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Processo n.º 635/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, A. propôs acção
administrativa especial de pretensão conexa com actos administrativos contra a
Secretária de Estado da Indústria, Comércio e Serviços e contra os
contra-interessados particulares B. e outros.
O autor pedia, em síntese, a anulação do despacho n.º
249/SEICS/2004, proferido em 4 de Março de 2004 por aquela Secretária de Estado
(publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Abril de 2004, sob o n.º
7244/2004), e a consequente revogação da lista de transição do pessoal do quadro
da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, na parte que dizia respeito à
carreira de inspector técnico, bem como a integração do autor na carreira de
inspecção e na categoria de inspector técnico especialista principal.
Em 11 de Maio de 2005, foi proferido acórdão que julgou tal acção
parcialmente procedente e condenou a entidade demandada a proceder ao
reposicionamento dos funcionários. Nesse acórdão, foi recusada, por
inconstitucionalidade, a aplicação das normas constantes do artigo 8º, n.º 3, em
conjugação com o artigo 10º, n.º 2, ambas do Decreto Regulamentar n.º 48/2002,
de 26 de Novembro, e o artigo 9º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 112/2001, de 6 de
Abril, “por violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 59º e
13º da Constituição da República Portuguesa”.
Pode ler-se no referido acórdão na parte que agora importa
considerar:
“[...]
O Decreto-Lei n.º 112/01, de 06/04, procedeu à re[e]struturação das carreiras
dos funcionários ligados ao exercício de funções de inspecção ou fiscalização,
tendo criado três carreiras com diferentes requisitos habilitacionais e
definindo regras, designadamente, de intercomunicabilidade de carreiras e de
transição para as novas carreiras.
Decorre do disposto nos artigo[s] 9.º, n.º 3 e 16.º do D.L. 112/01, em
conjugação com o disposto nos artigos 8.º, n.º 3 do D. Regulamentar n.º 48/2002,
de 26/11, que os subinspectores passaram a integrar, com efeitos reportados a 01
de Julho de 2000, a carreira de Inspecção Técnica, com a categoria de Inspector
Técnico Principal, passando à frente dos então inspectores de 2.ª classe, cuja
transição ao abrigo do disposto no art. 10.º e 12.º do D.R. n.º 48/2002, os
posicionou, em 01 de Julho de 2000, na categoria de Inspectores Técnicos, não
existindo prevista na lei, quanto a estes funcionários, qualquer regra especial
de transição.
Decorre dos referidos preceitos legais que da sua aplicação resulta, de facto,
uma situação de inversão hierárquica.
Importa, agora, porém, apurar se tal situação assenta numa justificação que
torne aceitável o resultado verificado ou não, isto é, se a inversão das
posições relativas detidas pelos funcionários à data da publicação de tais
diplomas legais violam o princípio da coerência e da equidade que presidem ao
sistema de carreiras da função pública.
Conforme é entendimento doutrinal e jurisprudencial pacífico a não inversão das
posições relativas de funcionários ou agentes por mero efeito da reestruturação
de carreiras constitui um princípio geral que é corolário do princípio da
igualdade dos cidadãos perante a lei, consagrado, em geral, no artigo 13.º da
CRP, e, no domínio das relações laborais, no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da
CRP. Este princípio, como limite à discricionariedade legislativa, não exige o
tratamento igual de todas as situações, mas, antes, implica que sejam tratados
igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os
que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas
discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque carecidas de fundamento
material bastante. O princípio da igualdade não proíbe que se estabeleçam
distinções, mas sim, distinções desprovidas de justificação objectiva e
racional.
[…]
À luz do aludido princípio da não inversão das posições relativas de
funcionários ou agentes por mero efeito da reestruturação de carreiras, não
poderá admitir-se que funcionários de categoria inferior passem a integrar
categoria superior da mesma carreira onde funcionários de categoria superior
sejam colocados em categoria inferior à daqueles outros, apenas por se ter
previsto quanto a estes uma regra especial de transição que permite a
intercomunicabilidade de carreiras, sem que tal transição tenha qualquer
justificação, sequer ao nível dos requisitos habilitacionais exigidos.
Na situação dos autos, entendemos que se está perante uma situação em que aquele
princípio da inversão das posições relativas foi violado, pois como resulta da
matéria de facto apurada, o Autor, que detinha a categoria de inspector de 2.ª
classe foi ultrapassado, com referência a 01 de Julho de 2000, por um conjunto
de funcionários que eram apenas subinspectores, isto é, situados dois níveis
abaixo na carreira e que, por força das normas legais supra referidas, lhe
passaram à frente, tendo sido colocados na categoria de Inspectores Técnicos
Principais ao passo que o Autor foi colocado como Inspector Técnico, isto é, um
nível abaixo daqueles, ficando assim a auferir salário inferior aos referidos
funcionários que se encontravam situados dois níveis abaixo na carreira, dado
passarem a ser remunerados pelo escalão 2 – índice 480, enquanto o A é
remunerado pelo escalão 1 – índice 440.
A este propósito importa chamar á colação o Acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 180/99, de 10 de Março […].
[…]
O artigo 204º da CRP impõe que os tribunais, nas suas decisões, não apliquem
normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela
consagrados.
O disposto nos artigos 9.º, n.º 3 do DL 112/01 e 8.º n.º 3 do D.R. n.º 48/2002,
pelas razões supra referidas, violam o disposto no art. 13.º e 59.º da CRP, o
que inquina tais normas de inconstitucionalidade material, afectando,
consequentemente, a validade do despacho impugnado, que, por isso, nesta parte,
deve ser anulado por carecer de base legal.
[...]
Entendemos igualmente que a apontada inconstitucionalidade material dos artigos
supra referidos não origina que o Autor tenha direito a ser posicionado na
categoria de Inspector Técnico Especialista Principal.
Na verdade, a inconstitucionalidade reside em, por via da revisão das carreiras,
a lei ter permitido que os subinspectores tivessem, sem razão justificativa,
juridicamente válida, ultrapassado quem se encontrava em degrau superior,
incluindo o aqui Autor (sendo este o vício que cumpre eliminar) e não permitir
ao aqui Autor que, com fundamento numa ilegalidade, seja, sem qualquer outra
razão que o justifique, promovido àquela categoria.
Assim, do apontado vício de inconstitucionalidade material apenas se segue a
condenação da Administração Pública a operar o reposicionamento dos
funcionários, levando em consideração aquela inconstitucionalidade, ou seja, a
posicionar os funcionários, como o aqui Autor como se tais normas não
existissem, designadamente, em termos salariais.
[...].”.
2. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional
pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Braga, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro, para apreciação da inconstitucionalidade das normas
constantes do artigo 8º, n.º 3, em conjugação com o artigo 10º, n.º 2, ambas do
Decreto Regulamentar n.º 48/2002, de 26 de Novembro, e o artigo 9º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 112/2001, de 6 de Abril.
O recurso foi admitido por despacho de 29 de Junho de 2005.
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou
alegações, que concluiu do seguinte modo:
“1 - As normas constantes do artigo 8°, n.º 3, em conjugação com o artigo 10°,
n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 48/02, de 26 de Novembro, e do artigo 9º, n.º
3, do Decreto-Lei n.º 112/01, de 6 de Abril, ao implicarem que – no âmbito da
reestruturação de carreiras dos funcionários ligados ao exercício de funções de
inspecção ou fiscalização – ocorra uma inversão das posições relativas detidas
pelos funcionários à data da publicação de tais diplomas, violadora do princípio
da coerência e equidade, por desprovida de fundamento material adequado, com
reflexos no escalão remuneratório respectivo, violam os princípios
constitucionais constantes dos artigos 59° e 13° da Constituição da República
Portuguesa.
2 - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante
da decisão recorrida.”.
Por seu turno, o recorrido A. concluiu as suas alegações, dizendo:
“A) O ora recorrido, subscreve a conclusão 1 das alegações do Ministério Público
na qual defende que «As normas constantes do artigo 8°, n.º 3, em conjugação com
o artigo 10°, n.º 2, do Decreto Regulamentar n.º 48/02, de 26 de Novembro, e do
artigo 9°, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 112/01, de 6 de Abril, ao implicarem que –
no âmbito da reestruturação de carreiras dos funcionários ligados ao exercício
de funções de inspecção ou fiscalização – ocorra uma inversão das posições
relativas detidas pelos funcionários à data da publicação de tais diplomas,
violadora do princípio da coerência e equidade, por desprovida de fundamento
material adequado, com reflexos no escalão remuneratório respectivo, violam os
princípios constitucionais constantes dos artigos 59° e 13° da Constituição da
República Portuguesa».
B) Bem como o princípio da protecção da confiança na medida em que os
funcionários têm o direito de confiar que a Administração e que o legislador não
os prejudique[m] arbitrariamente.
C) Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante
da decisão recorrida.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da
conformidade constitucional das normas constantes do artigo 8º, n.º 3, em
conjugação com o artigo 10º, n.º 2, ambas do Decreto Regulamentar n.º 48/2002,
de 26 de Novembro, e o artigo 9º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 112/2001, de 6 de
Abril, que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga considerou
inconstitucionais, por violação dos artigos 59º e 13º da Constituição e que, nos
termos do artigo 204º da Constituição, se recusou a aplicar no julgamento da
causa que lhe havia sido submetida.
O Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar
sobre a questão de constitucionalidade suscitada neste processo. Fê-lo no
Acórdão n.º 642/2005, da 3ª Secção, proferido em 16 de Novembro de 2005
(disponível em www.tribunalconstitucional.pt), num recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade, a propósito de situação em tudo semelhante à
que se discute nos presentes autos.
Decidiu-se no mencionado Acórdão julgar “inconstitucional, por
violação do artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário do
princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, a norma resultante da
conjugação das normas ínsitas no n.º 3 do artigo 8º e do n.º [2 do artigo] 10º,
um e outro do Decreto Regulamentar n.º 48/2002, e da alínea b) do n.º 3 do
artigo 9º do Decreto-Lei n.º 112/2001, na medida em que implica que, na
transição para a estrutura das carreiras de inspecção da Administração Pública,
definida neste último diploma, um inspector técnico de 2ª classe da
Inspecção-Geral das Actividades Económicas, que possua igual ou superior
antiguidade e não detenha inferiores requisitos habilitacionais, possa ser
posicionado em categoria inferior e com menor remuneração do que aquela em que
foi posicionado um sub-inspector da mesma Inspecção-Geral”.
Na fundamentação desse acórdão, depois da descrição do regime
instituído pelos diplomas em que se inserem as normas impugnadas, pode ler-se o
seguinte:
“[…]
Da matéria fáctica dada por assente na decisão impugnada – e que este Tribunal
não pode censurar – resulta que o ora recorrente, ao tempo da produção de
efeitos dos Decreto-Lei n.º 112/2001 e Decreto Regulamentar n.º 48/2002, detinha
a categoria de inspector técnico de 2ª classe, tendo sido nomeado como inspector
técnico de 1ª classe em 22 de Dezembro de 2001.
Assim, de acordo com as disposições legais acima transcritas, um funcionário na
situação do impugnante transitou, por força do mapa anexo II ao Decreto
Regulamentar n.º 48/2002, para a categoria de inspector técnico da carreira de
inspecção e, a partir de 22 de Dezembro de 2001, para a categoria de inspector
técnico principal, sendo que, um sub-inspector transitaria para a categoria de
inspector-adjunto especialista da mesma carreira.
Simplesmente, em face da possibilidade conferida pelo artº 9º do Decreto-Lei n.º
112/2001, tornou-se possível aos inspectores-adjuntos especialistas com três
anos de serviço na categoria, de harmonia com o disposto no seu n.º 3,
candidatarem-se à categoria de inspectores técnicos principais, desde que, em
alternativa, fossem possuidores dos requisitos habilitacionais exigíveis,
tivessem frequentado, com aproveitamento, a formação prevista no artº 14º desse
diploma, ou tivessem obtido qualificações reconhecidas no âmbito dos sistemas
educativos ou da formação profissional, em domínios relevantes para a missão dos
serviços, sendo que, para efeitos da frequência da referida formação, o n.º 3 do
artº 8º do Decreto Regulamentar n.º 48/2002 entendeu como válido e suficiente o
concurso com prova de conhecimentos e avaliação curricular de sub-inspectores
que já detivessem curso de formação para inspector técnico de 2ª classe com,
pelo menos, três anos de serviço na respectiva categoria classificados de Muito
bom ou cinco anos com classificação mínima de Bom.
No que concerne aos então inspectores de 2ª classe da Inspecção-Geral das
Actividades Económicas (isto é, aos funcionários que detivessem tal categoria da
carreira de inspecção delineada no Decreto-Lei n.º 269-A/95), nenhuma regra
especial, à excepção das gerais contidas nos artigos 10º e 12º do Decreto
Regulamentar n.º 48/2002, foi prevista, não se podendo olvidar que, de acordo
com o mencionado Decreto-Lei n.º 269-A/95, naquela carreira, a categoria de
sub-inspector era posicionada em nível hierárquico e remuneratório (cfr., quanto
a este último, o Mapa II Anexo a esse diploma) inferior à categoria de inspector
técnico de 2ª classe.
Poderão, por isso, surgir situações em que, por virtude da transição,
sub-inspectores com menor antiguidade na carreira de inspecção do que a possuída
pelos inspectores técnicos de 2ª classe e não apresentando, relativamente a
estes, mais elevados requisitos habilitacionais, sejam posicionados, no domínio
das carreiras de inspecção da Administração Pública, em categorias mais elevadas
(e com remuneração superior) do que aquelas em que, também pela transição, foram
posicionados aqueles inspectores técnicos.
[…].”.
O Tribunal entendeu ser este o contexto em que terá de se apreciar a
compatibilidade constitucional do comando que se extrai da conjugação das normas
constantes do artigo 8º, n.º 3, e do artigo 10º, n.º 2, um e outro do Decreto
Regulamentar n.º 48/2002, e do artigo 9º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 112/2001,
“na medida – e tão só nessa medida – em que implique que, na reestruturação das
carreiras dos funcionários das carreiras de inspecção da Inspecção-Geral das
Actividades Económicas para efeitos daquele decreto-lei, possam os então
sub-inspectores, com menor antiguidade na carreira e que não detenham mais
elevados requisitos habilitacionais do que os então inspectores técnicos de 2ª
classe, ser posicionados em categorias mais elevadas do que aquela em que foram
posicionados os inspectores técnicos de 2ª classe”.
Decidiu-se então que a doutrina perfilhada no recente Acórdão deste
Tribunal n.º 323/2005 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), tirado em
plenário, era, com as devidas adaptações, aplicável ao caso sub iudicio, uma vez
que “dos normativos em apreço pode resultar, sem que se lobrigue uma razão
justificativa para tanto, que na transição para a estrutura das carreiras de
inspecção da Administração Pública estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 112/2001,
um inspector técnico de 2ª classe da Inspecção-Geral das Actividades Económicas,
com maior antiguidade na carreira e que não detenha menos requisitos
habilitacionais, possa ser posicionado em categoria hierarquicamente inferior e
a que corresponda inferior remuneração relativamente àquela em que foi
posicionado um sub-inspector daquela Inspecção-Geral”.
5. É essa doutrina que agora igualmente se adopta.
Pelos fundamentos constantes do Acórdão n.º 642/2005 – e porque
também neste caso se verifica que podem “os então sub-inspectores, com menor
antiguidade na carreira e que não detenham mais elevados requisitos
habilitacionais do que os então inspectores técnicos de 2ª classe, ser
posicionados em categorias mais elevadas do que aquela em que foram posicionados
os inspectores técnicos de 2ª classe” –, julga-se inconstitucional, por violação
do artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, enquanto corolário do
princípio da igualdade consagrado no seu artigo 13º, a norma resultante da
conjugação do artigo 8º, n.º 3, com o artigo 10º, n.º 3, um e outro do Decreto
Regulamentar n.º 48/2002, de 26 de Novembro, e o artigo 9º, n.º 3, do
Decreto-Lei n.º 112/2001, de 6 de Abril, na medida em que implica que, na
transição para a estrutura das carreiras de inspecção da Administração Pública,
definida neste último diploma, um inspector técnico de 2ª classe da
Inspecção-Geral das Actividades Económicas, que possua igual ou superior
antiguidade e não detenha inferiores requisitos habilitacionais, possa ser
posicionado em categoria inferior e com menor remuneração do que aquela em que
foi posicionado um sub-inspector da mesma Inspecção-Geral.
III
6. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao recurso.
Lisboa, 17 de Janeiro de 2006
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Artur Maurício