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Processo n.º 303/2005
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Pelo 15º Juízo do Tribunal Cível de Lisboa instaurou
A. (posteriormente prosseguindo como autores nos autos e na posição do primitivo
autor os habilitados B., C. e D.) contra o Banco E., acção, seguindo a forma de
processo ordinário, solicitando a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de
Esc. 4.443.992$00, acrescida de juros, sendo os já liquidados no montante de
Esc. 686.090$00.
Invocou, em síntese:-
- que ele, autor, era portador de seis cheques sacados
por F. da uma sua conta existente numa agência do réu, cheques esses que,
apresentados a pagamento, foram devolvidos, seja umas vezes pela menção de não
terem provisão, seja outras pela menção de terem sido dados como extraviados, só
um deles contendo unicamente esta última menção;
- que, desde 7 de Junho de 1993, tinha sido rescindida
com o sacador a rescisão da convenção de cheque, o que foi comunicado ao réu
pelo Banco de Portugal nessa data, tendo os módulos dos seis cheques em causa
sido entregues pelo réu ao sacador depois dela, em Novembro de 1993 e Fevereiro
de 1994;
- que tais cheques foram depositados pelo autor numa sua
conta existente no réu, e, como neles se apuseram as indicadas menções, os
montantes por eles titulados vieram a ser-lhe debitados;
- que o réu é, nos termos do artº 9º do Decreto-Lei nº
454/91, de 28 de Dezembro, responsável pelo pagamento das quantias tituladas
pelos cheques.
Tendo, por sentença proferida em 11 de Novembro de 2002,
sido a acção julgada improcedente, apelaram os habilitados autores para o
Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 22 de Abril de 2004, julgou
procedente o recurso, julgando a acção procedente e, em consequência, condenando
o réu no pedido.
Inconformado com o assim decidido pediu o réu revista
para o Supremo Tribunal de Justiça.
Na alegação adrede produzida, para o que ora releva,
surpreendem-se as seguintes asserções:-
“(...)
Afigura-se-nos, por outro lado que, tal como sustentamos na contestação da acção
(Art.º 8º) a referida disposição legal (Art.º 9º, n.º 11, alínea c) do Dec. Lei
451/91 é inconstitucional por violação do Art.º 8º n.º 2 da Constituição da
República e das disposições dos Art.º 3º, 4º, 12º, 15º § 3º e 25º da L.U.
relativa ao cheque e ainda dos princípios constitucionais da proporcionalidade e
da justiça.
Com efeito, como sustenta e conclui o Conselheiro Armindo Ribeiro Mendes no seu
voto de vencido no Ac[ó]rdão do Tribunal Constitucional de 10/10/91 (BMJ
410/1991, a pág. 57 e sgtes.) ‘... não procede o argumento de que a conformidade
com a Lei Uniforme está salvaguardada só porque a obrigação de pagar os cheques
tem origem na lei e não num acto de vontade do banqueiro, ainda que autorizado
pela nova regulamentação. De facto a nova regulamentação abre uma via directa de
acção judicial do portador do cheque contra o banqueiro sacado, ao arrepio do
que resulta da Lei Uniforme, tal como esta é uniformemente interpretada pelo
Supremo Tribunal de Justiça’.
E acrescenta que ‘contraria frontalmente a Lei Uniforme a legislação interna
posterior que venha em Portugal - sem denúncia prévia da Convenção de Genebra
impor a um banco sacado o pagamento de cheques ao respectivo portador, quando a
conta do sacador não disponha de provisão, permitindo que, em caso de recusa de
pagamento, esse portador exerça directamente contra o Banco sacado os seus
direitos’
E, como no mesmo voto se refere, solução semelhante é sustentada pelo
constitucionalista Prof. Jorge Miranda no parecer para a Associação de Bancos.
Particularmente no que se refere à disposição do Art.º 9º n.º 1 do Dec. Lei
454/91 sustenta o conselheiro Armindo Ribeiro Mendes que ‘Não parece justo nem
proporcionado impor este dever sem limites para beneficiar um portador a quem o
Decreto Lei não impõe o ónus de demonstrar os prejuízos efectivamente sofridos,
permitindo que este se escude atrás de uma pura relação cambiária, do mesmo
passo que parece despenalizar o portador do cheque, visto que o titular acaba
por ser pago, apesar da falta de provisão (Art.º 9º n.º 1 [a],. a))’. Citando a
opinião de Jorge Miranda no aludido Parecer - embora quanto a outra norma da lei
de autorização legislativa - dir-se-á que ‘não é justo tentar manter a confiança
de terceiros de boa fé no cheque como t[í]tulo de crédito à custa de encargos
desproporcionados sobre as instituições bancárias. E tal injustiça e
desproporção aumentam se a confiança que se procura tutelar é a de um portador
de má fé, que detém o cheque sem que exista uma relação subjacente l[í]cita, mas
relativamente ao qual não se permite que o banco se defend[a] invocando a
inexistência de válida relação subjacente entre sacador e portador’.
Melhor não saberíamos dizer pelo que se deixam à consideração de V. Ex[ª]s as
transcrições feitas, particularmente o último parágrafo transcrito que assenta
perfeitamente no caso em apreço.
III
De todo o exposto inferiremos as seguintes
CONCLUSÕES:
(...)
f) Por outro lado, como se sustenta na Contestação, considera-se a norma do
Art.º 9º n.º 1 alínea c) do dec.Lei 454/91 inconstitucional, por violadora das
disposições do Art.º 8º n.º 2 da Constituição da República e dos art.ºs 3º, 4º,
12º, 15º §3º e 25º da Lei Uniforme relativa ao cheque e dos princípios
constitucionais da proporcionalidade e da justiça.
g) Com efeito a citada disposição legal permite uma acção judicial directa do
portador do cheque contra o banqueiro que contraria abertamente a Lei Uniforme
sobre o cheque no seu conjunto.
h) E não é justo nem proporcional impor aos Bancos uma obrigação sem qualquer
limitação para beneficiar um portador do cheque que nem sequer tem que provar
que prejuízos sofreu podendo estar de má fé e que é totalmente despenalizado.
(...)
j) Acresce que deve considerar-se inconstitucional a disposição aplicada no caso
em apreço (Art.º 9º n.º 1, alínea c) do Dec. Lei 454/91 por violadora do Art.º
8º n.º 2 da Constituição da República, dos Art.º [ ] 4º, 12º, 15º § 3º e 25º da
Lei Uniforme sobre o cheque e dos princípios constitucionais da
proporcionalidade e da justiça
(...)”
Tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 2 de
Dezembro de 2004, negado a revista, solicitou o réu o respectivo esclarecimento,
no sentido de ser explicitado se a conclusão nele alcançada de inexistência de
inconstitucionalidade da norma constante do artº 9º, nº 2, alínea c), do
Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, também abrangia aquele invocado vício
por violação dos artigos 4º, 5º, 12º, 15º, § 3º, e 25º da Lei Uniforme sobre o
Cheque, o que se traduziria “em inconstitucionalidade, por força do Art.º 8º nº
2 da Constituição”.
No acórdão de 10 de Fevereiro de 2005 daquele Alto
Tribunal foi dito que, embora o acórdão aclarando não se tivesse pronunciado
“expressamente sobre a inconstitucionalidade que decorrerá da invocada violação
das normas dos arts. 8º nº 2 da CRP e 3º. 4º. 12º, 15º § 3º e 25º da LUCH”, o
sentido da decisão só poderia “ser o de abranger, também, esse pretenso motivo
de inconstitucionalidade”.
Notificado deste último aresto, fez o réu juntar aos
autos requerimento com o seguinte teor:-
“O BANCO E., recorrente nos autos acima referenciados, vem ao abrigo
do disposto na alínea b) do nº 1 do Art.º 70º da Lei 28/82 de 15/11, interpor
recurso para o Tribunal Constitucional do douto Acórdão de fls…
O recorrente considera que foram violados os princípios
constitucionais da proporcionalidade e da justiça e ainda o Art.º 8º nº 2 da
Constituição da República.
E porque está em tempo e tem legitimidade requer a V. Exª se digne
admitir-lhe o recurso”.
Admitido o recurso por despacho lavrado em 14 de Março
de 2005 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, e tendo os
autos sido remetidos ao Tribunal Constitucional em 14 de Abril seguinte, neste
último órgão de administração de justiça o relator proferiu em 3 de Maio de 2005
o seguinte despacho:-
“O requerimento de interposição de recurso para este Tribunal (fls.
248) não obedece, de todo em todo, aos requisitos ínsitos nos números 1 e 2 do
artº 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, além de não identificar em
concreto a decisão judicial tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça que se
pretende impugnar.
Deveria, por isso, cobrar aplicação, no Alto Tribunal a quo, o que
se prescreve no nº 5 do indicado artigo.
Como, porém, isso não foi levado a efeito, nos termos do nº 6, ainda
daquele artigo, convido o impugnante a, de forma cabal, fornecer as indicações
em falta e a que acima se fez alusão”.
Na sequência do convite formulado, o réu veio dizer:-
“O BANCO E., recorrente nos autos acima referenciados, vem, em
obediência ao despacho de V. Ex.ª de fls. 256, prestar as seguintes indicações
em falta.
A decisão tomada pelo Supremo Tribunal de Justiça que se pretende
impugnar é a de considerar o preceito legal do Artº 9º nº 1 do Dec. Lei 454/91
de 28/12 não violador de qualquer norma ou princípio constitucional.
O requerimento de interposição de recurso é interposto ao abrigo da
alínea b) do Artº 70º da Lei nº 28/82 de 15/11.
A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal
aprecie é a do citado Artº 9º nº 1, alínea c) do Dec. Lei 454/91 de 28/12.
Os princípios constitucionais que se consideram violados são os
princípios da proporcionalidade e da justiça.
O recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade desde logo
na petição inicial da acção e também no recurso apresentado no Supremo Tribunal
de Justiça”.
Em de Maio de 2005 o relator proferiu o seguinte
despacho:-
“ Tendo em atenção que se poderá considerar que com o
acórdão tirado em 10 de Fevereiro de 2005 pelo Supremo Tribunal de Justiça se
aclarou o precedente aresto de 2 de Dezembro de 2004, consequentemente vindo o
primeiro a ser entendido como complemento e parte integrante do segundo, de
acordo com o prescrito no último período do nº 2 do artº 670º, em conjugação com
o nº 1 do artº 716º, este como aquele do Código de Processo Civil, entende-se
que é impugnado o mencionado acórdão de 2 de Dezembro de 2004.
***
No requerimento apresentado pelo impugnante na sequência do despacho de
3 de Maio de 2005, já não faz o mesmo alusão, como fazia aquando do inicial
requerimento de interposição de recurso e sustentou na alegação do recurso de
revista, à violação, por banda do preceito constante da alínea c) do nº 1 do
artº 9º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, do artigo 8º, nº 2 da
Constituição, por ofensa dos artigos 3º, 4º, 12º, 15º, § 3º, e 25º da Lei
Uniforme Relativa ao Cheque.
Compreende-se, aliás, que assim seja, tendo em conta que o recurso se
ancora na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e
não na alínea i) dos mesmos número e artigo.
É que, como era acolhido pela jurisprudência maioritária da então 2ª
Secção deste Tribunal - e agora, a partir da Revisão Constitucional operada pela
Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, e das alterações inseridas na Lei nº
28/82 pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, ao se preverem modalidades de
controlo da ilegalidade, isso torna-se mais nítido -, não podia lançar-se mão de
um recurso esteado na aludida alínea b) para aferir da inconstitucionalidade de
um dado normativo ordinário por alegada ofensa de um instrumento de direito
internacional (cfr., para maiores desenvolvimentos, os «pontos» 2 a 2.3.4. do
Acórdão nº 371/91, publicado na II Série do Diário da República de 10 de
Dezembro de 1991 e José Manuel Cardoso da Costa in A Jurisdição Constitucional
em Portugal, Separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 2ª edição,
1991, 26 e 27 e notas 27 e 27a), pois que, para se aquilatar daquele vício de
desconformidade com a Lei Fundamental em sede de controlo concreto - vício esse
não directo (no que igualmente havia acordo com a então 1ª Secção deste órgão de
administração de justiça) -, carecia o Tribunal de competência.
É esta posição que agora se reitera.
Neste contexto, não irá o Tribunal debruçar-se, no vertente caso, sobre
a primitivamente invocada inconstitucionalidade do preceito acima aludido por
desarmonia com o nº 2 do artº 8º do Diploma Básico, advinda da violação de
certos preceitos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
Com esta limitação, notifiquem-se as «partes» para a produção de
alegações.”.
Rematou o recorrente a alegação por si apresentada com
as seguintes «conclusões»:-
“a) A norma legal em causa (Artº 9°, n° 1, al. c) do Dec. Lei 454/91 de 28/12)
impõe às instituições de crédito uma obrigação de pagamento de cheques que não
tenham provisão sem limitação de valor;
b) Se se entender que a[ ] responsabilidade imposta neste caso às instituições
de crédito é uma responsabilidade por facto ilícito, então essa responsabilidade
deveria ter como limite o montante do dano efectivo e não o do valor do cheque;
c) E se se considerar que se trata de uma responsabilidade por risco sempre se
deveria estabelecer um limite máximo de responsabilidade como é norma nesse tipo
de responsabilidade, devendo atender-se ao facto que quem suporta o dano não é
quem directamente pratica o acto causador desse dano;
d) A obrigação de pagamento imposta pela norma em causa é pois violadora do
princípio constitucional da proporcionalidade da justiça, quer porque não se
afigura ser o meio mais adequado para o fim visado de garantir a confiança no
uso do cheque, quer porque tal fim poderia ser atingido por meio menos oneroso;
e) Há com efeito que considerar, para além do que se disse nas anteriores
alíneas b) e c), que não estamos perante um risco próprio da actividade
bancária, e as instituições de crédito são quem menos contribui para o risco da
utilização daquele meio de pagamento;
f) Também pelo que se deixou dito, o não estabelecimento de um limite ao valor a
pagar sem a garantia de relação com o prejuízo, podendo ultrapassar largamente
(em milhares de euros) esse mesmo prejuízo ou podendo até nem haver prejuízo (p.
ex. no caso de conluio entre o portador e o beneficiário do cheque) é
seguramente uma imposição legal excessiva e desproporcionada”.
Foi junto aos autos, pelo recorrente, um «parecer»
jurídico.
Por seu turno, os habilitados ora recorridos concluíram
a sua alegação do seguinte jeito:-
“5.1. Questão Prévia:
5.1.1. O Recorrente deve alegar nas instâncias a inconstitucionalidade normativa
que pretende ver apreciada.
5.1.2. Essa alegação deve ser efectuada de forma adequada e precisa de molde a
permitir que as instâncias sobre ela se pronunciem.
5.1.3. A invocação de um qualquer vício de inconstitucionalidade por referência
a uma disposição legal sem se identificar a dimensão normativa que entende
inconstitucional, não é adequada a permitir que as instâncias se pronunciem
sobre o suposto vício.
5.1.4. Assim, seguindo a orientação da jurisprudência firmada deste Tribunal
Superior, é manifesto que, não pode conhecer-se do objecto do recurso por falta
de um dos seus pressupostos processuais em violação do disposto na alínea b) do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
5.2. A questão do limite de valor:
5.2.1. A convenção de uso de cheque resulta da adesão do particular a fórmulas
predefinidas e estabelecidas pelos bancos.
5.2.2. Utilizando estes poderes, os bancos tem vindo a restringir a certos
particulares e empresas os modos de utilização do cheque de acordo com juízos de
valor que fazem desses clientes.
5.2.3. No âmbito destes poderes, podem os bancos limitar aos clientes o valor
dos cheques por estes a emitir.
5.2.4. Para tanto, basta fornecer aos clientes impressos de cheques onde conste
essa limitação de valor dos cheques a emitir.
5.2.5. A questão da inexistência de limite de valor da indemnização por
referência ao valor do cheque emitido é, pois, uma questão técnica -
administrativa e não uma questão jurídica - constitucional.
5.3. A Questão do dano efectivo:
5.3.1. O dispositivo legal dispositivo legal inserto na alínea c) do n1 do
Arto.9°. do Decreto-lei 454/91 de 28/12 apenas faz presumir a equivalência do
valor dano ao valor do cheque que foi emitido em impresso ilegalmente fornecido
pelo banco.
5.3.2. Do dito dispositivo legal, não resulta que o banco está impedido de
alegar e provar que tal não corresponde á realidade ocorrida.
5.3.3. Para corrigir, qualquer deficiência ou abuso sempre os bancos podem
socorrer-se das cláusulas gerais do sistema, como o enriquecimento sem causa ou
o abuso de direito.
5.4. DA COLISÃO DE DIREITOS
5.4.1. O princípio da proporcionalidade é um[ ] princípio orientador da
actividade administrativa e regulamentadora do estado.
5.4.2. Sempre que este princípio colida com princípios fundamentais, como os
princípios da igualdade e da defesa do consumidor, deve ceder para permitir a
realização destes últimos.
5.4.3. Sempre a prevalência destes princípios in casu faria claudicar as
pretensas inconstitucionalidades arguidas
5.5. Nestes termos, deve ser mantido o douto Acórdão em recurso indeferindo-se o
conhecimento das questões por falta de pressupostos processuais ou, caso assim
se não entenda, por manifesta falta de fundamento.”
Ouvido sobre a questão prévia, veio o recorrente dizer
que sustentou, na revista para o Supremo Tribunal de Justiça, a questão de saber
se era ou não inconstitucional a norma ora em causa, o que fez de “forma bem
clara e funcional”.
Cumpre decidir.
2. Iniciar-se-á a análise referente ao presente pleito
de (in)constitucionalidade pela apreciação da «questão prévia» dos que ora
figuram como recorridos.
Segundo os mesmos, o recorrente nada teria referido, a
respeito da questão de (in)constitucionalidade até à formulação da alegação do
recurso de revista e, no que a esta diz respeito, apenas teria dito que se
deveria considerar inconstitucional a disposição da alínea c) do nº 1 do artº 9º
do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, por ser ela violadora do nº 2 do
artº 8º da Constituição (“questão arredada da presente discussão por douto
despacho liminar”), dos artigos 4º, 12º, 15º, § 3º, e 25º da Lei Uniforme
Relativa ao Cheque, e dos princípios da proporcionalidade e da justiça, sendo
que, na sequência do citado despacho, o recorrente apenas considerou violados
estes princípios, “não esclarecendo em part[e] alguma, qual dimensão destes
princípios considera violados”.
E, continuam os recorridos, não teria o impugnante
suscitado “de forma adequada e funcional a suposta inconstitucionalidade que
pretende ver agora apreciada pelo Tribunal Constitucional”.
Ora, quanto à «questão prévia» de que se cura,
entende-se que aos recorridos não assiste razão.
Efectivamente, na alegação produzida na revista, como
deflui do relato supra efectuado, o recorrente propugnou por se dever considerar
inconstitucional o normativo precipitado na alínea c) do nº 1 do artº 9º do
Decreto-Lei nº 454/91, sendo que, de todo o modo, na «conclusão» h) daquela peça
processual, não deixou de aludir à não justeza e não proporcionalidade da medida
jurídica resultante da norma em apreço (cfr., a este propósito a parte do «teor»
da indicada alegação, também acima extractada, designadamente a referência ao
voto de vencido aposto no Acórdão deste Tribunal nº 371/91).
Pode, desta forma (e, mais concretamente, ao mencionar o
indicado voto de vencido), dizer-se que o recorrido não deixou de impostar a
questão da desconformidade constitucional reportada à violação do princípio da
proporcionalidade.
Estas considerações, claramente, são mais dirigidas a
quem possa sufragar posição (embora ainda mais extremada) semelhante à que fez
vencimento no Acórdão nº 139/2003, deste Tribunal, sendo certo que, no caso, a
questão se não coloca em moldes idênticos.
2.1. Sustentam ainda os habilitados recorridos que não
foi, pelo recorrente, expressada a dimensão normativa do preceito constante da
alínea c) do nº 1 do artº 9º do Decreto-Lei nº 454/91.
Ora, o que é certo é que dessa norma resulta,
inequivocamente, a obrigação, impendente sobre as instituições de crédito, de
pagar os montantes inscritos nos módulos de cheques fornecidos a quem conste da
listagem a que se refere o artº 3º do mesmo diploma, sendo que constituiu essa
mesma norma a ratio juris da decisão tomada pelo acórdão ora impugnado, sem que
houvesse necessidade de, interpretativamente, lhe ser conferido um qualquer
outro sentido que não aquele que, praticamente, se revela de imediato do
respectivo teor literal.
Não se pode, pois, defender que, relativamente ao
normativo em causa, não tivesse o recorrente, antes da prolação da decisão agora
colocada sob a censura deste Tribunal, equacionado a questão da sua desarmonia
constitucional.
Improcede, pelas indicadas razões, a «questão prévia»
suscitada pelos recorridos.
3. Rezava assim a redacção originária do nº 1 do artº 9º
do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, diploma vigente à data dos factos
(e que, posteriormente, veio a sofrer alterações de redacção por intermédio dos
Decretos-Leis números 316/97, de 19 de Novembro, 323/2001, de 17 de Dezembro, e
83/2003, de 24 de Abril, e da Lei nº 48/2005, de 29 de Agosto):-
Artigo 9.º
Outros casos de obrigatoriedade de pagamento pelo sacado
1. As instituições de crédito são ainda obrigadas a pagar, não
obstante a falta ou insuficiência de provisão:
a) Qualquer cheque emitido através de módulo por elas fornecido com violação do
dever de rescisão a que se referem os n.ºs 1 a 5 do artigo 1.º;
b) Qualquer cheque emitido através de módulo por elas fornecido, após a rescisão
da convenção de cheque, com violação do dever a que se refere o n.º 6 do artigo
1.º;
c) Qualquer cheque fornecido a entidades que integrem a listagem a que se refere
o artigo 3.º;
d) Qualquer cheque fornecido com violação do disposto no n.º 9 do artigo 12.º.
2.
...............................................................................
Anote-se que no artº 3.º, referido na transcrita alínea
c), se comandava que as entidades que tenham sido objecto de duas ou mais
rescisões de convenção de cheque ou que hajam violado o disposto no n.º 5 do
artigo 1.º (onde se estipulava que as entidades abrangidas pela rescisão da
convenção de cheque deixavam de poder emitir ou subscrever cheques sobre as
instituições autoras da decisão de rescisão) serão incluídas numa listagem de
utilizadores de cheques que oferecem risco, a comunicar pelo Banco de Portugal a
todas as instituições de crédito (nº 1) e que nenhuma instituição de crédito
poderá confiar impressos de cheques a entidades que integrem a listagem (nº 2).
A norma em apreço [a dita alínea c) do nº 1 do artº 9º]
encontrava-se prevista, com teor absolutamente idêntico, inserida no artº 9º de
um decreto-lei aprovado pelo Conselho de Ministros de 29 de Agosto de 1991 e
que, enviado para promulgação pelo Presidente da República, foi objecto de um
pedido de fiscalização abstracta preventiva.
Este Tribunal, por intermédio do seu Acórdão nº 371/91
(publicado na II Série do Diário da República de 10 de Dezembro de 1991), para
além de não tomar conhecimento do pedido formulado pelo Presidente da República
no tocante “ao cotejo do artigo 8º, nº 1, e do artigo 9º, nº 1, do decreto, com
a Lei Uniforme Relativa ao Cheque e, consequentemente, com o artigo 8º, n.º 2,
da Constituição”, não se pronunciou, no que agora interessa, pela
inconstitucionalidade da norma do artº 9º, números 1, alíneas a), b), c) e d) e
nº 2 do decreto então em causa, vindo, na sequência do processo legislativo que
o originou, a ser editado, em 28 de Dezembro de 1991, o Decreto-Lei nº 454/91.
3.1. No entendimento do ora recorrente, em síntese, tal
norma viola os princípios da proporcionalidade e da justiça, já que, por um
lado, se se considerar que por via dela se pretendeu instituir “uma
responsabilidade por facto ilícito”, como parece resultar do acórdão ora
recorrido, “então a obrigação de pagamento teria como limite, considerando o
regime legal desse tipo de responsabilidade, o montante do dano efectivo e não o
valor do cheque”; por outro, a admitir-se a instituição de uma responsabilidade
pelo risco inerente à actividade bancária, então dever-se-ia proceder ao
estabelecimento de limites máximos do dever de indemnizar.
Vejamos.
Dos artigos 1º, 2º, 3º e 6º do Decreto-Lei nº 454/91
transparece que, com vista a assegurar uma maior credibilidade e confiança no
meio de pagamento que constitui o cheque e que, cada vez mais, se tinham vindo a
degradar, foram impostos às instituições bancárias determinados procedimentos
mais exigentes do que os consagrados pelas medidas administrativas introduzidas
pelos Decretos-Leis números 530/75, de 25 de Setembro, e 14/84, de 11 de Janeiro
(que se revelaram insuficientes - cfr. relatório preambular daquele diploma),
tendentes a se obter a rescisão das convenções de cheques celebrados com as
entidades da sua clientela, por forma a não se permitir a tais entidades, que
actuaram por sorte a pôr em causa a aludida confiança, o irrestrito uso de
cheque mediante módulos fornecidos pelas instituições bancárias. E, se, não
obstante as medidas agora impostas, as instituições bancárias, a quem era dado
conhecimento das actuações das entidades suas clientes, ainda, contrariamente ao
disposto na lei e que resultava de concretas instruções ou listagens elaboradas
pelo organismo central supervisionador da banca - o Banco de Portugal -
fornecessem módulos de cheques permissores do mencionado uso irrestrito (cfr. a
possibilidade de movimentação de cheques avulsos constante do artº 6º do
Decreto-Lei nº 454/91), a norma agora em apreciação veio a impor às citadas
instituições a obrigação de pagamento dos montantes titulados pelos cheques
emitidos pelas entidades «prevaricadoras», caso estes tivessem falta ou
insuficiência de provisão.
Essa obrigação constituiu, assim, por um lado, a
«contrapartida» do comportamento das instituições de crédito que não actuaram,
como deviam, no sentido de, fornecendo módulos de cheques às entidades em tal
situação, impedir o risco que advinha da possibilidade de as referidas entidades
poderem continuar a emitir cheques com falta ou insuficiência de provisão, com
os inerentes descrédito e desconfiança no meio de pagamento por via de cheque
que resultam para o «meio económico».
E constitui também, por outro e inquestionavelmente, e
não com menor importância, a consagração de uma «garantia», perante terceiros,
do pagamento da quantia titulada pelo cheque sacado em tais condições, sendo
certo que o banco que houver efectuado o pagamento da quantia ficará numa
posição de subrogação, podendo exigir do sacador o quantitativo daquele
pagamento.
Tais «contrapartida» e «garantia», obviamente, vão
representar um encargo adicional para as instituições bancárias visadas e, de
modo objectivo, vão beneficiar o portador do cheque. E, se porventura se pode
sustenta que elas, no rigor dos princípios, se não inscrevem nos riscos
inerentes à actividade bancária, não deixam de representar, quer a «face»
«penalizadora» de uma actuação indevida das instituições bancárias que não
procederam do modo prescrito na lei, quer o asseguramento da confiança que o
regime bancário deve merecer por banda dos intervenientes económicos e
financeiros.
3.2. Mas, se isto é assim, o que há que aquilatar é se,
dado o modo como aquelas «face» e asseguramento foram desenhadas na norma em
questão (pagamento da totalidade dos quantitativos inscritos nos módulos de
cheques fornecidos nas indevidas condições) conduz, efectivamente, à prescrição
de uma solução que se apresenta como algo de desproporcionado.
Neste particular, deverá notar-se que, no caso de onde
emergiu o recurso de constitucionalidade de que ora curamos, nenhuns elementos
se deparam e dos quais resulte que existiu «conluio» entre o empregado da
instituição bancária e o sacador do cheque, um «conluio» entre o sacador e o
portador do cheque no sentido de ser lesada a instituição bancária, ou, por
último, que a relação subjacente à emissão de cheques em tais circunstâncias se
revelava ilícita.
Na perspectiva do recorrente, mesmo admitindo estar-se
perante uma «responsabilização» por facto ilícito consubstanciado na
inobservância, por banda da instituição bancária, do seu dever legal de não
fornecer à entidade integrada na listagem módulos de cheque que lhe permitissem
o seu irrestrito uso, a obrigatoriedade do pagamento da totalidade dos montantes
titulados pelo cheque postar-se-ia como desproporcionada em face do regime legal
geral desenhado para uma tal espécie de responsabilidade, visto que aquilo que
deste regime resulta é a imposição do pagamento dos danos efectivamente sofridos
pelo lesado.
No já citado Acórdão nº 371/91, foi realçado que “nem
todos os ónus ou encargos, mesmo com imediata projecção financeira, podem ser
tidos, sem mais, como medidas de natureza sancionatória” e, no que tange à
obrigação constante da alínea c) do nº 1 do artº 9 ora em análise, referiu-se
que ela “tem por fonte directa e imediata um acto ilícito da instituição
pagadora, consubstanciado no incumprimento por parte dessa instituição de uma
obrigação legalmente imposta” e que desse “acto ilícito, que se traduz na
ausência ou ineficácia de reacção, por parte da instituição de crédito, à
situação de perigosidade (que é do seu conhecimento) que representa o titular de
módulos de cheques poder continuar a emitir cheques sem provisão, podem, de
facto, resultar prejuízos directos para terceiros de boa fé, além de resultar
diminuída a credibilidade do sistema, por desrespeito do dever de diligência que
nos termos legais impende sobre as instituições de crédito”.
De tal aresto parece, pois, resultar que este Tribunal
assumiu a óptica segundo a qual a obrigação imposta naquela alínea se fundava na
responsabilidade pela prática de acto ilícito imputável à instituição bancária.
Ora, numa tal óptica que, ao menos visualizando tão só a
já aludida «face» penalizadora, aliás, se acompanha, não se vislumbra agora que
a obrigação de pagamento da totalidade do montante inscrito no cheque se
apresente como sendo conflituante com os princípios da proporcionalidade e da
justiça.
Na realidade, se é facto que decorre do artº 483º, nº 1,
do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o
direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses
alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação,
isso não significa que, constitucionalmente, seja imposto ao legislador
ordinário que o limite da obrigação que tem por base a responsabilidade por
factos ilícitos se contenha necessariamente na medida do dano sofrido.
Mas, além disso, mesmo a entender-se que da alínea c) do
nº 1 do artº 9º resultaria uma presunção de harmonia com a qual a medida do
dano, para a situação em presença, era consubstanciada no montante do cheque,
uma presunção estatuída quanto à medida do dano não representa algo de novo no
domínio do direito das obrigações (pense-se, verbi gratia, no que se dispõe no
artº 806º do Código Civil quanto à indemnização pela mora nas obrigações
pecuniárias).
Aliás, a medida do dano sofrido pelo lesado pode,
inclusivamente e em dados casos, ser superior ao montante titulado pelo cheque.
E, como também aqui está em causa a protecção comunitária da fiducia e
credibilidade do meio de pagamento que constitui o cheque (fiducia e
credibilidade essas que, pela indevida actuação da instituição bancária se vêm
abaladas - e, quanto a este ponto, não se olvide que o «acto ilícito» não reside
na directa emissão, feita pelo sacador, do cheque desprovido de fundos, mas sim
no comportamento daquela instituição que proporcionou ao sacador a utilização de
módulos que lhe permitira proceder à mencionada emissão), não se antevê que a
exigência de pagamento daquele montante constituam uma «injusta medida»,
porquanto excessiva e não adequada, mesmo tendo em atenção uma proporção
relativa à «culpa» assacável à instituição, sendo certo que o nº 2 do artº 9º
não deixa de consagrar a regra segundo a qual pode essa instituição provar, para
excluir a sua responsabilidade, que satisfez as prescrições legais relativas à
obrigação de rescisão da convenção do cheque e os requisitos fixados pelo Banco
de Portugal.
E a isto, como se viu já, não se deixa de aditar que, de
todo o modo, o banco pagador da quantia titulada pelo cheque, sempre
poderá/deverá exigir ao sacador o quantitativo por aquele pago.
É evidente que outro poderia ser o caminho trilhado pelo
legislador.
Porém, não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre qual
o melhor direito. Cabe-lhe, isso sim, aquilatar se a solução legislativa
adoptada é, ela mesma, contrária à Lei Fundamental. Em quanto a esse particular,
viu-se que a regra legal em questão não era passível de um juízo de censura.
4. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso,
condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça
em vinte unidades de conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Gil Galvão
Artur Maurício