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Processo n.º 199/2005
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como
recorridos o Ministério Público e B., o Supremo Tribunal de Justiça por acórdão
de 17 de Fevereiro de 2005, negou provimento ao recurso do acórdão do Tribunal
da Relação de Coimbra que havia, por seu turno, negado provimento ao recurso do
acórdão do Tribunal Colectivo de Ílhavo que condenou o arguido na pena única de
três anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma
tentada, de um crime de sequestro e de um crime de detenção de arma ilegal.
O arguido concluiu as alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do
seguinte modo:
A. O presente recurso é admissível, uma vez que os Acórdãos recorrido são
susceptíveis de recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça.
B. As normas das alíneas e) e f) do artigo 400º, n.º 1 do Código de Processo
Penal são inconstitucionais por violarem o direito ao recurso consagrado pelo
artigo 32° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, se permitirem e forem
aplicadas em qualquer das seguintes interpretação:
a. na interpretação segundo a qual, perante uma situação de “dupla conforme”,
em caso de concurso de infracções apenas devem ser atendidas, para aferir da
admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, as penas
abstractamente aplicáveis aos singulares crimes em concurso e não a pena
abstracta correspondente ao cúmulo jurídico; e
b. na interpretação segundo a qual, em caso de recurso interposto apenas pelo
arguido, a pena aplicável, para esses efeitos, corresponde à pena concretamente
aplicada.
C. O douto Acórdão que recaiu sobre os requerimentos formulados pelo Recorrente
após o douto Acórdão que manteve a decisão do Tribunal de Circulo de Aveiro
padece de nulidade por omissão de pronúncia, sobre os esclarecimentos e
correcções pedidos e sobre a requerida admissão de recurso para o Tribunal
Constitucional.
D. O douto Acórdão que, negando provimento ao recurso da decisão final da
primeira Instância, confirmou integralmente tal decisão e condenou o Recorrente
em 10 UCs de custas, contém vários erros e lapsos manifestos e diversas
obscuridades ou ambiguidades que não permitem a sua cabal compreensão pelos
destinatários - desde logo, pelo Recorrente -, fazendo‑o padecer da nulidade
prevista nas alíneas a) - por referência ao n° 2 do artigo 374° - e c) do artigo
379° do Código de Processo Penal, implicando os vícios de que enferma
insuficiência ou, mesmo, parcial falta de fundamentação, e omissão de
pronúncia.
E. Nunca foi pretendido pelo Recorrente que a acta contivesse o resumo da
reprodução áudio magnética, mas sim a sua transcrição integral.
F. O Recorrente fica sem saber se a douta opinião dos Venerandos Senhores
Juízes Desembargadores a quo acerca do nosso processo penal vigente é a de que
ele informa, neste particular, de nítidas características medievais e
ditatoriais, dúvida que, persistindo, naturalmente o prejudica também na escolha
dos termos do recurso ou recursos a interpor do douto Acórdão em causa.
G. Quanto à decisão contida, referida, aflorada nos parágrafos 2° e 3° de
página 22 do douto Acórdão, fica o Recorrente sem se perceber qual a decisão de
que ali se tratar, se a mesma estará completa, se faltará alguma frase ou,
talvez mesmo, alguma pagina, que o esclareça.
H. O Recorrente também não consegue entender a que alegações os Venerandos
Senhores Juízes Desembargadores se referem.
I. O afirmado a páginas 22, parágrafo 5°, e a páginas 33, parágrafos 3° e 4°,
do Acórdão recorrido parece significar que o recurso foi julgado improcedente,
quanto ao ali referido, porque na conclusão K da sua motivação de recurso o
Recorrente não teria cumprido os normativos impostos pelo art. 412°, nºs 3 e 4
do Código de Processo Penal e porque a conclusão GG seria deficiente, porque
estaria insuficientemente fundamentada a ilação, ali extraída pelo Recorrente,
de que, pela interpretação dos artigos 50° e 70° do Código Penal seguida no
douto Acórdão da primeira instância, se mostrava violado o princípio da
presunção de inocência.
J. Assim sendo, e tendo o Recurso sido julgado improcedente por essas razões
(ou, pelo menos, nessas partes, também por essas razões) sem precedência de
convite ao Recorrente para aperfeiçoar o seu Recurso ou as Conclusões da
respectiva Motivação, o douto Acórdão mostra-se viciado de nulidade, violando o
disposto no artigo 690° do Código de Processo Civil, e também a que decorre dos
artigos 414°, n° 2, e 420° do Código de Processo Penal (na interpretação
conforme à Constituição da República Portuguesa que deles deve ser feita),
normativos aqui aplicáveis nos termos do artigo 4° do Código de Processo Penal,
por integração analógica e por maioria de razão.
K. As normas do artigo 690° do Código de Processo Civil e dos artigos 414°, n°
2, e 420° do Código de Processo Penal, são aplicáveis não apenas aos casos de
não admissão ou de rejeição de recursos, mas também aos casos de julgamento do
recurso, impedindo que um recurso possa ser julgado improcedente por falta,
deficiência, obscuridade ou complexidade das respectivas conclusões ou por
omissão nelas de qualquer outro requisito legal, sem prévio convite ao
recorrente para suprir tal falta ou tais vícios.
L. O regime legal do julgamento dos recursos em processo penal, maxime o que
resulta das normas conjugadas dos artigos 412°, 414°, 417°, n.º 3 e n.º 4, 418°,
419°, 420°, 421°, 423°, 424° e 425º do Código de Processo Penal e, bem assim,
todas e cada uma dessas mesmas normas, sofreriam de inconstitucionalidade
manifesta, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais,
consagrado no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, e do direito
ao recurso, consagrado no respectivo artigo 32° n.º 1, na acepção de que, face à
nossa lei processual, um recurso penal pode ser julgado improcedente por falta,
deficiência ou complexidade das respectivas conclusões ou por omissão de
qualquer outro requisito legal, sem prévio convite ao recorrente para suprir tal
falta ou reparar tais vícios.
M. As declarações prestadas oralmente em audiência não poderiam deixar de estar
documentadas na acta de audiência de discussão e julgamento, porque o tribunal
dispôs efectivamente dos meios técnicos a tanto necessários e porque as mesmas
foram efectivamente registadas em suporte áudio magnético.
N. Tal falta prejudica seriamente a defesa do ora Recorrente, nomeadamente
prejudicando o seu direito ao recurso, e constitui nulidade da acta, por
violação do disposto nos artigos 363° e 364° n.ºs 1 e 3 e dos artigos 99° n.º 3
e 362° do Código de Processo Penal, e ainda por consubstanciar caso de falsidade
da mesma, atento o valor que à acta é conferido pelo artigo 169° do mesmo
diploma legal.
O. A interpretação do disposto nos artigos citados, maxime nos artigos 363° e
364° n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, no sentido de tal documentação ser
apenas necessária após a interposição do recurso, coloca tais normas em clara
violação do direito ao recurso, consagrado no artigo 32° n.º 1 da Constituição
da República Portuguesa, ferindo consequentemente tais normas de manifesta
inconstitucionalidade.
P. Do mesmo modo, e pelas mesmas razões - violação do direito ao recurso
consagrado na norma antes indicada da Constituição da República Portuguesa -,
são tais normas inconstitucionais na interpretação que delas é feita no Acórdão
agora sob recurso, de que tal documentação não é necessária quando a prova
estiver gravada e se mostrar transcrita, ainda que tal transcrição não conste da
acta de julgamento (como, no caso em apreço, efectivamente não consta).
Q. A acta de julgamento é nula e a sua nulidade, atento o valor probatório da
mesma, implica a nulidade do próprio julgamento e, por consequência, a nulidade
da douta sentença final, sendo fundamento de recurso, nos termos do artigo 410°
n.º 3 do Código de Processo Penal.
R. Os factos alegados pelo ora Recorrente na sua Contestação e que se deixaram
transcritos em 4.3 da Motivação precedente, demonstrativos do seu
arrependimento, de que aquando dos factos pensava em se suicidar, de que havia
comprado arma para tal, de que nunca anteriormente tinha agredido fisicamente a
ofendida, de que agiu da forma por que o fez devido ao seu estado psicológico,
alterado, doente e descontrolado, são factos relevantes para a decisão,
nomeadamente, para a determinação da medida da pena, não podendo ser
desqualificados como meramente instrumentais.
S. O arrependimento é relevante para efeitos de determinação em concreto da
medida da pena, como resulta das normas gerais do artigo 71° n.º 1 e n.º 2,
alínea e) do Código Penal, e é, ainda, relevante para efeitos de atenuação
especial da pena, nos termos da alínea c), do n.º 2, do artigo 72° do Código
Penal, exactamente quando, como já se disse e resulta evidente e foi julgado
provado neste caso, se verifica a reparação integral pelo agente dos danos
causados.
T. Não se referindo sequer a tais factos, o douto Acórdão da primeira instância
padece de nulidade, nos termos das normas das alíneas a) e c) do artigo 379° do
Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 97°, n.º 4, e no
artigo 374°, n.º 2, desse diploma, e no artigo 205°, n.º 1 da Constituição da
República Portuguesa.
U. O artigo 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal é inconstitucional, por
violação do disposto no n.º 1 do artigo 205° da Constituição República
Portuguesa, em qualquer uma das seguintes interpretações:
a. na interpretação que permita que na sentença não constem como factos
provados ou não provados, factos relevantes para a decisão da causa que tenham
sido alegados defesa na contestação;
b. na interpretação que permita que se dispense a referência a tais factos
reputando os mesmos de meramente instrumentais;
c. na interpretação segundo a qual o dever de fundamentação fica satisfeito com
a indicação sumária das conclusões contidas na contestação;
d. na interpretação que se basta, para cumprimento dessa exigência legal de
fundamentação expressa na norma em causa, com “a não enumeração na sentença de
factos que estejam em contradição com os factos provados”; e
e. na interpretação segundo a qual “interessa e basta a indicação dos meios de
prova, analisados criticamente na sua isenção e credibilidade, conjugando-os e
harmonizando-os num processo lógico-dedutivo que conduza indubitavelmente, em
certeza humana, à factualidade”;
V. Não só as normas dos artigos 374° n° 2 e 379° n° 1 alínea c) do Código de
Processo Penal, mas ainda todo o próprio regime processual penal dos recursos,
maxime, a norma do n° 1 do artigo 410° e a do n° 5 do artigo 423° do mesmo
diploma, ficam feridos de inconstitucionalidade por violação do direito ao
recurso consagrado no artigo 32° n° 1 da Constituição, quando restritivamente
interpretadas no sentido de que o verdadeiro julgamento é o efectuado na
primeira instância, onde os princípios da imediação e da oralidade têm toda a
pertinência”, ou seja, no sentido de que o julgamento do Tribunal da Relação
sobre a matéria de facto não é um julgamento verdadeiro e de que nele não
vigoram, ou quando a ele não se aplicam, “inteiramente” as regras ou princípios
da imediação e da oralidade.
W. Uma depressão nervosa, causada pela ruptura de uma relação sentimental, que
afecta o arguido de forma profunda, quer do ponto de vista psicológico, quer
emocional, e que agrava a debilidade psíquica do arguido, limita sempre,
necessariamente, a capacidade de agir da pessoa doente, por ela afectada.
X. Considerando o senso comum, as regras da experiência e os conhecimentos
actualmente adquiridos sobre a matéria, parece, ser insanavelmente
contraditório, dar‑se como assente que o arguido padecia de depressão, causada
por ruptura, que o afectava de forma profunda, quer do ponto de vista
psicológico, quer emocional - que tinha uma debilidade psíquica, agravada por
depressão - e ao mesmo tempo julgar não provado que tal depressão nervosa lhe
tivesse limitado a liberdade de agir.
Y. Considerando a causa da depressão, o rompimento da relação com a namorada, o
facto de a depressão o afectar de forma profunda, quer do ponto de vista
psicológico, quer emocional, o facto de o crime de homicídio na forma tentada
ter como vítima a namorada, o facto de o arguido dizer à vitima: “se não és
minha não és de mais ninguém!”, parece resultar certo dos autos que a depressão
nervosa limitou a liberdade de agir do Arguido, ao afectá-lo de forma profunda,
quer psicológica, quer emocionalmente.
Z. Verifica-se, por isso, os vícios referidos nas alíneas b) e c) do no n.º 2
do artigo 410° do Código de Processo Penal, constando do texto da decisão
recorrida sobre a mesma questão posições antagónicas e inconciliáveis e
elementos suficientes para impor, quanto àquele facto - de que a depressão
nervosa limitou a liberdade de agir do Arguido - resposta diversa da sufragada
pela-primeira instância e confirmada pela Relação.
AA. O Acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos
da alínea c) do n° 1 do artigo 379° do Código de Processo Penal, por isso e na
medida em que não apreciou nem decidiu as questões colocadas pelo Recorrente no
sentido de que deveriam ter sido dados como provados, pela douta decisão da
primeira instância, os factos que ele enunciou nas diferentes alíneas (a. a e.)
da conclusão K.. da Motivação de Recurso.
BB. Não se verificam os elementos subjectivos do tipo de crime sequestro, por
isso que se não verificou o dolo específico exigido pelo tipo subjectivo, ainda
que na forma de dolo eventual, já que o ora Recorrente não quis e nem sequer
representou a possibilidade de privar a ofendida da sua liberdade de movimento,
a não ser com o objectivo de a matar.
CC. Não se verifica, in casu, concurso real entre os crimes de sequestro e de
homicídio.
DD. A conduta e a punição do arguido devem ser enquadradas apenas na previsão
legal do homicídio privilegiado, previsto e punido nos termos dos artigos 133°,
22° e 23°, do Código Penal.
EE. O arguido actuou em estado de desespero por se encontrar sob a influência
de um estado de cólera ou de irritação causado por depressão que o afectou de
forma profunda sob o ponto de vista psicológico e emocional, verificando-se nexo
de causalidade entre o estado de alma do arguido e a acção deste, já que a
depressão influenciou de forma decisiva a acção do arguido.
FF. É sabido e geralmente aceite que quem se encontra numa situação de
desespero não é inteiramente livre e responsável, já que age sob o domínio do
circunstancialismo angustiante em que está envolvido, havendo um natural
obscurecimento da inteligência e um enfraquecimento da vontade.
GG. A culpa do agente deve, deste modo, ter-se por consideravelmente diminuída,
por a sua acção ter sido manifestamente influenciada, e de forma determinante,
pelo seu estado de doença.
HH. O arguido praticou actos demonstrativos do seu arrependimento sincero,
razão por que entende que a pena que lhe deve ser aplicada deve ser
especialmente atenuada, nos termos do artigo 72° do Código Penal, disposição
que a decisão recorrida viola.
II. Ainda que o tribunal ad quem entender verificado o concurso real entre os
crimes de sequestro e de homicídio, entender não se tratar de homicídio
privilegiado na forma tentada e entender não dever a pena ser especialmente
atenuada, sempre o disposto no art. 71° do Código Penal impunha a aplicação ao
Recorrente de pena menos severa, não superior a 2 anos de prisão, e não
privativa de liberdade.
JJ. Quanto ao Sequestro e quanto à Detenção de Arma, entende o Recorrente que o
tribunal deveria ter começado logo por aplicar ao arguido pena de multa em lugar
de pena de prisão, o que se impunha, desde logo face ao disposto no artigo 70°
do Código Penal, norma que o Tribunal a quo claramente desatendeu.
KK. Considerando a ausência de antecedentes criminais e as condições pessoais
do arguido, e o facto de os crimes perpetrados aparecerem como acto isolado na
vida do arguido, mostra‑se favorecido o juízo de prognose de rápida
ressocialização, tanto mais que o arguido já terá tratado de debelar a sua
depressão através de acompanhamento médico e medicamentoso - como foi provado
na primeira instância -, pelo que se poderá concluir que a simples censura do
facto e a ameaça da pena bastarão para afastar o arguido da criminalidade.
LL. O valor, que ilumina o instituto da suspensão da pena, da socialização em
liberdade, não deve neste caso ser afastado pelas necessidades de reprovação e
prevenção do crime, que (no dizer do acórdão da primeira instância) sofrem de
atenuação devido ao pequeno desvalor do resultado, à falta de antecedentes
criminais do arguido, à sua personalidade de pessoa sensível e normalmente
pacífica, à inserção social, familiar e profissional do arguido, à sua idade, ao
facto de ao tempo o arguido estar sobre o efeito de uma depressão, à reparação
dos danos da ofendida” existindo motivo para se pensar que se tratou de um acto
tresloucado e isolado na vida do arguido e que por certo jamais esquecerá.
MM. As decisões recorridas não fundamentam a opção concreta, para os crimes de
Sequestro e de Detenção de Arma, da preferência pela pena privativa de
liberdade, o que sempre seria causa da nulidade do Acórdão da primeira
instância, por falta de fundamentação para a escolha da pena de prisão naqueles
dois casos e por omissão de pronúncia, nos termos das alíneas a) e c), do n.º 1,
do artigo 379° do Código de Processo Penal, já antes citado a outro propósito.
NN. Além disso, se o Tribunal tivesse seguido o entendimento que ao Recorrente
parece mais correcto e tivesse condenado o arguido em penas de multas {ou numa
pena unitária de multa) pelos dois referidos crimes, de Sequestro e de Detenção
de Arma, e mesmo aceitando como boa a medida da pena que decidiu aplicar ao
Homicídio (o que só por cautela de patrocínio se faz), deveria ter aplicado a
este último crime pena suspensa, por se não verificarem quaisquer razões que
fizessem prevalecer a preferência por pena privativa de liberdade.
00. Ainda sem prescindir e por outro lado, admitindo aqui (obviamente sem
conceder) a possibilidade de se ter efectivamente verificado concurso real entre
os três crimes, e designadamente entre os de Sequestro e de Homicídio, sempre
se dirá que, no modo de ver do Recorrente, o disposto no artigo 70° do Código
Penal aplica-se logo no início do processo de escolha e de medida da pena,
devendo o critério imposto por tal norma, da preferência obrigatória às penas
não privativas da liberdade, estar na mente dos julgadores mesmo antes de eles
definirem a medida da pena e condicionar também essa mesma definição.
PP. Os Senhores Juízes da primeira instância deveriam ter optado por não
condenar o arguido em pena única superior a 3 anos, precisamente para poderem
suspender a execução da mesma; ou, dito de outro modo, para lhe poderem aplicar
uma pena de prisão suspensa, uma pena não privativa de liberdade, em detrimento
de uma pena que viesse a privar o arguido dessa mesma liberdade.
QQ. Não o tendo feito, o Tribunal esqueceu que a PENA DE PRISÃO SUSPENSA NA SUA
EXECUÇÃO é uma verdadeira pena, uma “outra pena”, a par da pena de multa, da
pena de prisão {efectiva) e das demais previstas no código; uma pena autónoma;
e não apenas uma segunda espécie do género pena de prisão.
RR. O critério imposto pelo artigo 70° do Código Penal encontra fundamento
também no princípio da presunção de inocência. A par, naturalmente, da sua
fundamentação no carácter fragmentário e de ultima ratio de todo o Direito
Penal e na justificação das penas e da aplicação da própria lei penal em função
da sua necessidade.
SS. A interpretação dos artigos 50° e 70° do Código Penal seguida no douto
Acórdão, no sentido de que a decísão sobre a medida da pena se não encontra
subordinada à regra que impõe a preferência por pena não privativa da liberdade,
ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta, coloca tais normas em violação das
garantias de defesa e do princípio da presunção de inocência, consagradas nos
n.ºs 1 e 2, do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa, ferindo por
isso tais normas de clara inconstitucionalidade.
2. O arguido interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 17 de
Fevereiro de 2005 nos seguintes termos:
A., já identificado nos autos, não se podendo conformar com o douto Acórdão que
nega provimento ao recurso. vem requerer a Vossas Excelências se dignem
admiti‑lo a dele interpor
Recurso para o Tribunal Constitucional,
Para ser declarada a inconstitucionalidade das seguintes normas legais:
A. Das normas que consagram o regime legal do julgamento dos recursos em
processo penal, maxime, as normas dos artigos 412°, 414°,417°, n.º 3 e n.º 4,
418°, 419°, 420°, 421°, 423°, 424° e 425º do Código de Processo Penal por
violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo
20° da Constituição da República Portuguesa, e do direito ao recurso, consagrado
no respectivo artigo 32° n.º 1, na acepção de que um recurso penal pode ser
julgado improcedente por falta, deficiência ou complexidade das respectivas
conclusões ou por omissão de qualquer outro requisito legal, sem prévio convite
ao recorrente para suprir tal falta ou reparar tais vícios.
B. Das normas dos artigos 363° e 364° n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal,
na interpretação segundo a qual a documentação ali prevista (a documentação em
acta das declarações prestadas em audiência de julgamento) é apenas necessária
após a interposição do recurso, por violação do direito ao recurso, consagrado
no artigo 32° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
C. Das normas dos artigos 363° e 364° n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal,
na interpretação segundo a qual a documentação ali prevista (a documentação em
acta das declarações prestadas em audiência de julgamento) não é necessária
quando a prova estiver gravada e se mostrar transcrita, ainda que tal
transcrição não conste da acta de julgamento (como, no caso em apreço,
efectivamente não consta), por violação do direito ao recurso, consagrado no
artigo 32° n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
D. Da norma do artigo 374°, n.º 2 do Código de Processo Penal, por violação do
disposto no n.º 1 do artigo 205° da Constituição República Portuguesa, em
qualquer uma das seguintes interpretações:
a. na interpretação que permita que na sentença não constem como factos
provados ou não provados, factos relevantes para a decisão da causa que tenham
sido alegados defesa na contestação;
b. na interpretação que permita que se dispense a referência a tais factos
reputando os mesmos de meramente instrumentais;
c. na interpretação segundo a qual o dever de fundamentação fica satisfeito com
a indicação sumária das conclusões contidas na contestação;
d. na interpretação que se basta, para cumprimento dessa exigência legal de
fundamentação expressa na norma em causa, com “a não enumeração na sentença de
factos que estejam em contradição com os factos provados”; e
e. na interpretação segundo a qual “interessa e basta a indicação dos meios de
prova, analisados criticamente na sua isenção e credibilidade, conjugando-os e
harmonizando-os num processo lógico-dedutivo que conduza indubitavelmente, em
certeza humana, à factualidade”;
E. Das normas dos artigos 374° n° 2 e 379° n° 1 alínea c) do Código de Processo
Penal, do próprio regime processual penal dos recursos, maxime, da norma do n° 1
do artigo 410º e da norma do n° 5 do artigo 423° do mesmo diploma, ainda por
violação do direito ao recurso consagrado no artigo 32° n° 1 da Constituição,
quando restritivamente interpretadas no sentido de que o verdadeiro julgamento
é o efectuado na primeira instância, onde os princípios da imediação e da
oralidade têm toda a pertinência”, ou seja, no sentido de que o julgamento do
Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não é um julgamento verdadeiro e de
que nele não vigoram, ou quando a ele não se aplicam, “inteiramente” as regras
ou princípios da imediação e da oralidade.
F. Dos artigos 50° e 70° do Código Penal, quando interpretados no sentido de
que a decisão sobre a medida da pena se não encontra subordinada à regra que
impõe a preferência por pena não privativa da liberdade, ou de que a mesma é
autónoma e prévia a esta, por violação das garantias de defesa e do princípio da
presunção de inocência, consagradas nos n.ºs 1 e 2, do artigo 32° da
Constituição da República Portuguesa.
Mais requer que o Recurso seja admitido com subida imediata, nos próprios autos
e com efeito suspensivo da decisão recorrida.
A Relatora proferiu o seguinte Despacho:
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que figura como recorrente A. e como
recorridos o Ministério Público e B., o Supremo Tribunal de Justiça por acórdão
de 17 de Dezembro de 2005, negou provimento ao recurso do acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra que havia, por seu turno, negado provimento ao recurso do
acórdão do Tribunal Colectivo de Ílhavo que condenou o arguido na pena única de
três anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de homicídio, na forma
tentada, de um crime de sequestro e de um crime de detenção de arma ilegal.
2. O recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional as
normas dos artigos 412º, 414º, 417º, nºs 3 e 4, 418º, 419º, 420º, 421º, 423º,
424º e 425º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual um
recurso pode ser julgado improcedente por falta, deficiência ou complexidade das
respectivas conclusões ou por omissão de qualquer outro requisito legal, sem
prévio convite ao recorrente para suprir a falta ou vício.
Quanto a esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão recorrido,
considerou o seguinte:
O recorrente sustenta que o constante de pág. 22, § 5.º, e pág. 33, §s 3.º e 4.º
do Acórdão recorrido parece significar que o recurso foi naquela parte julgado
improcedente, porque na conclusão K não teria cumprido o disposto no art. 412°,
nºs 3 e 4 do CPP e porque a conclusão GG seria deficiente por estar
insuficientemente fundamentada a ilação, ali extraída pelo Recorrente, de que,
pela interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal seguida no Acórdão da 1.ª
instância, se mostrava violado o princípio da presunção de inocência (conclusão
I).
Tendo o recurso sido julgado improcedente por essas razões (ou, pelo menos,
nessas partes, também por essas razões) sem precedência de convite para
aperfeiçoamento do seu recurso ou das conclusões, o acórdão será nulo por
violação do art. 690.º do CPC e dos art.ºs 414°, n° 2, e 420° do CPP (conclusão
J), normas aplicáveis também aos casos de julgamento do recurso, impedindo que
um recurso possa ser julgado improcedente por falta, deficiência, obscuridade ou
complexidade das respectivas conclusões ou por omissão nelas de qualquer outro
requisito legal, sem prévio convite a para suprir tal falta ou tais vícios
(conclusão K).
O regime legal dos recursos em processo penal (normas conjugadas dos art.ºs
412°, 414°, 417°, n.º 3 e n.º 4, 418°, 419°, 420°, 421°, 423°, 424° e 425 do
CPP) violaria o do direito de acesso ao direito e aos tribunais (art. 20° da
Constituição), e do direito ao recurso (art. 32° n.º 1), na acepção de que um
recurso penal pode ser julgado improcedente por falta, deficiência ou
complexidade das respectivas conclusões ou por omissão de qualquer outro
requisito legal, sem prévio convite ao recorrente para suprir tal falta ou
reparar tais vícios (conclusão L).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional e, mais recentemente, a deste
Supremo Tribunal de Justiça vão no sentido de que não pode deixar de ser
conhecido um recurso, por deficiência das conclusões da motivação, sem que ao
recorrente seja concedida a possibilidade de corrigir tal deficiência. O mesmo
não se aplicando, no entanto, ao próprio texto da motivação que é, por um lado,
imodificável e, por outro, o limite à correcção das conclusões.
Isso mesmo se pode ver das seguintes declarações com força obrigatória geral
oriundas do Tribunal Constitucional:
- Acórdão n.º 337/2000, DR-IA, 21.07.2000 - inconstitucionalidade da norma
constante dos art.ºs 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do CPP (na redacção anterior
à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de
concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso,
sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal
deficiência;
- Acórdão n.º 320/2002, DR-IA, 07.10.2001 - inconstitucionalidade da norma do
art. 412.º, n.º 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação,
nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas al.s a),
b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao
mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.
Não resulta assim, desta jurisprudência, nem da lei, um “direito” do recorrente
a ser convidado a corrigir as conclusões da motivação, como parece pretender o
recorrente, e que teria sido violado pela decisão recorrida.
Parte o recorrente para a sua crítica do seguinte trecho do acórdão recorrido:
«através das muitas prolixas conclusões, que eventualmente mereceriam solução de
aperfeiçoamento, questiona o recorrente diversas nulidades, que começaremos por
analisar.
Mas, como se vê de tal trecho e da análise que se lhe segue, a Relação não
deixou, apesar da prolixidade das conclusões (que se mantém neste recurso), de
conhecer todas as questões que foram suscitadas no recurso. O que vale por dizer
que não deixou de ser apreciada qualquer pretensão com base na mencionada
prolixidade, não sendo assim atingido o núcleo protegido do direito
constitucional ao recurso.
Da transcrição realizada resulta de modo manifesto que nos presentes autos não
foi aplicada uma qualquer dimensão normativa segundo a qual o recurso penal pode
ser julgado improcedente por falta ou vícios das alegações (cfr., ainda, fls.
418 e ss.).
Assim, a norma impugnada não foi aplicada pela decisão recorrida. Pelo que
qualquer juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular sobre a questão
suscitada não teria a virtualidade e alterar o acórdão impugnado, sendo, desse
modo, inútil.
Não se pode, portanto, tomar conhecimento do objecto do recurso quanto a esta
questão.
3. O recorrente pretende, por outro lado, submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional as normas dos artigos 363º e 364º, nºs 1 e 3, do Código de
Processo Penal, interpretadas no sentido de a documentação em acta das
declarações prestadas em audiência de julgamento ser apenas necessária após a
interposição do recurso.
Quanto a esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça considerou o seguinte:
Refere o recorrente que as declarações orais em audiência tinham de estar
documentadas na acta de audiência, porque foram efectivamente registadas em
suporte áudio magnético (conclusão M), prejudicando essa falta seriamente a
defesa do recorrente, o seu direito ao recurso, o que constitui nulidade da
acta, em violação do dos art.ºs 363° e 364° n.ºs 1 e 3, 99°, n.º 3 e 362° do
CPP, e é caso de falsidade da mesma, atento o valor que lhe é conferido pelo
art. 169° do CPP (conclusão N).
A interpretação dos art.ºs 363° e 364° n.ºs 1 e 3 do CPP, no sentido de tal
documentação ser apenas necessária após a interposição do recurso, violaria o
direito ao recurso - art. 32° n.º 1 da Constituição (conclusões O e P).
A nulidade da acta de julgamento, atento o seu valor probatório, implica a
nulidade do próprio julgamento e, por consequência, a nulidade da douta sentença
final sendo fundamento de recurso - art. 410.º n.º 3 do CPP (conclusão Q).
Sobre tal questão escreve-se na decisão recorrida:
«Vemos que o recorrente se insurge, em primeiro lugar, pela falta transcrição na
acta dos depoimentos prestados durante a audiência de julgamento.
Pela acta respectiva, verifica‑se que a prova produzida foi gravada,
mostrando‑se transcrita.
Seria, pois, de ser feita constar da acta?
Entende‑se que não.
Com efeito, temos que verificar que a exigência inserta no art.363.º do Cod.
Proc. Penal (diploma a que nos reportaremos sempre que se não faça menção de
origem) se destina a prevenir a correspondência entre a que é produzida e a que
resulta do julgamento; não está no espírito da norma a sistemática redução a
escrito das declarações, o que significaria a preterição do princípio da
oralidade e seria fonte de delongas processuais que o Código quis evitar. (Ac.
STJ de 20/11/90, Proc. n.º 40958/3ª, bem como no mesmo sentido, Ac. Rel. Lisboa,
de 18/2/92, CJ.XVII. T.I, pág.179, Ac. do Trib. Constitucional de 5/5/93. STJ,
de 1/7/93, BMJ 429-625, de 24/4/94, de 18/10/95, como outros mencionados no Cod.
Proc. Penal, de Maia Gonçalves 13.ª ed., em anotação ao art. 363°).
Aliás, só uma interpretação extremamente literal de tal normativo, poderia
conduzir à solução preconizada pelo recorrente.
Mas há que ponderar que o aí estabelecido está conforme o constante do artigo
anterior, onde se menciona o que deve constar da acta da audiência de
julgamento.
E tenha-se em consideração outro argumento, coadjuvante, para se poder aperceber
a intenção do legislador: no art. 112°, n° 4 estatui a obrigação de fazer
referência aos suportes técnicos, que não são manifestamente, por não revestirem
tal carácter, as declarações constantes da acta da audiência de julgamento.
Veja-se, ainda, que, no sentido de garantia de defesa do arguido é muito mais
fiável a transcrição, do que a reprodução em acta, por resumo, do que foi
referido.
A eventual inconstitucionalidade carece totalmente de fundamento, até porque
aquilo a que a lei obriga facilita muito mais a defesa do arguido, do que o
sistema de transcrição em acta, só por resumo.»
Deve começar-se por notar que está fixada jurisprudência por este Supremo
Tribunal de Justiça (ac. n.º 5/02, DR, IS-A, de 17-07-02) no sentido de que “a
não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento,
contra o disposto no art. 363.º do CPP, constitui irregularidade, sujeita ao
regime estabelecido no art. 123.º do mesmo diploma legal, pelo que, uma vez
sanada, o tribunal já dela não pode conhecer”.
Ora, não tendo sido arguida nos termos previstos no art. 123.º do CPP, tal
irregularidade fica sanada e dela, não podendo o tribunal conhecer (n.º 1), a
não ser que a mesma possa “afectar o valor do acto praticado” (n.º 2). E se as
declarações orais em audiência foram gravadas e transcritas, em nada é afectado
o valor da sequência de actos que integram a audiência, nem fica prejudicada a
possibilidade de impugnar em recurso a matéria de facto fixada pela 1.ª
Instância.
Isso mesmo decidiu este Supremo Tribunal de Justiça, mesmo no caso em que tais
transcrição e gravação não tivera lugar e ficara impedida a análise em recurso
das divergências relativamente à decisão sobre pontos concretos da matéria de
facto, pois que o direito de recorrer ou a amplitude do exercício desse direito
está na disponibilidade dos interessados (como também o está a arguição das
irregularidades que considerem praticadas), não se podendo dizer afectado,
decisivamente e com reflexos objectivos na regularidade processual, o valor do
acto, já que os interessados têm de respeitar as condições fixadas para o
exercício dos seus direitos processuais, não podendo invocar eventuais
consequências desfavoráveis que resultem de omissões próprias (cfr. o Ac. de
26-11-03. Acs ST J XI, 3, 236)
Não tendo sido arguida tempestivamente tal irregularidade, afastada ficava,
pois, a possibilidade de o recorrente suscitar tal questão perante a Relação.
Depois, importa notar que o CPP, ao lado da legitimidade do recorrente, alinha
como condição para o conhecimento do recurso, o seu interesse em agir (art.
401.º, n.º 2: “Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir”).
Não nos diz aquele diploma legal o que se deve entender por “interesse em agir”,
mas de tal já se ocuparam a Jurisprudência e a Doutrina.
Dentro desse entendimento, que se acompanha, para que o recorrente tenha
interesse em agir é necessário que vise qualquer efeito útil que não possa
alcançar sem lançar mão do recurso.
«(2) O interesse processual ou interesse em agir é definido, em termos de
processo civil, como a necessidade do processo para o demandante em virtude de o
seu direito estar carecido de tutela judicial. Há um interesse do demandante não
já no objecto do processo (legitimidade) mas no próprio processo. (3) Em termos
de recurso em processo penal tem interesse em agir quem tiver necessidade deste
meio de impugnação para defender um seu direito» (Ac. do STJ de 7.12.99, proc.
n.º 1081/99, Acs STJ VII, 3, 229).
«O interesse em agir é a necessidade concreta de recorrer à intervenção
judicial, à acção, ao processo» (Acs. do STJ de 29-03-2000, Acs STJ VIII, 1,
234, de 9-1-02, Acs STJ X, 1, 160, de 20-3-02, proc. n.º 468/02-3 e de 11-10-01.
proc. n° 2130/01-5)
«(1) Como flui explicitamente da lei (art.º 401.º, do CPP), dois dos requisitos
de que depende a admissão de um recurso penal são a “legitimidade” e o
“interesse em agir” de quem lança mão de tal expediente. (2) A “legitimidade”
consubstancia‑se na posição de um sujeito processual face a determinada decisão
proferida no processo, justificativa da possibilidade de a impugnar através de
um dos recursos tipificados na lei. Ou seja: diz‑se parte legítima aquela que
pode, segundo o Código, recorrer de uma determinada decisão judicial. Trata-se,
portanto, aqui, de uma posição subjectiva perante o processo, que é avaliada “a
priori”. (3) Outra coisa diferente é o “interesse em agir”, que consiste na
necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que
precisa de tutela e só por essa via se logra obtê-la. Portanto, o interesse em
agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários
para assegurar um direito em perigo. Trata-se, portanto, de uma posição
objectiva perante o processo, que é ajuizada “a posteriori” (Ac. do STJ de
18-10-00, proc. n.º 2116/00-3).
«Enquanto pressuposto processual, o interesse em agir (também conhecido por
interesse processual) consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar
ou fazer prosseguir a acção. O recorrente tem interesse processual quando a
situação de carência em que se encontra necessita da intervenção dos tribunais»
(Ac. dos STJ de 16-05-2002, proc. n.º 1672/02-5, subscrito pelos aqui Relator e
1.º adjunto.
No mesmo sentido se pronunciaram igualmente Simas Santos e Leal Henriques
(Código de Processo Penal Anotado, 2.º volume, 2000, 682): «Não basta ter
legitimidade para se recorrer de qualquer decisão; necessário se torna também
possuir interesse em agir, (...) que se reconduz ao interesse em recorrer ao
processo, porque o direito do requerente está necessitado de tutela; não se
trata, porém, de uma necessidade estrita nem sequer de um interesse vago, mas de
qualquer coisa intermédia: um estado de coisas reputado bastante grave para o
demandante, e que, assim, torna legítimo o recurso à arma judiciária; à
jurisprudência é deixada a função de avaliar a existência ou inexistência de
interesse em agir, a apreciação da legitimidade objectiva é confiada ao
intérprete que terá que verificar a medida em que o acto ou procedimento são
impugnados em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no
processo; a necessidade deste requisito é imposta pela consideração de que o
tempo e a actividade dos tribunais só devem ser tomadas quando os direitos
careçam efectivamente de tutela, para defesa da própria utilidade dessa
actividade, e de que é injusto que, sem mais, possa solicitar tutela
jurisdicional) (no mesmo sentido o Ac. do STJ de 03‑10‑2002, proc. n.º
1532/02-5, em que o aqui Relator foi 2.º adjunto).
Ora, como se pondera na decisão recorrida, não resultou da não documentação em
acta das declarações orais prestadas em audiência, pois que foram as mesmas
gravadas e transcritas, pelo que com igual ou maior fiabilidade podia o
recorrente impugnar a matéria de facto em toda a extensão.
E sendo assim falece-lhe interesse em agir na impugnação dessas questão, pois
que da sua solução a seu favor nenhum efeito útil retiraria, que já não
estivesse assegurado pela gravação e transcrição.
O que significa que não deverá ser conhecido o recurso neste domínio.
Mas mesmo que assim não fosse, ainda assim não lhe assistia razão à luz da
reforma de 1998 do Código de Processo Penal.
Dispõe o art. 362.º do CPP que (n.º 1) a acta da audiência contém: (a) O lugar,
a data e a hora de abertura e de encerramento da audiência e das sessões que a
compuseram; (b) O nome dos juízes, dos jurados e do representante do Ministério
Público; (c) A identificação do arguido, do defensor, do assistente, das partes
civis e dos respectivos advogados; (d) A identificação das testemunhas, dos
peritos, dos consultores técnicos e dos intérpretes e a indicação de todas as
provas produzidas ou examinadas em audiência; (e) A decisão de exclusão ou
restrição da publicidade, nos termos do artigo 321.º; (f) Os requerimentos,
decisões e quaisquer outras indicações que, por força da lei, dela devam
constar; e (g) A assinatura do presidente e do funcionário de justiça que a
lavrar.
E esclarece o art. 363.º, como princípio geral da documentação de declarações
orais (de acordo com a respectiva epígrafe), que as declarações prestadas
oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor
de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a
assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei
expressamente o impuser.
Por sua vez, o art. 364.º dispõe que as declarações prestadas oralmente em
audiência que decorrer perante tribunal singular são documentadas na acta, salvo
se, até ao início das declarações do arguido previstas no art. 343.º, o
Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente ou partes civis, no
tocante ao pedido de indemnização civil (n.º 2) declararem unanimemente para a
acta que prescindem da documentação (n.º 1). Quando a audiência se realizar na
ausência do arguido, as declarações prestadas oralmente são sempre documentadas
(n.º 3). Não estando à disposição do tribunal meios técnicos idóneos à
reprodução integral das declarações, o juiz dita para a acta o que resultar das
declarações prestadas (n.º 4).
Finalmente o art. 412.º prescreve que no recurso em que se impugne a decisão
proferida sobre matéria de facto, as especificações ordenadas pelo n.º 3 devem
ser feitas por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. E
o art. 389.º prevê que no processo sumário a documentação dos actos de
audiência, se requerida, será efectuada por súmula, enquanto que, para o
processo abreviado, se prevê a possibilidade de documentação dos actos de
audiência, sem especificar os meios.
Da conjugação deste complexo de normas resulta um sistema de documentação que
não se revê na tese do recorrente, como se decidiu no acórdão recorrido.
Com efeito, a documentação das declarações orais em audiência é efectuada
através da súmula (art. 389.º), ou através da gravação áudio magnética, seguida
de transcrição (art. 412.º, n.º 3), transcrição que não faria qualquer sentido
na tese do recorrente.
Concepção que é reforçada pela conteúdo atribuído pelo art. 389.º do CPP à acta
e que não contempla necessariamente a documentação (que abrange só a
documentação por súmula).
Isso mesmo vem decidindo, sem discrepâncias, este Supremo Tribunal de Justiça.
Tem entendido, entendimento que se mantém, que a documentação na acta, a que se
refere o art. 363.º do CPP, é a própria gravação das declarações prestadas
oralmente. A transcrição é coisa diversa e vem regulada no art. 412.º, n.º 4 do
referido diploma, para a hipótese de recurso em matéria de facto (neste sentido
o Ac. do STJ de 23-10-2002, proc. n.º 1209/02-3, no mesmo sentido, salientando
que nenhuma inconstitucionalidade se perfila, o Ac. do ST J de 10-10-02, proc.
n.º 1777/02-5).
E que, tenha o julgamento decorrido ou não perante o tribunal colectivo, as
declarações prestadas em audiência deverão, em princípio, obrigatoriamente, ser
objecto de gravação magnetofónica sempre que existir a aparelhagem respectiva,
constituindo as respectivas cassetes gravadas com genuinidade devidamente
assegurada pela supervisão do tribunal, prolongamento da acta, ou, se se
preferir, acta em sentido amplo (neste sentido o Ac. de 8-11-01, proc. n.º
3019/01-5).
Compulsado o texto da motivação verifica-se que só lhe são dedicados dois
parágrafos de fls 482 (§s 5° e 6°) de conteúdo idêntico às conclusões que se
citaram e que também não explicam de todo as razões que subjazem ao entendimento
do recorrente.
Pretende também o recorrente que a interpretação designadamente dos art.ºs 363°
e 364° n.ºs 1 e 3 do CPP, no sentido de tal documentação das declarações orais
ser apenas necessária após a interposição do recurso, viola o direito ao recurso
- art. 32° n.º 1 da Constituição (conclusão O), como se decidiu o acórdão
recorrido que tal documentação não é necessária quando a prova estiver gravada e
se mostrar transcrita, ainda que tal transcrição não conste da acta de
julgamento (conclusão P).
Embora se tenha abordado a questão da documentação da acta em jeito de reforço,
pois que se afirmou o não conhecimento dela, por razões processuais, sempre se
dirá sinteticamente que nenhuma razão assiste ao recorrente.
Com efeito, como resulta do que foi dito, nenhuma ofensa é feita ao direito ao
recurso em matéria de facto, pela interpretação acolhida pela Relação e que
garante aquele direito com total amplitude.
Da transcrição resulta que o Supremo Tribunal de Justiça considerou não poder
conhecer a questão suscitada, já que a mesma, constituindo irregularidade,
encontrava‑se sanada, e dado o arguido não ter interesse em agir (cabe sublinhar
que não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade reportada ao
fundamento normativo de tal entendimento).
Não obstante, o Supremo Tribunal de Justiça deu resposta aos argumentos do
arguido, demonstrando que a dimensão normativa impugnada não tem qualquer
relação com as decisões dos autos.
É, pois, manifesto que a dimensão normativa que o recorrente impugna não foi
aplicada pelo tribunal a quo como ratio decidendi do acórdão recorrido. Assim,
pelas razões constantes do ponto anterior, também não se pode tomar conhecimento
desta questão.
4. O recorrente autonomiza, ainda, a questão da interpretação dos artigos
referidos no número anterior interpretados no sentido segundo o qual a
documentação prevista nesses preceitos não é necessária quando a prova estiver
gravada e se mostrar transcrita, ainda que tal transcrição não conste da acta de
julgamento.
Ora, a tal questão respondeu o Supremo Tribunal de Justiça na passagem
transcrita no número anterior. Trata‑se de questão da qual o tribunal a quo
decidiu não tomar conhecimento pelas razões a que se fez referência (falta de
interesse em agir e sanação de irregularidade). De resto, a apreciação
substancial que o Supremo Tribunal de Justiça fez desta questão constitui, no
contexto do acórdão recorrido, mero obiter dictum.
Mais uma vez, a questão suscitada não se reporta a norma aplicada pela decisão
recorrida, pelo que também dela não se pode tomar conhecimento.
5. O recorrente suscita a inconstitucionalidade de diversas interpretações do
artigo 374º do Código de Processo Penal.
Quanto a tal questão, o Supremo Tribunal de Justiça afirmou o seguinte:
Depois, deve notar-se que este Tribunal já decidiu que o facto de a decisão não
conter no relatório o resumo da matéria da contestação em obediência ao disposto
no art. 374° nº 1 al. d) do CPP, não constitui nulidade mas mera irregularidade
que nem influi na decisão da causa se, como no caso, a decisão, no seu texto,
revela que na audiência se atendeu à matéria da contestação [art.s 379°, a) e
118° e segs do CPP] (Ac. de 31-1-90, proc. n.º 40356, AJ n.º 6, no mesmo sentido
os Acs. de 19/12/1991, proc. n.º 42031 e de 16/06/1999, 28/99).
Invoca o recorrente, a este propósito, a inconstitucionalidade de diversas
interpretações do art. 374.º do CPP, que seriam inconstitucionais, mas não
indica qual delas foi aplicada pela decisão recorrida, sendo certo que, como se
viu, a questão em causa não era de fundamentação mas sim de objecto da discussão
e de investigação.
As inconstitucionalidades indicadas apresentam, pois, como uma forma mais
“sofisticada” de impugnar a decisão tomada pela Relação, naquele âmbito, mas no
domínio do direito ordinário.
Assim, não há que conhecer delas.
Pretende o recorrente que é inconstitucional o art. 374.º do CPP na
interpretação segundo a qual interessa e basta a indicação dos meios de prova,
analisados criticamente na sua isenção e credibilidade, conjugando-os e
harmonizando-os num processo lógico-dedutivo que conduza indubitavelmente, em
certeza humana, à factualidade” (conclusão U).
Teve este Supremo Tribunal de Justiça ocasião de lembrar que, se o recorrente
invoca a questão da nulidade da decisão por falta de fundamentação suficiente,
mas se dispensa de demonstrar essa afirmação, não pode desencadear a pretendida
crítica pelo Supremo Tribunal de Justiça que não tem que (nem pode) desencadear
uma qualquer expedição tendente a testar todas as modalidades possíveis de
incumprimento daquele dever de fundamentação (cfr. ac. de 15/11/2001, proc. n.º
3258/01-5, do mesmo Relator).
Mas importa reter que o exame crítico das provas cabia, em primeiro lugar, à 1.ª
Instância, que o fez, como também o fez a Relação no espaço que lhe cabia como
tribunal de apelação.
Como melhor se verá, o dever constitucional de fundamentação da sentença
basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos
motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame
crítico das provas que serviram para fundar a decisão (n.º 2 do art. 374.º do
CPP) e o exame crítico da prova, exige, como o fez o tribunal colectivo, a
indicação dos meios de prova que serviram para formar a sua convicção, mas,
também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios
lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do
Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma
os diversos meios de prova apresentados em audiência.
Ora, a Relação sindicou suficientemente o processo, fundamentou a decisão sobre
a improcedência do recurso em matéria de facto acolhendo na íntegra a
fundamentação do acórdão do tribunal colectivo que se apresenta como suficiente.
O que vale por dizer que as Instâncias cumpriam suficientemente esse encargo,
sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permitem afirmar que o
mesmo não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas
instâncias.
Improcede, assim também, a arguição de nulidade do acórdão recorrido quanto a
esse ponto constante da conclusão AA da sua motivação.
O art. 205.º da Constituição dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam
de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei (n.º 1). E deixa
perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente
imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação
verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero
expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões
deixam de ser fundamentadas “nos termos previstos na lei” para o serem “na forma
prevista na lei”. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de
liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
A fundamentação das decisões judiciais continua, pois, dependente da lei a que é
atribuído o encargo de definir, com maior ou menor latitude, o âmbito do dever
de fundamentação, sem que isso signifique total discricionariedade legislativa,
“uma vez que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio
conceito de Estado de direito democrático ao menos quanto às decisões judiciais
que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de
ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao
recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou motivação
fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos
de facto, bem como as razões de direito que justificam a decisão” (V. Moreira e
G. Canotilho, CRP Anotada, 2.ª Edição, 798-9)
Foi devolvido ao legislador o seu “preenchimento”, a delimitação do seu âmbito e
extensão em termos prudentes evitando correr o risco de estabelecer uma
exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e
excessiva. Limitou-se a consagrar o aludido princípio “em termos genéricos”,
deixando a sua concretização ao legislador ordinário. (cfr. o ac. n° 310/94 do
T. Constitucional - DR IIS de 29.8.94), sem que isso signifique, como se viu,
que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e absoluta
para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos
tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional.
Têm sido atribuídas à fundamentação da sentença diversas funções:
- Contribuir para a sua eficácia, através da persuasão dos seus destinatários e
da comunidade jurídica em geral;
- Permite, ainda, às partes e aos tribunais de recurso fazer, no processo, pela
via do recurso, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz;
- Constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional,
contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a
qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto (juris dicere). E,
nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da
independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (cfr. citado Ac.
680/98).
E a norma, que desenhou o dever de fundamentação no processo penal, cumpre todas
estas funções, como vêem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal
Constitucional.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a constitucionalidade desta
norma, nos seguintes acórdãos:
- nºs 680/98 e 636/99: é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP,
na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto
se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância,
não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal.
- n° 102/99: não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP,
quando interpretado no sentido de que, sendo vários os arguidos que, em
co-autoria, praticaram os factos delituosos, o tribunal não tem que fazer uma
fundamentação formalmente distinta para cada um deles.
- n° 258/2001: não é inconstitucional a norma do n.º 2 do art. 374.º do CPP,
quando interpretada em termos de não determinar a indicação individualizada dos
meios de prova relativamente a cada elemento de facto dado por assente.
- n° 382/98: não são inconstitucionais as normas do n.º 2 do art. 374.º (art.ºs
361°, 368°, nº 2), enquanto neste complexo normativo se não prevê a prévia
quesitação de factos alegados pela acusação e pela defesa resultantes da
discussão da causa e, consequentemente, a sua reclamação.
Assim, impõe-se a conclusão de que o Ac. do Tribunal Constitucional n° 680/98 de
2 de Dezembro (D.R. IIS de 5.11.99) que se refere a situação paralela à dos
presentes autos, segue, no entanto, em direcção diversa à pretendida pelo
recorrente.
Com efeito, decidiu-se aí «julgar inconstitucional a norma do n° 2 do artigo
374° do Código de Processo Penal de 1987, na interpretação segundo a qual a
fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração
dos meios de prova utilizados em 1ª instância, não exigindo a explicitação do
processo de formação da convicção do tribunal, por violação do dever de
fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n° 1 do artigo 205° da
Constituição, bem como, quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n° 2
do artigo 410° do mesmo Código, por violação do direito ao recurso consagrado no
n° 1 do artigo 32°, também da Constituição».
Ou seja, o T. Constitucional entendeu que foi exactamente a falta de
explicitação do processo de formação da convicção do tribunal que determinou a
inconstitucionalidade da interpretação então apreciada, elemento que o
recorrente sustenta insuficiente.
A fundamentação desenvolvida no caso permite o exame do processo lógico ou
racional subjacente à decisão de facto. E o exame crítico dos meios de prova,
designadamente da sua razão de ciência e credibilidade, explicitam o processo de
formação da convicção, assim se garantindo que se não tratou de uma ponderação
arbitrária das provas ao atribuir ao seu conteúdo uma especial força na formação
da convicção do Tribunal. Com efeito, foram explicitados os motivos de facto e
de direito que fundamentam a decisão, bem como foi efectuado o exame crítico das
provas que serviram para fundar a decisão, pelo que não só não se verifica
qualquer nulidade, como não foi feita qualquer interpretação do n.º 2 do art.
374.º em violação da Constituição.
É, de novo, manifesto que as dimensões normativas impugnadas pelo recorrente não
foram aplicadas pela decisão recorrida. Por um lado, o tribunal entendeu não
tomar conhecimento das questões suscitadas. Por outro, foi realizada nos autos a
crítica dos meios de prova.
Não se pode, portanto, tomar conhecimento de tal questão.
6. Por último, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie as
normas dos artigos 50º e 70º do Código Penal, interpretadas no sentido de a
decisão sobre a medida da pena não se encontrar subordinada às regras que impõem
a preferência por pena não privativa da liberdade, “ou de que a mesma é autónoma
e prévia a esta”.
Quanto a esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu o seguinte:
Constitucionalidade da interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal.
Refere o recorrente que a interpretação dos art.ºs 50° e 70° do C. Penal do
acórdão recorrido de que a decisão sobre a medida da pena se não encontra
subordinada à regra que impõe a preferência por pena não privativa da liberdade,
ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta, coloca tais normas em violação das
garantias de defesa e do princípio da presunção de inocência, consagradas nos
n.ºs 1 e 2, do art. 32° da Constituição (conclusão SS).
A 1.ª Instância - defende - deveria ter optado por não condenar o arguido em
pena única superior a 3 anos para poderem suspender a sua execução da mesma
(conclusão PP), ao não o fazer esqueceu que a pena suspensa é uma verdadeira
pena autónoma; e não apenas uma segunda espécie do género pena de prisão
(conclusão QQ), sendo que o «critério imposto pelo artigo 70.º do Código Penal
encontra fundamento também no princípio da presunção de inocência. A par,
naturalmente, da sua fundamentação no carácter fragmentário e de ultima ratio de
todo o Direito Penal e na justificação das penas e da aplicação da própria lei
penal em função da sua necessidade» (conclusão RR).
Sobre tal questão discorreu o acórdão recorrido:
«Pretende, ainda, o recorrente que os art.s 50° e 70° do Cod. Penal são
inconstitucionais, na interpretação segundo a qual a decisão sobre a medida da
pena se não encontra subordinada à regra que impõe a preferência por pena não
privativa da liberdade, ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta.
Tal surge na sequência da questão já antes abordada, mas sem que possamos fazer
uma referência ao também requerido pelo recorrente, que se afigura deslocado
atento o invocado nesta sede.
Com efeito, vê-se que entende que os Senhores Juízes de Círculo deveriam ter
optado por não condenar o Arguido numa pena única superior a 3 anos,
precisamente para poderem suspender a execução da mesma (conclusão DD).
Daí se afere que o recorrente faz um raciocínio ao contrário do que comanda a
lei: primeiro deve-se ver qual a pena a impor, possibilidade da suspensão da sua
execução, etc., para, numa fase posterior, se observarem os critérios para a sua
determinação, “moldando-os”, talvez, ao objectivo final.
Se fosse assim, talvez lhe assistisse razão na invocada inconstitucionalidade.
Mas como os critérios legais são outros e se mostram observados, não se vê em
que é que as suas garantias de defesa foram postergadas, já que o tribunal
observou aquilo a que está vinculado.
Por outro lado, não se revela de onde se pode extrair a violação do princípio da
presunção de inocência, nem o recorrente o refere, pois mesmo na motivação
sustenta tal com o mesmo teor da conclusão - “aparentemente” -, ou seja, não
fundamenta essa aparência e acresce que, por isso, a mesma não é uma verdadeira
conclusão, como o exige o art. 412°, n° 1 do Cod. Proc. Penal. um resumo do
expresso na motivação.
Até por falta de fundamentação tal invocação careceria de análise.»
Merece esta posição o nosso acordo.
Com efeito, dispõe o art. 50.º do C. Penal que o tribunal suspende a execução da
pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à
personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e
posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do
facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades
da punição (n.°1).
O que vale por dizer que o Tribunal só perante uma pena de prisão não superior a
3 anos de prisão, que entende ser de aplicar a um determinado agente pela
prática de um crime concreto, é que pode e deve equacionar a suspensão da sua
execução, e não antes.
E compreende-se que a Lei reserve a aplicabilidade daquela pena de substituição
para os casos cuja gravidade não ultrapasse determinado patamar, escolhendo a
medida concreta da pena a infligir como índice dessa gravidade.
Como já o decidiu este Tribunal (Ac. de 20/03/03, proc. n.º 504/03-5, do mesmo
Relator), o legislador estabeleceu esse requisito (pena não superior a 3 anos de
prisão) enquanto índice de gravidade do ilícito merecedor dessa pena de
substituição. Ou seja, sabendo-se que a pena concreta traduz sempre o grau de
ilicitude e culpa da conduta em apreciação, escolheu-se uma medida limite que
traduzisse os limites de gravidade das condutas abrangidas.
Essa técnica não é, aliás, exemplo isolado no C. Penal. O mesmo sucede com
outras penas de substituição, como sucede com os art.ºs 44.º (substituição da
pena curta de prisão por multa), 45.º (substituição por prisão por dias livres),
46.º (substituição pelo regime de semidetenção).
E não se vê, nem o recorrente o demonstra, que tal solução legal viole a
Constituição.
Por outro lado, o art. 70.º trazido à colação pelo recorrente versa, como melhor
se verá a propósito da opção pela pena de prisão nos crimes de violação de
domicílio e detenção ilegal de arma, é alheio a esta problemática, pois se
destina aos tipos de crimes em que a reacção criminal é, em alternativa, prisão
ou multa e em que essa opção não pressupõe a determinação prévia da pena de
prisão aplicável, antes antecede, nos termos do referido artigo, essa
determinação que pressupõe exactamente a escolha da pena a aplicar: prisão ou
multa.
É, mais uma vez, manifesto que a dimensão normativa indicada não foi aplicada
nos autos.
Desde logo, uma vez que o recorrente pretende a aplicação da suspensão da
execução da pena de prisão, não se vislumbra como o Tribunal podia optar por tal
solução, já que a pena aplicada é de 3 anos e 6 meses de prisão (cfr. artigo
50º, nº 1, do Código de Processo Penal – sublinhe‑se que o limite de 3 anos aí
referido não foi impugnado na perspectiva da constitucionalidade pelo
recorrente).
Não obstante, e de modo decisivo, em momento algum o Supremo Tribunal de Justiça
assumiu que a “decisão sobre a medida da pena se não encontra subordinada à
regra que impõe a preferência por pena não privativa da liberdade”. Na verdade,
o tribunal a quo entendeu, e demonstrou, fundamentadamente, que no caso não
havia que optar por pena não privativa da liberdade (cf., ainda, fls. 563 e
ss.), e não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a bondade intrínseca
dessa específica decisão não sendo, aliás, suscitada pelo recorrente qualquer
inconstitucionalidade normativa do critério ponderativo em si mesmo.
Também não se pode, portanto, tomar conhecimento de tal questão.
7. Em face do exposto, notifique‑se o recorrente das questões prévias
indicadas, ao abrigo do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, e para
produzir alegações quanto à questão que tem por objecto os artigos 374º, nº 2,
379º, nº 1, alínea c), 410º, nº 1, e 423º, nº 5, interpretados no sentido
segundo o qual “o verdadeiro julgamento é o efectuado em primeira instância”.
O recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
A. Quer a Relação, quer o Supremo, adoptaram o entendimento de que o verdadeiro
julgamento é o efectuado na 1ª instância, onde os princípios da mediação e da
oralidade têm toda a pertinência, entendimento com que prejudicaram o
conhecimento de questões essenciais dos recursos ordinários interpostos,
nomeadamente, quanto à decisão sobre a matéria de facto, à fundamentação
respectiva e ao seu relevo para o cabal exercício do direito de recurso.
B. Tal entendimento retira efectivo valor ao recurso da decisão de facto e
conduz à efectiva impossibilidade de apreciação pelo Tribunal de Recurso da
decisão sobre a matéria de facto.
C. É entendimento que esvazia de sentido o direito de recurso.
D. Com base em tal entendimento, foi, no caso sob juízo, negada ao Recorrente a
apreciação em recurso de várias decisões tomadas pela primeira instância acerca
da questão de facto.
E. Nessa concepção, entendimento ou interpretação delas, as normas dos artigos
374° n° 2, 379° n° 1, alínea c), 410° n° 1 e 423° n° 5 do Código de Processo
Penal violam o disposto no n° 1 do artigo 32° da Constituição da República
Portuguesa.
NESTES TERMOS, SE PEDE A VOSSAS EXCELÊNCIAS
SEJA DECLARADA A INCONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS DOS ARTIGOS 374° N° 2, 379° N°
1, ALÍNEA C), 410° N° 1 E 423° N° 5 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, POR VIOLAÇÃO DO
DISPOSTO NO N° 1 DO ARTIGO 32° DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, QUANDO
INTERPRETADAS NO SENTIDO DE QUE OS VERDADEIROS JULGAMENTOS SÃO OS DA PRIMEIRA
INSTÂNCIA.
Por seu turno, o Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1 - Não é inconstitucional uma interpretação das normas conjugadas dos artigos
374°, n° 2, 379°, n° 1, alínea c), 410°, n° 1 e 423°, n° 5, todos do Código de
Processo Penal, segundo a qual o verdadeiro julgamento da causa, em que imperam
os princípios da imediação e da oralidade e são produzidas todas as provas e as
testemunhas, o arguido e o ofendido são ouvidos em pessoa é o efectuado na 1ª
instância.
2 - Tal interpretação não colide com a plena efectividade do julgamento do
recurso levado a cabo em segunda instância, designadamente quanto à matéria de
facto, consagrado no artigo 32°, n° 1, da Constituição, como uma das garantias
de defesa do processo criminal.
3 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
4. Entretanto, o recorrente requereu a suspensão da instância com os seguintes
fundamentos:
A., Recorrente nos autos â margem referenciados, requer a V.Exas. se dignem
ordenar a suspensão da instância, nos termos da alínea c) do número 1 do artigo
276° do Código de Processo Civil, por se encontrar à espera da decisão da
Segurança Social acerca de pedido de protecção jurídica requerido para os
efeitos do artigo 85° da Lei do Tribunal Constitucional.
Não obstante o motivo invocado para requerer a presente suspensão não resultar
directamente da lei - cfr. artigo 276° do Código de Processo Civil -, o mesmo
apresenta‑se como razoável e proporcional ao pedido, uma vez que a apreciação do
recurso por parte de V. Exas. originará certamente importantes encargos que o
Recorrente não conseguirá comportar, caso o seu pedido de protecção jurídica
resulte indeferido por parte da Segurança Social, o que determinará a necessária
desistência do recurso objecto dos autos por parte do Recorrente, comprometendo
seriamente e irreversivelmente a sua defesa.
O requerimento foi indeferido, por Despacho de 17 de Agosto de 2005, com o
seguinte teor:
O recorrente vem requerer a suspensão da instância, invocando como fundamento a
apresentação do requerimento de apoio judiciário na Segurança Social.
Não se vislumbra razão para o decretamento da aludida suspensão da instância.
Com efeito, o prosseguimento dos autos nenhuma conexão tem com o processo
autónomo de concessão de apoio judiciário.
De resto, o recorrente não apresenta qualquer fundamento plausível da sua
pretensão.
Nessa medida, indefere-se a requerida suspensão da instância.
Veio então o recorrente reclamar para a Conferência nos seguintes termos:
A., já identificado nos autos, notificado de douta decisão que indefere o seu
requerimento para suspensão da instância, vem, nos termos do disposto no artigo
78°A da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro, reclamar para a Conferência desse
Tribunal, o que faz com os seguintes fundamentos:
A presente decisão de indeferimento foi proferida sem precedência de convite ao
ora Recorrente para aperfeiçoar a sua pretensão, apresentando detalhadamente as
razões que a fundamentam, não obstante Vossa Excelência terem nele expressado
“Não se vislumbra razão para o decretamento da aludida suspensão da instãncia.”
Ora,
Considerando Vossa Excelência que, relativamente à requerida suspensão, o
Recorrente não apresentou “(...) fundamento plausível (...)”, entende o
Recorrente que deveria ter sido convidado a aperfeiçoar o seu requerimento e
que, sem esse convite e a sua resposta a ela. Vossa Excelência não poderia ter
indeferido a requerida suspensão da instância.
Com efeito, parece ao Recorrente ser esse o entendimento do artigo 266°, n° 1 do
Código de Processo Civil - aqui aplicável com recurso ao artigo 4° do Código de
Processo Penal - que, por integração analógica, faz padecer de nulidade a
presente decisão, sem prévio convite ao recorrente para suprir tal falta de
“(...) fundamento plausível (...)”, e neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 11.05.1999 “A omissão do despacho de aperfeiçoamento tem
consequências distintas consoante a natureza deste for vinculativa ou não
vinculativa. No primeiro caso, e porque se tratar de um dever imposto ao juiz, a
sua omissão constitui nulidade processual nos termos do artigo 201 ° - código de
processo civil - se tal irregularidade for susceptível de influir no exame ou na
decisão da causa (...)”
Termos em que se requer a Vossa Excelência se digne admitir a presente
reclamação, dirigida â Conferência desse Tribunal.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
A)
Delimitação do objecto do recurso
5. O recorrente não se pronuncia sobre as questões prévias constantes dos nºs
2, 3, 4 e 5 do Despacho de fls. 583 e ss., transcrito supra.
Nessa medida, pelas razões constantes desse Despacho, não se tomará conhecimento
de tais questões.
6. O recorrente responde à questão prévia suscitada a propósito dos artigos 50º
e 70º do Código Penal. Afirma o recorrente o seguinte:
O Recorrente vai apenas pronunciar-se sobre a decisão de não conhecer a questão
da inconstitucionalidade dos artigos 50º e 70° do Código Penal, na
interpretação, seguida no Acórdão recorrido, de que a decisão sobre a medida da
pena se não encontra subordinada à regra que impõe a preferência por pena não
privativa da liberdade, ou de que a mesma é autónoma e prévia a esta.
Salvo o muito respeito devido, parece ao Recorrente não ter sido devidamente
percebido.
Com efeito, justificando o não conhecimento de tal questão, entendeu a Veneranda
Senhora Juíza Conselheira Relatora não se vislumbrar “como o Tribunal podia
optar por tal solução (de aplicar pena não privativa de liberdade), já que a
pena aplicada é de 3 anos e 6 meses de prisão”, sublinhando que “o limite de 3
anos aí referido (no artigo 50° n° 1 do Código Penal) não foi impugnado na
perspectiva da constitucionalidade pelo recorrente”.
Ora, o que o Recorrente pretendia, ao invocar tal questão neste recurso, era
exactamente o contrário:
Não questionando, com efeito, o disposto no artigo 50° n° 1 quanto ao limite de
3 anos (por aceitar que, do ponto de vista da constitucionalidade, nada impede
que se estabeleça um determinado limite), o que o Recorrente pretendia era
insurgir‑se contra a autonomização da operação da escolha da pena (entre pena
privativa e não privativa) e a operação ou decisão sobre a medida da pena de
prisão, feita na primeira instância, com o aplauso da Relação e do Supremo, em
termos de considerar (como foi considerado pelos tribunais em causa) que a
operação ou decisão sobre a medida da pena de prisão é autónoma e prévia
relativamente à operação de escolha entre uma pena privativa e uma pena não
privativa.
É que, no entendimento do Recorrente, o disposto no artigo 70° do Código Penal
deverá aplicar‑se logo no início desse processo, de escolha e de medida da
pena, devendo o critério imposto por tal norma, da preferência obrigatória às
penas não privativas da liberdade, estar na mente dos julgadores mesmo antes de
eles definirem a medida da pena e condicionar também essa mesma definição.
Ou seja, no caso concreto sob juízo, o que o Recorrente entende é que os
Senhores Juízes da primeira instância - antes de decidirem da medida da pena -
deveriam ter optado por não condenar o arguido em pena única superior a 3 anos,
precisamente para poderem suspender a execução da mesma; ou, dito de outro
modo, para lhe poderem aplicar uma pena de prisão suspensa, uma pena não
privativa de liberdade, em detrimento de uma pena que viesse a privar o arguido
dessa mesma liberdade.
Mais entende que, não o tendo feito, aquele tribunal (como a Relação e o
Supremo) se esqueceu que a PENA DE PRISÃO SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO é uma
verdadeira pena, uma “outra pena”, a par da pena de multa, da pena de prisão
(efectiva) e das demais previstas no código; uma pena autónoma; e não apenas uma
segunda espécie do género pena de prisão.
Ao que acresce, dado que o critério imposto pelo artigo 70° do Código Penal
encontra fundamento também no principio da presunção de inocência - a par da
sua fundamentação no carácter fragmentário e de ultima ratio de todo o Direito
Penal e na justificação das penas e da aplicação da própria lei penal em função
da sua necessidade - que tal interpretação dos artigos 50° e 70° do Código
Penal, que veio a ser seguida também no Acórdão recorrido, no sentido de que a
decisão sobre a medida da pena se não encontra subordinada à regra que impõe a
preferência por pena não privativa da liberdade, ou de que a mesma é autónoma e
prévia a esta, coloca tais normas em violação das garantias de defesa e do
principio da presunção de inocência, consagradas nos n.ºs 1 e 2, do artigo 32°
da Constituição da República Portuguesa, ferindo por isso tais normas de clara
inconstitucionalidade.
Parece, assim, ao Recorrente que tal questão deverá também ser objecto de
recurso, pedindo, por isso, lhe seja concedido novo prazo para sobre ela
produzir alegações.
O recorrente afirma não impugnar o limite de 3 anos constante do artigo 50º, nº
1, do Código Penal, limite para lá do qual não é possível a aplicação da
suspensão da execução da pena de prisão.
Afirma também que a apreciação ou decisão sobre a medida da pena de prisão não
deve ser autónoma e prévia relativamente à apreciação da escolha entre uma pena
privativa e uma pena não privativa de liberdade.
Assim, a opção, numa lógica de alternatividade (artigo 70° do Código Penal),
entre a pena de prisão e a pena de suspensão da execução da pena de prisão, como
o recorrente parece pretender, implicaria a ausência do limite temporal de 3
anos.
Na verdade, implicaria um específico enquadramento da pena de suspensão da
execução da pena de prisão, que não corresponde ao previsto no artigo 50° do
Código Penal, norma cujo conteúdo (nomeadamente, o limite dos 3 anos),
repete-se, o recorrente afirma não impugnar.
Com efeito, no Código Penal, a pena é determinada de acordo com o disposto nos
artigos 70° e ss.. Se se verificarem os pressupostos do artigo 50°,
proceder-se-á então à suspensão da pena de prisão. Sustentar que o julgador deve
escolher a medida da pena de prisão para poder suspender a sua execução,
admitindo, no entanto, o limite de 3 anos do artigo 50° do Código Penal (como
faz o recorrente), equivale a sustentar-se que nunca deveria ser aplicada pena
superior a 3 anos, para só então se poder colocar a possibilidade de suspensão
da sua execução (possibilidade que, na óptica do recorrente, é verdadeiramente
uma obrigatoriedade). Trata-se, obviamente, de uma leitura do sistema de penas
do Código Penal inadequada que, como questão de constitucionalidade, implicaria
a impugnação dos vários preceitos relacionados com esta matéria, nomeadamente o
artigo 70°, bem como os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão
previstos no artigo 50°, impugnação que, acrescenta-se, sempre seria
improcedente.
Mas importa, previamente, saber se a dimensão normativa que o recorrente impugna
foi aplicada pela decisão recorrida.
O recorrente impugna os artigos 50° e 70° do Código Penal interpretados no
sentido de o tribunal não estar obrigado a preferir a pena não privativa à pena
privativa da liberdade.
Ora, em nenhuma passagem do acórdão recorrido é acolhido o entendimento segundo
o qual o tribunal não deve preferir a pena não privativa à pena privativa da
liberdade, ou antes, em nenhuma passagem se admite que o tribunal não está
subordinado à regra do artigo 70° do Código Penal. Questão diferente seria a
atinente a uma opção necessária pela pena não privativa da liberdade. Ora, como
já se referiu, tal solução tornaria inútil a alternativa entre as penas (o
artigo 70° do Código Penal estabelece as condições da preferência pela pena não
privativa da liberdade, condições que o recorrente também não impugna no
presente recurso).
Assim, o acórdão recorrido optou pela pena concreta aplicada em função das
várias circunstâncias a que se referem os artigos 70° a 82° do Código Penal. Foi
a seguinte a fundamentação do aresto:
Medida concreta da pena.
Defende o recorrente que, ainda que se entenda verificado o concurso real entre
os crimes de sequestro e de homicídio não privilegiado na forma tentada sem
atenuação especial, sempre o disposto no art. 71º Código Penal impunha a
aplicação de pena menos severa, não superior a 2 anos de prisão, e não privativa
de liberdade (conclusão II).
Ponderou o Tribunal da Relação:
«No que respeita à medida da pena deve o julgador ter em conta o disposto no
art. 71º do Cód. Penal.
Aí se diz, no seu n° 1, que a determinação da medida da pena é feita em função
da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Visando-se com a aplicação da pena a protecção de bens jurídicos e a
reintegração social do agente - art. 40°, n° 1 do Cod. Penal.
Sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa - art.40°, nº
2 do Cod. Penal.
Decorre de tais normativos que a culpa e a prevenção são os parâmetros que
importa ter em linha de conta na determinação da medida da pena.
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias,
que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra
ele, art. 71º, nº 2 do Cod. Penal.
Enunciando-se no seu n° 2 - de modo exemplificativo - as circunstâncias que
podem assumir tal função.
Fazendo valer aqui e agora esses considerandos, a respeito, não descortinamos
como possa a moldura penal concreta ser fixada em moldes diferentes do efectuado
na decisão recorrida.
Assim, atentas as molduras penais abstractas com quê as suas condutas são
puníveis, 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão, no respeitante
ao crime de homicídio, prisão de 1 mês a 3 anos - crime de sequestro - e prisão
até 2 anos - crime de detenção de arma ilegal - sendo que a estes dois últimos
tipos é possível a punição com pena de multa, não se vê como as penas impostas -
3 anos, 14 meses e 8 meses de prisão, respectivamente poderiam ser fixadas em
limites inferiores.»
Vejamos, pois, se assiste razão ao recorrente, começando por analisar os poderes
de cognição deste Tribunal em matéria de medida concreta da pena.
Mostra-se hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de
julgar»: um sistema de penas variadas e variáveis, com um acto de
individualização judicial da sanção em que à lei cabia, no máximo, o papel de
definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro
dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo
de individualização interviriam, de resto coeficientes de difícil ou impossível
racionalização.
De acordo com o disposto nos art.ºs 70º a 82º do Código Penal a escolha e a
medida da pena, ou seja a determinação das consequências do facto punível, é
levada a cabo pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução,
escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se
numa autêntica aplicação do direito. Não só o Código de Processo Penal regulou
aquele procedimento, de algum modo autonomizando-o da determinação da
culpabilidade (cfr. art.ºs 369º a 371º), como o n.º 3 do art. 71º do Código
Penal (e antes dele o nº 3 do art. 72º na versão originária) dispõe que «na
sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena»,
alargando a sindicabilidade, tornando possível o controlo dos tribunais
superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena.
Mas importa considerar os limites de controlabilidade da determinação da pena em
recurso de revista, como é o caso, sendo certo que a questão já passou
irrestritamente o arquivo da 2.ª Instância.
Não oferece dúvidas de que é susceptível de revista a correcção das operações de
determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se
irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o
desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de
determinação.
Tendo sido posto em dúvida que a valoração judicial das questões de justiça ou
de oportunidade caibam dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista
(Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3.), deve entender-se que a
questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista,
bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já
não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para
controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação
das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (Neste
sentido, Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63 n.º m. 200, Figueiredo Dias,
Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas
Santos e Correia Ribeiro, Medida Concreta da Pena, Disparidades, pág. 39).
Ao crime de homicídio simples tentado corresponde a moldura penal abstracta de 1
ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão.
Determinada a moldura penal abstracta, é dentro dessa moldura penal, que
funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime
deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
- O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas
consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente);
- A intensidade do dolo ou negligência;
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o
determinaram;
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja
destinada a reparar as consequências do crime;
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto,
quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Agiu o Arguido com dolo directo e intenso, pois Agiu com a intenção de tirar a
vida a B. e persistiu nessa intenção mesmo perante o insucesso da primeira
tentativa, tendo disparado duas vezes, a segunda já com a ofendida ferida, só
não tendo conseguido atingir os seus objectivos por motivos alheios à sua
vontade.
Mas deve atender-se a que devido à ruptura do namoro com a ofendida o arguido
ficou profundamente perturbado psicológica e emocionalmente, com depressão
nervosa.
É elevada a ilicitude da sua conduta, tendo ferido a ofendida na cabeça com uma
arma de fogo, sendo relevante a circunstância de a ter indemnizado pelos danos
sofridos.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência
colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira,
que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em
concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na
validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses
limites, satisfazem se, quando possível, as necessidades da prevenção especial
positiva ou de socialização (Ac. do STJ de 17‑09‑1997, proc. n.º 624/97).
A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e
das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo‑se a todas as
circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
A esta luz, e atendendo aos poderes de cognição que a este Supremo Tribunal
assistem, impõe-se concluir que a pena concreta fixada e que o recorrente
contesta, se situa claramente dentro da sub-moldura a que se fez referência e
que dentro dela foram sopesados todos aqueles elementos de facto que se
salientaram.
E a pena encontrada de 3 anos de prisão mostra‑se ajustada e conforme às penas
que vem este Supremo Tribunal de Justiça aplicando em casos idênticos ou
próximos:
- 3 anos, suspensa por 5 anos em caso de homicídio simples, em que se perfilavam
muitas circunstâncias atenuantes (Ac. de 6.11.85, BMJ 351-189);
- 3 anos, em caso de homicídio simples (Ac. de 23.4.87, BMJ 366-305);
- 4 anos (BMJ 397-315);
- 3 anos suspensa por 5 anos, em caso de homicídio simples, tendo o jovem
delinquente uma incapacidade parcial e tendo decorrido 8 anos decorridos (Ac. de
30.6.93, proc. n.º 44493);
- 3 anos, suspensa por 5 anos, em caso de homicídio simples ocorrido no meio
familiar e relacionado com uma situação de toxicodependência (Ac. de 1.3.00,
proc. n.º 1165/99-3, BMJ 495);
- 3 anos e 6 meses, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 17.10.91, BMJ
410-360);
- 4 anos, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 28.11.01, proc. n.º
3127/01-3);
- 4 anos e 6 meses, (Ac. de 6.2.02, proc. n.º 4456/01-3);
- 3 anos, em caso de homicídio simples (Ac. de 13-2-02, proc. n.º 4261/01-3)
- 5 anos, em caso de homicídio qualificado, uxoricídio (Ac. de 15.10.03, proc.
n.º 2409/03-3)
- 9 anos, em caso de homicídio qualificado (Ac. de 12.11.03, proc. n.º -
3257/03-3, crime sem motivo, salvo a nacionalidade da vítima)
- 4 anos e 4 anos e 6 meses - homicídio qualificado tentado (Ac. de 14.10.2004,
proc. n.º 3220/04);
- 3 anos (Ac. de 14.10.2004, proc. n.º 3232/04-5)
- 5 anos e 6 meses (Ac. de 4.11.04, proc. n.º 4502/04-5, sendo extremamente
graves as consequências físicas para o ofendido);
- 3 anos (Ac. de 17.2.05, proc. n.º 4324/04-5, do mesmo Relator).
Não merece, assim, censura a dosimetria penal exercida pelas instâncias.
Não se vislumbra, pois, em que passagem se pode fundamentar o recorrente para
afirmar que o tribunal a quo considerou não ter de dar preferência à pena não
privativa de liberdade. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça escolheu a
pena e a sua medida em função dos critérios legais aplicáveis ao caso (também o
do artigo 70° do Código Penal), nunca se colocando a questão da suspensão da
execução da pena de prisão, não por não se considerar obrigado a dar preferência
a esta nas circunstâncias em que a lei o impusesse, mas antes por não ser de lhe
dar preferência em função da medida da pena. Em momento algum do aresto
recorrido se afirma que a suspensão da execução da pena de prisão só não foi
aplicada porque a pena concreta é superior a 3 anos.
Nesta medida, e pelas razões constantes do Despacho de fls. 583 e ss., não se
tomará conhecimento da questão reportada aos artigos 50° e 70° do Código Penal.
B)
Apreciação da questão reportada aos
artigos 374°, n° 2, 379°, n° 1, alínea c), 410°, n° 1,
e 423°, n° 5, do Código de Processo Penal
7. O recorrente pretende, também, submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional as normas dos artigos 374°, n° 2, 379°, n° 1, alínea c), 410°, n°
1, e 423°, n° 5, do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido
segundo o qual “o verdadeiro julgamento é o efectuado na primeira instância,
onde os princípios da imediação e da oralidade têm toda a pertinência, ou seja,
no sentido de que o julgamento do tribunal da relação sobre a matéria de facto
não é um julgamento verdadeiro e de que nele não vigoram, ou quanto a ele não se
aplicam inteiramente, as regras ou princípios da imediação e da oralidade”.
Quanto a esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça considerou o seguinte:
Suscita, depois, o recorrente a seguinte questão de constitucionalidade, a
partir de uma afirmação do acórdão recorrido:
As normas dos art.ºs 374° nº 2 e 379° n° 1 al. c) do CPP (mas ainda todo o
próprio regime dos recursos – nº 1 do art. 410.º e nº 5 do art. 423 do CPP) são
inconstitucionais por violação do direito ao recurso (art. 32° nº 1 da CRP),
quando restritivamente interpretadas no sentido de que o verdadeiro julgamento é
o efectuado na primeira instância, onde os princípios da imediação e da
oralidade têm toda a pertinência”, ou seja, no sentido de que o julgamento do
Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não é um julgamento verdadeiro e de
que nele não vigoram, ou quando a ele não se aplicam, “inteiramente” as regras
ou princípios da imediação e da oralidade (conclusão V).
Deve-se começar por notar que o segmento final desta conclusão da motivação do
recorrente (a partir de “ou seja”) é abusiva, na medida que o segmento inicial
que retoma uma proposição do acórdão recorrido, mas distorce-o num sentido que
não contido (explicita ou implicitamente) na expressão usada.
O que a decisão recorrida disse (e quis dizer) é que o julgamento é efectuado na
1.ª Instância: esse é o verdadeiro julgamento da causa, em que imperam os
princípios da imediação e da oralidade e são produzidas todas as provas e as
testemunhas, o arguido e o ofendido são ouvidos em pessoa.
O recurso para a Relação, mesmo em matéria de facto, não constitui um novo
julgamento em que toda a prova documentada (ou todas as questões abordadas na
decisão da 1.ª Instância) é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não
tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e
não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente
assente (ou tornaria a decidir as questões suscitadas).
Antes se deve entender que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a
despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente
indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de
prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente
indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria
sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com
que devia ter sido aplicada.
O Tribunal Superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente
indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela
verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração
ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de
direito).
Assim, o julgamento em 2.ª Instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão
só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da
causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da
imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da
oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas a admitidas
alegações escritas).
Este o entendimento presente na afirmação do acórdão recorrido que constitui um
dado adquirido no estádio actual de evolução do processo penal, entre nós, e que
não enferma de nenhum pecado constitucional.
Como vem resulta do seu teor nessa parte:
«Como já expôs o Supremo Tribunal de Justiça, a fundamentação da sentença não
tem de ser uma espécie de “assentada” em que o tribunal reproduza os depoimentos
dos testemunhos ouvidos, ainda que de forma sintética. O exame crítico das
provas deve ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que
permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-mental que
serviu de suporte ao respectivo conteúdo (STJ 11-10-2000, Proc. n.º 2253/00-3).
O objectivo do segmento final da norma do art. 374.º n.º 2, do CPP, em que se
estatui, o dever de indicação e exame crítico das provas, é o da explicitação e
reforço do indiscutivelmente importante dever de fundamentação da decisão de
facto. Pretende-se que, de uma forma sucinta, seja tanto quanto possível
transparente e explícito o processo lógico-racional que levou a convicção do
Tribunal, formado com base no principio da livre apreciação da prova (art. 127°
do CPP) em ordem a facilitar o autocontrole da decisão pelo julgador, a
viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua
compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como
elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.
Esse dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da
fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, a referência
específica a cada um dos elementos de prova produzidos e o respectivo exame
crítico.
Trata-se apenas da indicação e exame crítico das provas “que serviram para
formar a convicção do tribunal” e não de provas que, insignificativas num ou
noutro sentido, não tiveram relevância para essa convicção (STJ: 1-10-2000,
Proc. n.º 2437/00-3).
Ou como refere Marques Ferreira (Jornadas de Direito Processual) “a
obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial
na vigência do CPP de 1929 e não poderá limitar se a uma genérica remissão para
os diversos meios de prova fundamentadores da convicção à semelhança do que
tradicionalmente vem sucedendo...
De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção
democrática ou antidemocrática que insufle um determinado sistema processual, e
no que concerne ao nosso processo penal vigente este informa, neste particular,
de nítidas características medievais e ditatoriais...
Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados
(thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que
em razão das regras da experiência comum ou de critérios lógicos constituem o
substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em
determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova
apresentados em audiência.”
Aliás, verifica-se que a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, veio introduzir ao
normativo em causa a exigência do exame critico das provas, de onde se pode
retirar que não é suficiente neste momento o referir se aquilo em que o tribunal
se baseou, mas torna‑se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da
convicção do tribunal.
No caso presente diremos que a fundamentação é demasiado, na medida em que o
pode ser com a constante invocação de inconstitucionalidade, minuciosa, no
respeitante aos vectores que levaram à convicção formada.
Aliás, temos sempre de lembrar que o verdadeiro julgamento é efectuado na lª
instância, onde os princípios da imediação e da oralidade têm toda a
pertinência.»
Ora, interpretando o texto do aresto impugnado, verifica-se que a ratio
decidendi do acórdão consiste na dimensão normativa segundo a qual o recurso em
matéria de facto decidido pelo Tribunal da Relação implica uma reapreciação da
matéria de facto, dentro dos limites inerentes a um recurso, no qual têm
aplicação os princípios da imediação e da oralidade.
Afigura-se evidente (e o recorrente, de resto, não nega), que o “julgamento” a
efectuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de
impugnação em causa, isto é, o recurso (nomeadamente, só são apreciadas as
questões suscitadas pelo recorrente).
Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o
Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia
implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o
julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de
“duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal
solução e, de resto, o recorrente não a sustenta.
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o julgamento do recurso pelo
Tribunal da Relação é “um julgamento verdadeiro” (de um recurso) e que nesse
julgamento têm aplicação os princípios da imediação e da oralidade, aplicação
que se encontra condicionada à natureza do meio impugnatório (trata-se,
repete-se de um recurso), mas que, dentro desse condicionalismo, é plena. Não se
fundamenta, pois, a decisão recorrida, numa qualquer dimensão normativa que
restrinja a aplicação dos princípios da imediação e da oralidade, para lá das
restrições incontornavelmente decorrentes da natureza da fase processual a que o
recorrente se reporta. Tal dimensão normativa não viola, pois, qualquer
princípio constitucional. Aliás, a Constituição refere o direito de recurso e
não o direito a uma repetição do julgamento produzido na primeira instância.
Improcede, portanto, a questão de constitucionalidade suscitada.
C)
Reclamação de fls. 617 e 618
8. O recorrente afirma que devia ter sido convidado a apresentar
“detalhadamente as razões que fundamentam” o pedido de suspensão da instância
por si apresentado, invocando o artigo 266°, n° 1, do Código de Processo Civil,
que consagra o princípio da cooperação.
O recorrente interpreta o Despacho de fls. 614 no sentido de nele se ter
concluído que não foi apresentada fundamentação para o pedido de suspensão da
instância.
Ora, o que se entendeu no Despacho reclamado foi que o fundamento apresentado
pelo recorrente não justifica a suspensão da instância. Na verdade, o recorrente
apresentou o fundamento da sua pretensão. No entanto, esse fundamento, na
perspectiva do Tribunal, não permite a suspensão da instância.
No mesmo sentido, o recorrente apresentou um fundamento na presente reclamação.
Porém, tal fundamento afigura-se manifestamente improcedente.
Não havia, pois, que proferir qualquer despacho de aperfeiçoamento. Se o
recorrente tinha qualquer outro fundamento para apresentar, então sobre si
impendia o ónus de o indicar no requerimento que juntou aos autos.
O princípio da cooperação não determina que, em face de um requerimento
apresentado pelo sujeito processual, no qual é deduzida uma pretensão e
apresentado um fundamento, o tribunal se assegure sempre que o recorrente
mencionou tudo o que pretendia mencionar.
De resto, a presente reclamação revela uma utilização dos mecanismos processuais
que só não é considerada má fé por decorrer de uma deficiente estratégia
processual e por não se repercutir no andamento do processo.
Improcede, portanto, a reclamação.
III
Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento das questões relativamente às quais foram suscitadas
as questões prévias constantes do Despacho de fls. 583 e ss.;
b) Não julgar inconstitucional a dimensão normativa dos artigos 374°,
n° 2, 379°, n° 1, alínea c), 410°, n° 1, e 423°, n° 5, do Código de Processo
Penal, confirmando a decisão recorrida;
c) Indeferir a reclamação de fls. 617 e 618, confirmando o Despacho de fls.
614.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UCs.
Lisboa, 18 de Janeiro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos