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Procº nº 395/97.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
Nos presentes autos vindos do Tribunal da Relação de Évora e nos quais figuram, como recorrente, A. e, como recorrido, o Ministério Público, concordando-se, no essencial, com a exposição neles formulada de fls. 42 a 48 pelo relator, exposição essa que aqui se dá por integralmente reproduzida e à qual deu total anuência o recorrido, não se tendo sobre ela pronunciado o recorrente, decide-se não tomar conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em unidades de conta.
Lisboa, 30 de Setembro de 1997 Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa
EXPOSIÇÃO PRÉVIA Procº nº 395/97.
2ª Secção.
1. Por despacho exarado em 15 de Maio de 1997 no Tribunal de Círculo de Portimão em autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo e nos quais figura como arguido A., foi, por entre o mais, determinado que se mantivesse a prisão preventiva em que este se encontrava, o que motivou que o mesmo de tal despacho interpusesse recurso para o Tribunal da Relação de Évora.
Na motivação que então apresentou o mencionado arguido rematou-a com as seguintes conclusões:-
'1. O princípio da liberdade é uma das traves mestras do ordenamento constitucional, pelo que a prisão preventiva tem natureza excepcional e subsidiária;.
2. A prisão preventiva não se mantém sempre que possa ser substituída por caução ou qualquer medida mais favorável na Lei (art.28º, nº 2 C.R.P.);
3. Os pressupostos de aplicação dessa medida devem verificar-se durante todo o período da sua duração e ser sujeitos a constante e escrupuloso exame da sua verificação, ao longo do processo, já que aquela medida é excepcional;
4. No caso concreto, a decisão recorrida não logra alcançar, face aos respectivos pressupostos legais, justificação para a manutenção da prisão preventiva do recorrente, nomeadamente por falta da indispensável fundamentação em factos que demonstrem a existência dos requisitos gerais de aplicação de qualquer medida de coacção (art. 204/CPP) e estabeleçam, como conclusão, face aos princípios da adequação e da proporcionalidade, a indispensabilidade da medida prisão preventiva, com exclusão de qualquer outra medida de coacção;
5. E também não se verificam os requisitos processuais de que a lei faz depender a aplicação da mais grave medida de coacção, que é a prisão preventiva.
6. Deixou de ser invocável, na nova fase de julgamento, o pretenso perigo para aquisição e conservação da prova e não existe, nem se invoca, qualquer pretenso perigo de continuação da actividade criminosa;
7. Além disso, os fundamentos para a prisão preventiva não podem radicar num processo de 'intenções' ou de 'opiniões', mas - como o impõe a garantia do direito dos cidadãos e a sua protecção contra a incerteza e o arbítrio - num processo assente em factos em relação aos quais tenha o arguido oportunidade de defender-se.
8. Ora, a decisão recorrida, que não invoca quaisquer factos concretos, padecendo, assim, de uma completa falta de fundamento de facto.
9. O despacho recorrido manteve, assim, a medida de prisão preventiva fora das condições em que ela é legalmente permitida e sem curar sequer de saber se outras medidas mais favoráveis eram adequadas ou suficientes, com o que violou os art.s 27º e 28º C.R.P.;
10. O despacho recorrido - contra o disposto no art. 97º C.P.P. - não enuncia sequer, repete-se, os fundamentos de facto de que dependeria a indispensabilidade da medida de prisão preventiva;
11. Mas, em qualquer hipótese, as medidas de coacção previstas nos artigos 197º,
198º e 200º C.P.P., todas elas susceptíveis de aplicação cumulativa nos termos do art. 196º, nº 1 C.P.P., sempre seriam adequadas para assegurar o cumprimento das obrigações processuais do recorrente;
12. Assim, e ao manter a prisão preventiva do recorrente, a decisão recorrida violou as disposições legais acima citadas e as dos art.s 209º, 188º, 189º e
200º C.P.P., pelo que deverá ser revogada e admitir-se que o recorrente aguarde em liberdade provisória os termos do processo, como é de
JUSTIÇA' .
Por acórdão de 22 de Julho de 1997, negou o Tribunal da Relação de Évora provimento ao recurso.
Para tanto, usou-se naquele aresto a seguinte fundamentação:
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2.1. Não é fácil compreender o recurso do arguido, dado o seu discurso vago, de afirmação de princípios, que até nem são desconhecidos nem esquecidos pelos tribunais.
Assim, diz o arguido que a liberdade provisória é uma das traves mestras do ordenamento jurídico-constitucional, pelo que a prisão preventiva tem natureza excepcional e subsidiária, não se mantendo sempre que possa ser substituída por caução ou por qualquer medida mais favorável prevista na lei (art. 28º da CRP).
Naturalmente que não merece qualquer discussão esta asserção, tanto mais que não está em causa a filosofia da prisão preventiva, mas apenas a sua manutenção, num caso concreto e a quando do despacho que designou dia para julgamento.
É certo, como também refere o recorrente, que em todos os momentos em que se mantém a medida, tem a mesma que ter justificação. De facto e de direito, naturalmente.
Mas também o é, como diz o Ministério Público, que qualquer medida só pode ser objecto de revogação ou alteração dentro dos pressupostos do art. 212º do CPP.
Ou seja, quando se descobrir que foi aplicada fora das condições legais ou quando deixarem de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
Nada disto acontece, pois nem sequer o recorrente discute a legalidade inicial da aplicação da prisão preventiva nem tão pouco aponta qualquer facto que possa fazer perigar qualquer das condições da sua aplicação.
Aliás, todo o recurso, como se disse atrás, vago e impreciso, está orientado na ideia de que só interessa a liberdade do recorrente, esquecendo que também está em jogo a situação das vítimas do delito de que é suspeito, o que naturalmente se não aceita.
Nada há, pois que apontar de ilegal ou irregular ao despacho recorrido, mesmo pensando-se no seu carácter sucinto, como se impunha na circunstância em que foi proferido.
Não nos esquecemos que devem ser sujeitos a constante e escrupuloso exame da sua verificação, ao longo do processo, os despachos que ordenaram a prisão preventiva, já que aquela medida é excepcional, como refere o recorrente, mas também não podemos esquecer que há momentos próprios e determinados para o efeito e que não há que permanentemente questionar tudo e todos.
Embora seja moda actual o colocar tudo em crise e a todo o momento, na segurança que se exige às situações jurídicas tal não pode acontecer, pelo menos sem regras de processo, regras que não foram violadas, apesar do recorrente insistir em que o foram.
Nomeadamente não foram desrespeitadas as regras dos arts. 27º e 28º da CRP ou os arts. 209º, 188º, 189º e 200º do CPP, pelo que o despacho recorrido está correcto e deve manter-se.
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Notificado do acórdão de que substancial parte acima se encontra transcrita, veio o recorrente, do mesmo e fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo no requerimento corporizador da sua vontade de recorrer que :
'2. As normas jurídicas cuja declaração de inconstitucionalidade se requer são os artigos 209º, 212º e 213º do Código de Processo Penal, quando interpretados, como o foram no acórdão recorrido, em termos de ser permitido fundar a aplicação e a manutenção da prisão preventiva na 'situação das vítimas do delito de que (o arguido) é suspeito' e ainda de os despachos que ordenam e mantenham a prisão preventiva poderem ter carácter sucinto e só em 'momentos próprios e determinados para o efeito' poderem ser questionados.
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4. Ao recorrente não foi possível prevenir as questões em causa, porque não supunha que o tribunal recorrido aplicasse as normas citadas num sentido e com um efeito materialmente inconstitucional.......'
O recurso foi admitido por despacho de 7 de Agosto de
1997.
2. Todavia, porque, ex vi do nº 3 do artº 76º da Lei nº
28/82, esse mesmo despacho não vincula este Tribunal, e porque se entende que o recurso não deveria ter sido recebido, formula-se, de harmonia com o nº 1 do artº 78º-A do mesmo diploma, a vertente exposição, na qual se propugna por se não dever tomar conhecimento do aludido recurso.
Na verdade, pretende o ora recorrente, com a presente forma de impugnação, por um lado, que este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa julgue (e não, como ele refere, «declare») incompatíveis com a Lei Fundamental as normas ínsitas nos artigos 209º, 212º e
213º do diploma adjectivo criminal, interpretadas que sejam de molde a, nas situações de aplicação e manutenção da prisão preventiva, essa medida de coacção se fundar na situação das vítimas do delito cuja autoria é imputada ao arguido; e, por outro, pretende igualmente que, de idêntico modo, sejam julgadas as ditas normas numa interpretação segundo a qual delas se possa retirar a permissão de os despachos de determinação e manutenção da prisão preventiva serem sucintos, além de unicamente poderem ser questionados em momentos próprios e determinados,
Segundo o comando constante da alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, aliás em consonância com o que se estipula na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição, o recurso nela estribado impõe, por entre o mais, que quem dele se queira posteriormente servir, tenha de, previamente à prolação da decisão judicial intentada impugnar, suscitar a incompatibilidade da norma ou das normas que serão objecto desse recurso. E impõe também que a decisão objecto de recurso tenha aplicado, como razão do decidido, a ou as normas cuja suspeita de inconstitucionalidade foi levantada.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem, desde sempre, aceite que se pode inscrever no âmbito daquele recurso determinadas interpretações normativas, motivo pelo qual o mesmo não se circunscreverá tão só
às normas decorrentes teor literal dos preceitos legais.
Ponto é, contudo, que, antes do proferimento da decisão, o recorrente tenha, de modo claro e preciso, enunciado a interpretação normativa que entende ser feridente da Constituição e, como é claro, que a decisão a impugnar se tenha, como ratio jurídica, fundado nessa mesma interpretação.
Perante esta parametrização, logo num primeiro momento haverá que analisar se, de modo efectivo, o aresto pretendido pôr sob censura, em alguma parte do seu conteúdo discursivo e jurídico, fez uma interpretação, com a inerente aplicação ao caso, das normas constantes dos artigos 209º, 212º e
213º do vigente Código de Processo Penal , por forma a que dela se extraísse de que a aplicação e manutenção da medida de coacção de prisão preventiva era possível somente ponderando o interesse da ou das vítimas do ou dos delitos imputados ao arguido.
Por maiores esforços que se façam não se lobriga uma tal interpretação.
Efectivamente, a passagem - acima transcrita - do acórdão recorrido em que se faz alusão a um não esquecimento da situação das vítimas, mais não representa do que um mero discorrer, quiçá tentando dar a mostrar um posicionamento filosófico-criminal ou sociológico-criminal, que poderá ser contraposto àqueloutro posicionamento que, pelos subscritores desse aresto, foi entendido como sendo perfilhado pelo recorrente e segundo o qual para este no processo adjectivo criminal (e possivelmente, adentro deste, o instituto da prisão preventiva) só relevaria a liberdade dos arguidos.
Em nenhum passo do acórdão sub specie foram alguma vez as normas que se pretende agora que este Tribunal analise, directa ou indirectamente, expressa ou implicitamente, interpretadas e aplicadas num sentido de onde, minimamente que seja, se retire que o fundamento da aplicação ou da manutenção da prisão preventiva há-de repousar, ou, ao menos, há-de repousar primordialmente, na situação das vítimas do delito imputado ao arguido. Fazer essa leitura é, no mínimo, efectuar algo transviado do contexto discursivo do acórdão, assacando-lhe algo que o mesmo não contém nem demonstra, ainda que nos situemos num domínio - de todo em todo virtual - de tentativa de descortinar
«intenções» por banda de quem escreveu a decisão jurisdicional.
2.1. No tocante a uma interpretação das assinaladas normas e que o recorrente assaca ao aresto em causa como conduzindo a que seja possível a prolação de despachos de manutenção (só esta situação estava em causa e não, como é óbvio, aqueloutra de aplicação) da prisão preventiva de modo sucinto, independentemente de se apreciar aqui se tal aresto a uma tal interpretação procedeu, é necessário não olvidar que o despacho de manutenção então sob censura perante a Relação de Évora - a ser sucinto (questão sobre a qual se não deverá este Tribunal pronunciar, por a tanto escaparem os seus poderes cognitivos) - teria de ser atacado face a essa sua característica e, do mesmo passo, haveria que questionar a compatibilidade constitucional de qualquer interpretação de determinado preceito infra-constitucional de onde resultasse a admissibilidade do sintetismo dessa sorte de decisões.
Ora, não teve o recorrente essa preocupação, pelo que não cumpriu aqui o ónus imposto pela mencionada alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
E nem se diga que, suposto que o acórdão sub iudicio assim interpretou e aplicou os artigos 209º, 212º e 213º do Código de Processo Penal, tais interpretação e aplicação foram acentuadamente inesperadas e insólitas, sabido como é que inúmeros são os despachos, proferidos aquando do momento de designação de dia para a realização da audiência de julgamento, e que, ao manterem a situação preventiva de um arguido, se mostram de modo muito similar ao do então sob recurso. Não havia, desta arte, nenhuma situação insólita ou inesperada, no que concerne a uma interpretação normativa - suposto, repete-se, que tivesse ocorrido - capaz de ter «colhido de surpresa» o ora recorrente e que porventura justificasse uma dispensa, in casu, do ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade,.
2.3. Resta a interpretação dos referidos artigos, aventada pelo impugnante como tendo sido levada a efeito pelo acórdão intentado recorrer, e de harmonia com a qual os despachos de manutenção da situação de prisão preventiva só poderão ser questionados em momentos próprios e determinados para o efeito.
Talqualmente sucede com a imputação segundo a qual os falados artigos teriam sido interpretados e aplicados por forma a deles resultar que no instituto da prisão preventiva só haveria, ou haveria primacialmente, que atender à situação das vítimas dos delitos assacados ao arguido, também no particular de que agora curamos se não vislumbra que ocorresse a interpretação e aplicação que o recorrente pretende ter ocorrido.
Cumpre, por isso, recordar aqui o que foi dito no acórdão tirado na Relação de Évora e que acima se transcreveu. Depois de vincar que aquele Tribunal de 2ª Instância não detectava nenhuma ilegalidade ou irregularidade ao despacho sob impugnação, e de enfaticamente sublinhar que os despachos que ordenam a prisão preventiva devem sempre ser sujeitos a um constante e escrupuloso exame no decorrer de todo o processo, atenta a excepcionalidade dessa medida de coacção, fez-se a afirmação de que esse exame haveria que ocorrer em momentos próprios e determinados,
Essa afirmação, de modo claro, é algo de límpido e inquestionável, pois decorre, desde logo, do nº 1 do artº 213º do Código de Processo Penal, não se divisando, e novamente por maiores esforços que se façam, que, com essas asserções, a Relação de Évora tivesse querido dizer que os despachos que ordenam ou mantêm a prisão preventiva só pudessem ser questionados em momentos próprios e determinados.
Aliás, note-se que, se assim não fosse - ou seja, se porventura aquele Tribunal de 2ª Instância, no aresto em crise, tivesse feito uma interpretação normativa tal como aquela que o recorrente lhe imputa (e já se viu que isso não sucedeu) - então essa interpretação, seguramente, haveria de ser dirigida, não aos artigos 209º, 212º e 213º , mas sim, e como se torna nítido, ao artº 219º, este como aqueles do Código de Processo Penal, sendo que este último preceito não faz parte do objecto do recurso.
De onde, quanto ao ponto de que agora se trata, se dever concluir pela inexistência de um dos pressupostos do recurso, justamente aquele que se consubstancia em não ter havido, por banda da decisão impugnada, aplicação de norma numa interpretação que se pretende seja, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, apreciada por este Tribunal.
Cumpra-se a parte final do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº
28/82.
Lisboa, 1 de Setembro de 1997.