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Processo n.º 1000/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. O arguido A., notificado do despacho do Juiz de
Instrução Criminal de Lisboa que, após declarar aberta a instrução por ele
requerida, indeferiu, ao abrigo do disposto no artigo 291.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal (CPP), por entender que “a prova já produzida nos autos em
inquérito se mostra suficiente para que seja proferida a decisão instrutória”,
todas as diligências probatórias por ele requisitadas, veio arguir a nulidade
desse despacho, nos seguintes termos:
“1. O despacho em crise (que indeferiu, sem mais, todas as
diligências probatórias requeridas pelo arguido) é nulo por falta de
fundamentação, uma vez que o Tribunal não explicou, fundamentando de direito e
de facto, em que medida é que entendeu que não há necessidade de se proceder à
realização das diligências de prova, explicando uma por uma porque é que
entendeu daquela maneira, nem em que medida é que a prova produzida no inquérito
se mostra suficiente para que seja proferida a decisão instrutória. O Tribunal,
ao indeferir sem qualquer fundamentação, com a simples justificação que
apresentou, violou a lei e os mais elementares princípios constitucionais e de
direito processual penal.
2. O Tribunal, ao indeferir sem qualquer fundamentação, com a
simples justificação que apresentou, interpretou o artigo 291.º, n.ºs 1 e 2, do
CPP em violação do princípio in dubio pro reo, enquanto corolário do princípio
da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, n.° 2, da Constituição da
República Portuguesa). De facto, ao alegar que a prova produzida tem já
elementos para proferir, sem mais, uma decisão instrutória, que pelos vistos vai
ser cópia integral da acusação, independentemente do depoimento das testemunhas
arroladas pelo arguido, no seu requerimento de abertura da instrução. [sic]
3. Por outro lado, ao não fundamentar de direito e de facto a sua posição no
sentido de indeferir as diligências probatórias, requeridas pelo arguido, o
Tribunal interpretou o artigo 291.º do CPP em violação dos artigos 32.º e 205.º
da CRP.
4. Ao não permitir que o arguido se defenda, oferecendo provas e requerendo
diligências, como as requeridas no seu requerimento de abertura da instrução, o
Tribunal interpretou os artigos 61.º, n.º 1, alínea f), e 291.º, n.º 2, em
violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, incorrendo igualmente na nulidade
prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), o que vai aqui expressamente arguido
para todos os devidos e legais efeitos.
Termos em que, fazendo‑se uma correcta interpretação das normas legais
invocadas e a melhor interpretação dos elementos dos autos, deve declarar‑se a
invalidade e a inconstitucionalidade (interpretação de normas da lei ordinária,
em desconformidade com o Diploma Fundamental) da decisão que indeferiu a
realização das diligências probatórias requeridas pelo arguido no seu
requerimento de abertura da instrução, ordenando‑se a realização de todas as
diligências nele requeridas.”
Essa arguição de nulidade foi indeferida com a seguinte
fundamentação:
“Em nosso entender não assiste razão ao arguido, porquanto o
despacho se encontra suficientemente fundamentado, em termos de, da sua leitura,
serem perceptíveis as razões que nos levaram a indeferir as diligências
requeridas pelo arguido.
E haverá que realçar o facto de um despacho ser curto não ser
sinónimo de falta de fundamentação.
Por outro lado, o arguido vem também arguir a nulidade da
insuficiência da instrução, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do
CPP, por entender que, ao ter sido proferido o referido despacho, foram
preteridas diligências de prova que comprometem a presente instrução.
Conforme estabelece o artigo 289.º do Código de Processo Penal, a
instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução que o juiz entenda
levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório.
O juiz não está, pois, obrigado a realizar todas as diligências
requeridas, mas apenas «as necessárias à comprovação judicial da decisão de
acusar ou de arquivar o inquérito» (in Para uma reforma global do processo
penal, Figueiredo Dias, pág.37).
Assim, só se verifica a nulidade da insuficiência da instrução
quando seja omitido um acto que a lei prescreve como obrigatório; a omissão de
diligências não impostas por lei não determina a nulidade da instrução por
insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de instrução – salvo
o debate instrutório e o interrogatório do arguido quando por ele solicitado –
é da competência exclusiva do Juiz de instrução.
Mais uma vez se chama a atenção para a natureza da fase da
instrução, na qual não se justifica a realização de diligências supérfluas e que
em nada acrescentariam em termos de mais valia probatória, quando, como é o
caso, se considerou, em relação ao arguido A., que os autos continham os
elementos de prova necessários à prolação da decisão instrutória.
Nestes termos, indeferem-se as alegadas nulidades.”
Notificado deste despacho, dele intentou o referido
arguido interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo
70.°, n° 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do
Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e
alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC),
consignando pretender:
– “(...) ver‑se apreciada a inconstitucionalidade da
norma do artigo 291.º, n.ºs 1 e 2, do CPP e do princípio in dubio pro reo,
enquanto corolário do princípio da presunção de inocência do arguido. Tais
normas e princípios, quando interpretados no sentido de dispensarem o Tribunal
de uma fundamentação de direito e de facto, sempre que são indeferidas
diligências de prova em instrução (diferentes das realizadas no inquérito),
sempre que a defesa alegou que se reputam de imprescindíveis aos interesses do
arguido, implicam a violação dos artigos 32.º e 205.º da Constituição da
República Portuguesa”; e
– “(...) ver‑se apreciada a inconstitucionalidade da
norma dos artigos 61.º, n.º 1 alínea f), e 291.º, n.º 2 [do CPP]. Tais normas
quando interpretadas no sentido de não permitirem que o arguido se defenda em
processo penal oferecendo provas e requerendo diligências (diferentes das
realizadas no inquérito), que a defesa alegou imprescindíveis aos interesses do
arguido, implicam a violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa.”
O recurso para o Tribunal Constitucional não foi
admitido por despacho do Juiz de Instrução Criminal de Lisboa, com a seguinte
argumentação:
“Estabelece o artigo 70.°, n.° 2, da Lei n.° 286/82 que: «Os recursos previstos
nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam
recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos
os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência».
Ora, do despacho que indeferiu a nulidade suscitada pelo arguido era admissível
recurso para o Tribunal da Relação.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, ao abrigo do citado artigo 70.º,
n.º 2, e ainda do artigo 76.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 28/82, decido indeferir
o recurso interposto pelo arguido.”
É contra este despacho que vem deduzida a presente
reclamação, aduzindo o reclamante:
“O ora reclamante requereu, no seu requerimento de abertura da instrução, a
realização de uma série de diligências de prova.
Sem fundamentar, o Tribunal recorrido indeferiu a realização de todas as
diligências. Inconformado o arguido, ora reclamante, arguiu a nulidade da
decisão que indeferiu a realização das diligências instrutórias.
Do despacho que indeferiu a arguição de nulidades pelo reclamante, recorreu
este directamente para o Tribunal Constitucional, tendo cumprido todos os
requisitos legais.
Sem mais, o Tribunal recorrido indeferiu o recurso interposto. É desde despacho
que aqui se reclama.
Discorda o ora reclamante do despacho que indeferiu o recurso interposto para o
Tribunal Constitucional.
De acordo com o artigo 291.º do CPP, o «Juiz indefere, por despacho irrecorrível
...». Ora, face a este preceito, da decisão que indeferir os actos requeridos,
não cabem recursos ordinários.
De acordo com o artigo 70.º, n.º 2, da LTC, «Os recursos previstos nas alíneas
b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso
ordinário».
De modo diferente entendeu o TIC de Lisboa, ao entender que era admissível
recurso para o Tribunal da Relação, quando o artigo 291.º do CPP refere
expressamente que o despacho é irrecorrível (leia‑se insusceptível de recursos
ordinários).
Termos em que deve a presente reclamação ser admitida, revogando‑se a decisão
recorrida, que deverá ser substituída por outra que admita o recurso interposto
para o Tribunal Constitucional.”
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público
emitiu o seguinte parecer:
“Afigura‑se que a reclamação deduzida assenta num equívoco do
reclamante.
Na verdade, o artigo 291.º, n.º 1, do CPP prescreve a
irrecorribilidade do despacho judicial que indefere as diligências requeridas na
fase de instrução: sucede, porém, que a estratégia processual seguida pelo
arguido consistiu – não em impugnar directamente tal despacho – mas em arguir a
nulidade, por invocada falta de fundamentação, sendo efectivamente sustentável,
como refere a decisão reclamada, que de tal decisão, proferida sobre as
nulidades invocadas, caiba recurso para a Relação (cf. o «lugar paralelo», em
sede de encerramento da instrução, dos artigos 308.º/310.º, em que é
inquestionável que – não havendo recurso do despacho de pronúncia – há recurso
da decisão que indeferir arguição da nulidade, prevista no artigo 309.º do
CPP).
Neste circunstancialismo, incumbia efectivamente ao recorrente o
ónus de esgotamento de tal recurso ordinário, interpondo‑o e deduzindo,
porventura, reclamação para o Presidente da Relação do despacho que
eventualmente não admitir o recurso, escudando‑se numa leitura ampliativa do
âmbito da irrecorribilidade prevista na segunda parte do n.º 1 do artigo 291.º
do CPP.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A questão central suscitada pela presente reclamação
consiste em apurar se do despacho que indeferiu arguição de nulidade (por falta
de fundamentação) do despacho do juiz de instrução criminal que indeferiu a
realização de diligências de prova requeridas pelo arguido no seu requerimento
de abertura de instrução cabe recurso ordinário, cuja não interposição
inviabiliza a imediata interposição de recurso para o Tribunal Constitucional ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, por força do disposto no n.º
2 deste preceito.
O reclamante assenta a tese da irrecorribilidade na
disposição do artigo 291.º, n.º 1, do CPP, na parte em que refere que “o juiz
indefere, por despacho irrecorrível, os actos requeridos que não interessarem à
instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo (...)”.
Acontece, porém, que, como se salienta no parecer do
Ministério Público, objecto do recurso que se intentou interpor para o Tribunal
Constitucional não é o despacho que indeferiu as diligências de prova, mas sim o
despacho que indeferiu a arguição de nulidade do anterior despacho, e não é
forçoso que a irrecorribilidade do primeiro se estenda ao segundo, como o
demonstraria o “lugar paralelo” da irrecorribilidade da decisão instrutória que
pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público,
a par da recorribilidade do despacho que indefere a arguição de nulidade da
decisão instrutória por factos que pretensamente constituam alteração
substancial dos descritos nas acusações do Ministério ou do assistente ou no
requerimento para abertura de instrução (artigos 310.º, n.ºs 1 e 2, e 309.º do
CPP). A este respeito, recorde‑se que o Supremo Tribunal de Justiça fixou
sucessivamente jurisprudência no sentido de que “A decisão instrutória que
pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério
Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades
arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou
incidentais” (“Assento” n.º 6/2000), e de que “Sobe imediatamente o recurso da
parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do
inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo
que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do
Ministério Público” (Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2004).
Recorde‑se que, em processo penal, a regra é a
recorribilidade “dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja
irrecorribilidade não estiver prevista na lei” (artigo 399.º do CPP).
Nos presentes autos, o Juiz de Instrução Criminal
expressamente assumiu que, em sua opinião, cabia recurso ordinário do despacho
de que foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Também o
Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, nos seus despachos de 27 de
Novembro de 2003 (processo n.º 8941/2003‑9) e de 2 de Novembro de 2004 (processo
n.º 5996/2004‑6), com texto integral disponível em www.dgsi.pt/jtrl, manifestou
o entendimento de que cabe recurso ordinário quer do despacho que indeferiu
arguição de irregularidades do despacho que indeferiu as diligências de
instrução requeridas e designou data para o debate instrutório, quer do despacho
que indeferiu a arguição de nulidade por insuficiência da instrução, embora
confirmasse o entendimento de que tais recursos só sobem, nos termos do n.º 3 do
artigo 407.º do CPP, com o recurso interposto da decisão que venha a pôr termo à
causa.
Surgindo, assim, como mais correcto o entendimento de
que do despacho de que se interpôs recurso para o Tribunal Constitucional cabia
recurso ordinário, a presente reclamação improcede.
Se, eventualmente, no Tribunal da Relação de Lisboa vier
a vingar entendimento diverso do sustentado pelo Juiz a quo e pelo Presidente
daquele Tribunal, daí não advirá qualquer preclusão do direito do reclamante de
acesso à justiça constitucional, pois então o prazo para recorrer para o
Tribunal Constitucional se contará a partir do momento em que se tornar
definitiva a decisão de não admissão do recurso ordinário (n.º 2 do artigo 75.º
da LTC).
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação, confirmando o despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2005.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos