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Processo n.º 415/05
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
A fls. 743 foi proferida a seguinte decisão sumária:
A. recorre, com fundamento na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei 28/82 de 15
de Novembro (LTC), do acórdão proferido em 27 de Abril de 2005 no Supremo
Tribunal de Justiça. Alega que a invocada inconstitucionalidade respeita 'ao
artigo 570º do Código Civil na interpretação levada a cabo pelo Tribunal
recorrido'.
Convidada, já neste Tribunal, a precisar o sentido da norma que tem por
inconstitucional, a recorrente veio esclarecer o seguinte:
1) A inconstitucionalidade invocada respeita ao art. 570º do C. Civil, na
interpretação levada a cabo pelo Tribunal recorrido.
2) Consideram-se violados os princípios da confiança nas instituições
democráticas e da igualdade, inseridos nos art. 2 e 13° da C.R.P., uma vez que
na interpretação do Tribunal A Quo, ao instigador da prática do crime, ou seja,
o próprio exequente, é atribuído um grau de culpa exactamente igual ao do agente
provocado - a executada - quase que premiando tal ilícita actuação (por força da
choruda indemnização), quando aqueles princípios constitucionais impunham
necessariamente a atribuição de um grau de culpa ao primeiro muito superior, com
a consequente redução da indemnização!
3) Assim, na interpretação do Tribunal recorrido, é inconstitucional
atribuir-se, com base no art. 570º do C. Civil igual culpa ao lesado e lesante,
quando o primeiro provoca, determina e descontrola anormal e compreensivelmente
o segundo, como no caso concreto!
4) A recorrente suscitou as inconstitucionalidades invocadas nas suas alegações
e contra-alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto do
acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto em 2.ª instância.
O recurso não poderá, todavia, ter seguimento. Na verdade, independentemente de
saber se foi suscitada pela recorrente, de forma adequada, a questão de
inconstitucionalidade que pretende ver solucionada, verifica-se que a recorrente
não definiu a norma cuja constitucionalidade contesta, não preenchendo, por
isso, o requisito relativo ao objecto deste recurso cujo âmbito lhe cabe
definir. Na verdade, a afirmação de que 'na interpretação do Tribunal recorrido,
é inconstitucional atribuir-se, com base no artigo 570º do Código Civil igual
culpa ao lesado e lesante, quando o primeiro provoca, determina e descontrola
anormal e compreensivelmente o segundo, como no caso concreto' não representa a
enunciação de uma norma jurídica e revela que, na verdade, a recorrente pretende
sindicar a decisão recorrida enquanto tal.
Assim, ao abrigo do n. 1 do artigo 78º-A da LTC decide-se não conhecer do
objecto do recurso.
Inconformada, a recorrente reclama nos termos do artigo 78º-A n. 3 da LTC
dizendo:
1.- Por douto despacho do Exmo. Conselheiro Relator, foi a reclamante convidada
a esclarecer o sentido da norma - art. 570° do C. Civil - que tinha por
inconstitucional ('por forma a que se saiba qual o sentido da norma que não pode
ser adoptado por ser incompatível com a Constituição.'), ao que segunda
esclareceu do seguinte modo:
1) A inconstitucionalidade invocada respeita ao art. 570° do C. Civil, na
interpretação levada a cabo pelo Tribunal recorrido.
2) Consideram-se violados os princípios da confiança nas instituições
democráticas e da igualdade, inseridos nos art. 2° e 13° da C.R.P., uma vez que
na interpretação do Tribunal 'A Quo', ao instigador da prática do crime, ou
seja, o próprio exequente, é atribuído um grau de culpa exactamente igual ao do
agente provocado - a executada - quase que premiando tal ilícita actuação (por
força da choruda indemnização), quando aqueles princípios constitucionais
impunham necessariamente a atribuição de um grau de culpa ao primeiro muito
superior com a consequente redução da indemnização!
3) Assim, na interpretação do Tribunal recorrido, é inconstitucional
atribuir-se, com base no art. 570° do C. Civil igual culpa ao lesado e lesante,
quando o primeiro provoca, determina e descontrola anormal e compreensivelmente
o segundo, como no caso concreto!
4) A recorrente suscitou as inconstitucionalidades invocadas nas suas alegações
e contra-alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto do
acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, em 2.ª instância.
2.- Quando na parte final do despacho inicial se escreve 'convido o recorrente
a, em 10 dias, enunciar as normas que, em concreto, pretende impugnar',
interpretou a reclamante como sendo o corolário da motivação dessa douta
decisão, ou seja, explicitar o sentido da norma anteriormente indicada no
requerimento inicial de interposição de recurso – 570º do C. Civil e não, como
parece resultar do conteúdo da decisão sumária de que se reclama, a indicação de
qual dos dois números (1. e 2.) daquele preceito legal estaria em crise.
3.- Aliás, no início da própria decisão, o Exmo. Conselheiro Relator parece ter
a mesma interpretação da reclamante que se aludiu ao resumir o conteúdo do seu
despacho em termos de 'precisar o sentido da norma'!
4.- É certo que a reclamante poderia ter sido mais exacta e limitado ao n.º 1 do
preceito citado, a análise a suscitar, mas convenhamos que esse lapso ou se se
quiser falta de rigor, não atingirá a gravidade que mereça uma decisão tão
severa, salvo o devido e enorme respeito!
5.- Quantas vezes se enunciam indiscriminadamente preceitos supostamente
desconformes à Lei Fundamental, para a quase totalidade não ser conhecida, parte
rejeitada na pretensão e apenas um segmento ou norma resistente acabar por se
ver atingida na pretensão do recorrente!
6.- Pese embora a falta de precisão de que se penitencia, a reclamante não
indicou mais do que um Código, nem sequer, mais do que um Livro de um Código,
nem mais do que um Capítulo, nem mais do que um artigo!
7.- Imbuída da necessidade de explicitar o sentido da norma indicada que seria
desconforme à Constituição acabou por olvidar que havia dois números.
8.- Contudo, fosse pela hipótese mais fácil de preguiçosamente indicar os dois
preceitos, submetendo-se ao tradicional e descrito cerceamento por parte deste
Alto Tribunal, fosse pela indicação genérica que se produziu (no contexto
referido), cuidamos que não mais do que uma frase eventualmente jocosa, de cariz
quase paternalista, com maior ou menos mordacidade, mereceria a tal facto,
eliminando-se obviamente o n.º 2 do art. 570° por não ter absolutamente nada a
ver com o sentido da norma em questão - não se trata de simples presunção de
culpa, mas de um facto culposo do lesado que concorre para a produção de danos,
de que trata apenas o n.º 1.
9.- Em muitos casos que este Tribunal tem decidido, não é o sentido literal das
normas impugnadas que é posto em causa, mas a interpretação que delas efectua
determinado Tribunal, necessariamente através da sua decisão.
10.- Por exemplo,
a) No Ac. 279/98 (DR, II série, 13/7/98) é posta em crise a interpretação que é
dada ao n.º 3 do art. 140º do E. M. J. pela decisão e não propriamente a norma
como estava redigida;
b) No Ac. 312/05 (DR, II série de 8/8/05) é censurada a articulação das normas
411°/1 e 333°/5 do CPP, não no seu sentido literal, mas na interpretação da
decisão recorrida .
c) No Ac. 422/2005 (II Série, 22/09/05), mais uma vez se declara como
desconforme à Constituição, a interpretação de uma decisão, da conjugação dos
art. 113°/9,441°/1 e 335°/5, com o art. 56°/1 b) do C. Penal.
11.- Quando a douta decisão de que se reclama refere que a reclamante não mais
pretende do que sindicar a decisão recorrida enquanto tal, o mesmo se aplicaria
a todas quantas põe em causa as consequências vertidas para as decisões, de
interpretações desconformes à Constituição.
12.- Sem dúvida não é o n.º 1 do art. 570° do C. Civil que está em causa
enquanto interpretado no seu sentido literal - como em muitos recursos sucede.
13.- Trata-se si de verificar que, se por força do n.º 1 do 510°, cabendo ao
Tribunal determinar com base na gravidade das culpas de ambas as partes (em caso
de concorrência) a concessão, redução ou exclusão da indemnização, atribuindo o
Tribunal recorrido ao instigador da prática do crime, ou seja, o próprio
exequente, um grau de culpa exactamente igual ao do agente provocado - a
executada -, quando o primeiro provoca, determina e descontrola anormal e
compreensivelmente o segundo, como no caso concreto, a interpretação daquela
norma esteja ferida de inconstitucionalidade, por violação dos art.s 2.º e 13°
da CRP.
14.- Trata-se de uma desconformidade da interpretação da norma porquanto se
trata de modo igual situações diferentes e desproporcionadas (violação do
princípio da igualdade, 13° da CRP) e atinge-se o sentido de segurança jurídica
ínsito no princípio da confiança nas instituições democráticas (art.2 da CRP).
15.- Mau grado as deficiências do esclarecimento que resultaram na incapacidade
de transmitir com a pretendida exactidão o sentido da norma impugnada, está-se
em crer que ainda que imperfeitamente não se deixou de responder ao solicitado,
pelo que apela a reclamante a que uma menor severidade e quiçá outra visão que,
sem menoscabo da sagacidade e argúcia do Exmo Relator, permita submeter esta
questão a uma merecida análise!
Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas, deverá proceder a presente
reclamação!
Não houve resposta à reclamação.
Cumpre começar por esclarecer o seguinte: o presente recurso, interposto ao
abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC, cabe das decisões
jurisdicionais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo', esclarecendo-se, no artigo 79º-C da mesma Lei,
que o Tribunal Constitucional só pode julgar inconstitucional 'a norma que a
decisão recorrida tenha aplicado'.
Trata-se, portanto, de um recurso de feição sui generis, visto que o seu objecto
não consiste directamente na decisão recorrida, mas em norma jurídica nela
aplicada apesar da acusação de inconstitucionalidade. Ora, conforme reconhece o
recorrente, é bem certo que os preceitos legais em que se fixam determinadas
normas (em sentido substantivo) contêm uma pluralidade de sentidos, devendo o
tribunal escolher a interpretação adequada ao caso, aplicando-a às
circunstâncias concretas adquiridas no processo. Essa actividade é apenas
determinável em face do concreto recorte que a questão apresenta.
Ora, tem-se entendido que, para efeitos da interposição do recurso de
constitucionalidade, cabe ao recorrente a tarefa de enunciar o critério
normativo que o tribunal comum aplicou e que o recorrente tem por
inconstitucional. Isto é: não basta ao recorrente apontar um determinado
preceito legal aplicado na decisão recorrida; cumpre-lhe identificar o concreto
sentido da norma usado pelo tribunal recorrido e do qual este retirou a solução
a que chegou, pois só essa realidade é sindicável no presente recurso. A decisão
em si, isto é, o processo aplicativo da norma ao caso tendo em conta as
características factuais, não cabe no objecto do recurso.
No caso em apreço verifica-se que o recorrente não logra definir o objecto do
recurso, não enunciando o critério normativo impugnado, pois arranca da menção
genérica de um preceito legal – artigo 570º n.º 1 do Código Civil – sem
concretizar minimamente a norma que visa sindicar, e aponta a solução alcançada
como sendo a realidade violadora da Constituição.
A deficiência mostra-se bem reflectida no requerimento de fls. 738 quando o
recorrente afirma: 'Assim, na interpretação do Tribunal recorrido, é
inconstitucional atribuir-se, com base no art. 570º do C. Civil igual culpa ao
lesado e lesante, quando o primeiro provoca, determina e descontrola anormal e
compreensivelmente o segundo, como no caso concreto!'.
Daqui se retira que através do presente recurso o recorrente visa impugnar a
decisão jurisdicional em si mesma considerada, que tem por violadora dos
princípios constitucionais que invoca, mas não logra identificar uma norma nela
aplicada com um sentido ofensivo da Constituição. Não identifica nem define,
afinal, o critério normativo usado que seria inconstitucional.
Nestes termos, é de indeferir a reclamação, mantendo-se a decisão de não
conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 20 UC a taxa de justiça.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos