficam isentos do pagamento da taxa de salubridade os titulares de contadores
totalizadores, as entidades oficiais locais e as instituições sem fins
lucrativos;
16. Os consumidores com média mensal de consumos igual ou inferior a 5m3 que
comprovem a sua debilidade económica ficam sujeitos ao pagamento de metade da
taxa de salubridade;
(...)”.
2. Da leitura dos preceitos transcritos ressalta, desde logo, a circunstância
de, nas referências ao tributo em causa, ser utilizada quer a expressão taxa
quer a expressão tarifa. Não impressiona, porém, do ponto de vista da questão a
resolver, tal duplicidade de designação. Como se escreveu no Acórdão nº 76/88
(Diário da República, I Série, de 21 de Abril de 1988): “(...) a tarifa, no
campo das finanças locais [não se] delineia como uma figura tributária em
absoluto nova, ou seja, como uma espécie de tertium genus entre a taxa e o
imposto. Ela, de facto, e sob todos os aspectos, apresenta-se como uma simples
taxa, embora taxa sui generis, cuja especial configuração lhe advém apenas da
particular natureza dos serviços a que se encontra ligada (...). A tarifa, se ao
nível da lei ordinária pode ter significação própria, não releva, porém, numa
perspectiva constitucional, como categoria tributária autónoma. Nesta óptica,
ela constitui apenas uma modalidade especial de taxa, e nada mais”.
3. Não oferece dúvida que, caso venha a concluir-se estar em causa um imposto, a
norma se apresentará ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto
nos artigos 103º, nºs 2 e 3, e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição da
República Portuguesa (CRP). Na verdade, a matéria de criação de impostos e
sistema fiscal integra a reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República, estando em absoluto vedado às autarquais locais,
através dos seus órgãos, a intervenção normativa neste âmbito. Por esta razão,
já o Tribunal Constitucional se pronunciou pela inconstitucionalidade de
diversas normas criadas pelos municípios, considerando que, pese embora não
assumissem tal denominação, estavam em causa verdadeiros impostos (assim, v. g.,
Acórdãos nºs 313/92, 63/99 e 113/04, Diário da República, II Série,
respectivamente de 18 de Fevereiro de 1993, de 31 de Março de 1999 e de 31 de
Março de 2004).
Por outro lado, também é isento de dúvida que assiste às autarquias o poder de
criarem e cobrarem taxas, que constituem receitas próprias, pelos serviços por
si prestados (artigo 238º, nºs 1, 3 e 4, da CRP e 19º e 20º da Lei nº 42/98, de
6 de Agosto).
4. A extensa jurisprudência do Tribunal Constitucional que analisou já a questão
da distinção entre taxa e imposto, tem vindo a eleger como critério distintivo
entre as duas figuras a nota da sinalagmaticidade. Enquanto o imposto tem
carácter unilateral, a taxa apresenta-se sempre com a característica da
bilateralidade. Deste critério dá conta, entre vários outros, o Acórdão nº
115/02 (Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 2002):
“3.1. - O Tribunal Constitucional já por diversas vezes foi chamado a
pronunciar-se sobre o problema da distinção constitucional entre imposto e taxa.
O critério básico de diferenciação com que tem operado consiste na
unilateralidade ou bilateralidade dos tributos: enquanto o imposto tem estrutura
unilateral, a taxa caracteriza-se pelo seu carácter bilateral e sinalagmático.
Assim, a estrutura das taxas supõe a existência de uma correspectividade entre a
prestação pecuniária a pagar e a prestação de um serviço pelo Estado ou por
outra entidade pública.
Como se escreveu no acórdão nº 558/98, publicado no Diário da República, II
Série, de 11 de Novembro de 1998, que se debruçou sobre a natureza jurídica das
‘taxas de publicidade’ previstas em regulamento de taxas e licenças municipais,
a relação sinalagmática característica da taxa implica uma contrapartida do ente
público, sendo entendimento da doutrina que ‘são essencialmente três os tipos de
situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na
utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização,
pelo menos, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e,
finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas
actividades por parte dos particulares’ (assim, Teixeira Ribeiro, Lições de
Finanças Públicas, 5ª ed., Coimbra, 1995, págs. 252 e segs. e “Noção Jurídica de
Taxa” in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117º, págs. 289 e segs.;
Paulo de Pitta e Cunha, José Xavier de Basto e António Lobo Xavier, “Os
Conceitos de Taxa e Imposto A Propósito de Licenças Municipais”, in Fisco, nºs.
51/52, págs. 3 e segs.).
Mas, como então se escreveu, ‘quando em causa se encontra a terceira daquelas
situações (rememore-se, a que consiste no levantamento do obstáculo jurídico ao
exercício de determinada actividade por parte do tributado), defende a doutrina
que o encargo pela remoção – in casu, a concessão de licenciamento para a
afixação ou inscrição de publicidade – só pode configurar‑se como ‘taxa’ se com
essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semipúblico (v.
autores por último citados e Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito
Financeiro, 4ª ed., vol. 1, p. 33, que, em vez de bens semipúblicos, fala de
bens colectivos, quer públicos ou privados de uma perspectiva de provisão
pública, quer de bens colectivos impuros)’”.
Importa também ter presente que o Tribunal tem vindo a referir, embora nem
sempre em decisões unânimes, outras notas na definição do critério distintivo
procurado. Assim, para qualificação do tributo, entendeu-se que não é relevante
a designação adoptada pelo autor da norma (Acórdãos nºs 29/83 e 357/99, Diário
da República, II Série, respectivamente, de 23 de Abril de 1984 e de 2 de Março
de 2000); que, no que concerne ao sinalagma, este não tem que corresponder a uma
equivalência económica entre as prestações, mas antes apenas a uma equivalência
jurídica (para além do já referido Acórdão nº 76/88, cfr. os arestos com os nºs
205/87 – Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1987 –, e 410/00 –
Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 2000); que não é necessária
a utilização efectiva e imediata da prestação em causa, bastando a possibilidade
da sua utilização (Acórdãos nºs 357/99 e 410/00, já citados); finalmente, que
deve utilizar-se na distinção um critério funcional, que atenda aos fundamentos
e objectivos constitucionais da reserva de lei (Acórdãos nºs 1108/96, Diário da
República, II Série, de 20 de Dezembro de 1996 e 410/00, já mencionado).
5. No caso presente, uma primeira aproximação ao conteúdo da norma em causa pode
fazer-se pela negativa, partindo de uma leitura conjunta das normas transcritas
do Regulamento e do Tarifário.
Na verdade, deste ponto de vista, é possível identificar, desde logo, o que não
é a tarifa de salubridade: ela não corresponde nem ao valor do consumo de água,
nem ao da drenagem de esgotos, nem ao da recolha de resíduos sólidos (ponto 12.
das Normas Tarifárias); tão pouco corresponde ao valor de qualquer serviço
específico, identificado no ponto 13. das mesmas normas (de que são exemplo a
limpeza de fossas, a desobstrução de colectores e caixas particulares e a
desinfecção de cisternas).
Também resulta líquido, agora já face ao teor da norma, mas ainda considerando
os demais preceitos, que o tributo em causa, tendo sido criado no âmbito do
saneamento básico, não se reporta apenas ou ao fornecimento de água ou à
drenagem de esgotos, estando, contudo, relacionado com estas duas vertentes do
saneamento básico. Neste sentido, depõe a inserção sistemática da referência à
tarifa nas disposições comuns e, depois, o teor do artigo 16º, nº 3, do
Regulamento, inserido no Capítulo relativo a fornecimento de água e drenagem de
águas residuais.
6. A norma em causa refere que a tarifa de salubridade consubstancia a
comparticipação do utente nos custos de exploração e conservação dos sistemas,
correspondentes aos encargos da sua disponibilidade e utilização.
Face à delimitação efectuada, é ainda possível descortinar a que se refere a
norma em análise?
A resposta não pode deixar de ser positiva, não acompanhando, por conseguinte, a
conclusão da decisão recorrida, no sentido de que “não se pode definir qualquer
contra partida directa, a um sujeito passivo em concreto, à qual possa
corresponder uma taxa de salubridade”. De facto, importa considerar, como se
referiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 76/88, em termos que, nesta
parte, se têm por inteiramente transponíveis para a situação dos autos, que não
invalida a conclusão de que se está perante uma taxa
“(...) o facto de a parcela em causa da ‘tarifa de saneamento’ (...) se destinar
a financiar os encargos de exploração e de administração dos respectivos
serviços, acrescidos do montante necessário à reintegração do equipamento. De um
lado, porque, como atrás se notou, o decisivo, neste campo, não é o destino
financeiro da receita, mas a prestação ou não do um serviço. E, de outro lado,
porque, se tal destinação tivesse ainda aqui algum relevo, então sempre se
observaria que o custo da reintegração do equipamento é ainda custo do serviço,
como, aliás, era reconhecido expressamente pelo artigo 9º, nº 2, do Decreto-Lei
nº 98/84, e continua a sê-lo pelo artigo 12º, nº 2, da Lei nº 1/87, de 6 de
Janeiro, que praticamente o reproduz (neste sentido, v. ainda Marcelo Caetano,
Manual de Direito Administrativo, 9ª ed., t. II, p. 1060, que,
significativamente, e a este respeito, escreve: ‘Os preços das prestações dos
serviços públicos são calculados a partir do custo de produção, mas
acrescentando a este os encargos gerais e administrativos, de maneira a cobrir
os gastos de exploração e de equipamento do serviço’)” (itálico aditado).
Também no caso presente se considera que os custos de exploração e conservação
dos sistemas são ainda custos dos serviços (de saneamento básico). Aliás, a Lei
nº 42/98, que revogou a Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, mencionada na decisão
citada, continua a sustentar, de forma expressa, a doutrina que se extrai do
aresto, estabelecendo, no nº 3 do seu artigo 20º, que “As tarifas e os preços, a
fixar pelos municípios, relativos aos serviços prestados e aos bens fornecidos
pelas unidades orgânicas municipais e serviços municipalizados, não devem, em
princípio, ser inferiores aos custos directa e indirectamente suportados com o
fornecimento dos bens e com a prestação dos serviços” (itálico aditado).
Acresce que a leitura do Decreto-Lei nº 207/94, de 6 de Agosto, que aprova o
regime de concepção, instalação e exploração dos sistemas públicos e prediais de
distribuição de água e drenagem de águas residuais, revela esses outros
encargos, com evidente expressão económica, que não se reconduzem ao mero custo
do fornecimento da água. Estabelece, designadamente, que cabe à entidade gestora
dos sistemas públicos, nomeadamente aos municípios (artigo 4º, nº 2),
providenciar pela elaboração dos estudos e projectos dos sistemas públicos;
promover o estabelecimento e manter em bom estado de funcionamento e conservação
os sistemas públicos de distribuição de água e de drenagem e desembaraço final
de águas residuais e de lamas; submeter os componentes dos sistemas de
distribuição de água e de drenagem de águas residuais, antes de entrarem em
serviço, a ensaios que assegurem a perfeição do trabalho executado; garantir que
a água distribuída para consumo doméstico, em qualquer momento, possua as
características que a definam como água potável e, ainda, promover a instalação,
substituição ou renovação dos ramais de ligação (artigo 4º, nº 3, alíneas b),
c), d), e) e h)). Tais encargos, sendo necessários para a prestação dos serviços
em causa, para a garantia da sua continuidade e qualidade, são diversos do mero
valor, v.g., da água fornecida. Daí que, no Regulamento em apreço, apenas a
denúncia do contrato de saneamento, não a suspensão do fornecimento de água,
determine a cessação do seu pagamento (artigo 16º).
Em reforço do carácter sinalagmático do tributo em causa, importa considerar,
também, a respectiva fórmula de cálculo, por referência ao consumo de água. Na
verdade, existe “afectação das condições de fornecimento de água (o seu
aprovisionamento e tratamento), através da medida da solicitação do seu
fornecimento (...). É assim claro que quem mais consome mais exige da empresa
que fornece um bem relativamente escasso e dispendioso, na perspectiva do
tratamento e distribuição de tal bem (...)” (Acórdão nº 1108/96, já referido).
Finalmente, diga-se, ainda, acompanhando o Acórdão do Tribunal Constitucional nº
357/99 (já citado), que a circunstância de a exploração e conservação dos
sistemas poderem gerar utilidade para a generalidade da população não contende
com o facto de elas serem efectuadas no interesse do onerado, que delas retira,
ou pode retirar, uma utilidade própria (o serviço prestado é, nesta dimensão,
específico e divisível).
Reconhecido o carácter sinalagmático do tributo criado pela norma em apreciação
nos presentes autos de recurso, resta, pois, afirmar, como bem sustenta o
Ministério Público, que a mesma não viola a Constituição.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 7º do Regulamento
de Saneamento Básico aprovado pela Assembleia Municipal da Póvoa de Varzim, em
27 de Junho de 1996, com a redacção introduzida em 1 de Março de 2001; em
consequência,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão
recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei em sentido divergente pois, em meu entender, a decisão recorrida deveria
ser confirmada quanto à questão de inconstitucionalidade. Na verdade, se o
elemento caracterizador da taxa reside na sua sinalagmaticidade, afigura-se-me
essencial que a contraprestação devida ocorra – e se manifeste – em cada
situação concreta, ao proporcionar ao particular pagador a utilidade económica
especificamente equivalente. Ora, quando a utilidade proporcionada se dilui em
tarefas que cabem nas competências administrativas da pessoa pública e
representa um benefício genericamente atribuído, a correspectividade desaparece.
Aliás, no presente caso é até muito difícil aferir da proporcionalidade da taxa,
pois a falta de concretização da utilidade proporcionada prejudica de forma
irreversível a possibilidade da sua avaliação.
Carlos Pamplona de Oliveira