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Processo n.º 834/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo
78.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), da decisão sumária lavrada em
28 de Outubro de 2005, que teve o seguinte teor:
«1. Por acórdão de 30 de Março de 2004, o tribunal colectivo da 7.ª Vara
Criminal do Círculo de Lisboa condenou o arguido A., e outro, pela prática em
co-autoria de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos
26.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código Penal, na pena de 18 anos
de prisão, e, ainda, na pena acessória de expulsão do território nacional com
interdição de entrada em Portugal pelo período de 10 anos.
Dessa decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa e, após
decisão de improcedência do recurso em 6 de Julho de 2004, para o Supremo
Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 7 de Outubro de 2004, declarou a
nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, “e a necessidade de
regredir a momento anterior com a formulação do convite ao recorrente para
completar as conclusões da sua motivação, [o que] prejudica o conhecimento das
restantes questões colocadas no recurso”.
Em cumprimento do referido acórdão, a defensora do arguido foi notificada para
apresentar, em 10 dias, novas conclusões, o que efectivamente veio a fazer
depois de há muito ter decorrido o referido prazo, requerendo que essa
apresentação fosse julgada tempestiva, invocando em seu benefício um justo
impedimento.
Tal requerimento foi indeferido por despacho do relator, posteriormente
confirmado pela conferência. Desse acórdão interpôs o arguido recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, a fls. 1077, o qual foi admitido em 1 de Março de
2005, com subida diferida e sem efeito suspensivo.
Dada a omissão de apresentação das conclusões, o Tribunal da Relação de Lisboa
decidiu, por acórdão de 8 de Março de 2005, rejeitar o recurso quanto à matéria
de facto e manter, no mais, o acórdão de 6 de Julho de 2004.
Desta decisão interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
alegando que tal recurso deveria ter subida imediata, uma vez que a decisão
recorrida punha termo à decisão da causa no que respeita à matéria de facto.
Esse recurso veio a ser admitido, na sequência de reclamação para o Presidente
do Supremo Tribunal de Justiça, em 11 de Maio de 2005.
Por acórdão de 22 de Setembro de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não
conhecer do recurso interlocutório de fls. 1077, que ficara retido, “por falta
de declaração expressa nas conclusões do recurso que o fez subir da manutenção
do interesse do recorrente na apreciação do recurso”, e, ainda, julgar
parcialmente procedente o recurso do acórdão da Relação de 8 de Março de 2005,
“alterando a pena de prisão para 16 anos, mantendo a pena acessória de expulsão
do território nacional, com interdição de entrada em Portugal, por 10 anos, e o
mais decidido no referido aresto”. Pode ler-se no acórdão de 22 de Setembro de
2005, no que releva para o presente recurso de constitucionalidade:
«(…)
9. No acórdão de fls. 999 ficaram por tratar, quanto à matéria de facto, duas
questões, cujo conhecimento então seria inútil dada a anulação do acórdão da
Relação. Face à anómala indicação no acórdão da Relação de fls. 1091/2, de que o
processo deveria ser reenviado ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecimento
das questões que ficaram por apreciar e dado o princípio da lealdade processual
a que acima fizemos referência, examiná-las-emos de seguida.
10. Afirmou o recorrente, nas conclusões 11.ª a 15.ª do recurso de fls. 947/977,
que se transcrevem:
11. “Não obstante ter-se escusado a reapreciar a matéria de facto dada como
provada, o Tribunal da Relação valorou o depoimento prestado pelo arguido em
sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, altura em que a
arguido confirma que há cerca de seis meses (...) apunhalou com um golpe no
abdómen o B. Fê-lo porque desconfiou que ele lhe tinha furtado o seu telemóvel”.
12. A valoração pelo Tribunal da Relação de tais declarações contende com uma
correcta interpretação do princípio da livre apreciação da prova plasmado no
art.º 127.º do C.P.P.
13. Uma correcta interpretação do art.º 127.º do C.P.P. pelo Tribunal da
Relação, implicaria que o julgador tivesse formado a sua convicção sobre os
factos submetidos a julgamento tendo em conta também as declarações prestadas
pelo Recorrente em audiência.
14. Com efeito, o Tribunal da Relação furtou-se num incondicional subjectivismo,
à fundamentação e a comunicação, confundindo a liberdade de que se fala no art.º
127.º do C.P.P. com uma decisão puramente impressionista e emocional ao olvidar
o facto de o interrogatório judicial de arguido ter tido lugar passados quatro
dias de detenção do arguido, em clara violação do disposto no art.º 141.° do
Código de Processo Penal, correndo, inclusivamente inquérito, com vista ao
apuramento da responsabilidade por tal detenção ilegal.
15. Apesar de o Recorrente ter alegado a perturbação da sua capacidade de
avaliação na altura em que foi interrogado pela juíza de instrução, o Tribunal
da Relação fez tábua rasa de tal invocação, omitindo mais uma vez pronúncia
quanto a uma questão que lhe foi colocada pelo Recorrente, em violação do
disposto no art.º 379,º, c), do C.P.P.
O art.º 127.º do Código de Processo Penal estabelece: Salvo quando a lei
dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e
a livre convicção da entidade competente.
O tribunal de 1.ª instância, face à posição assumida pelo recorrente que, em
audiência, passou a sustentar a tese de que não fora ele quem esfaqueara o B.,
ordenou a leitura das declarações prestadas pelo arguido perante o Juiz de
Instrução Criminal, aquando do primeiro interrogatório de arguido detido. E
podia fazê-lo, conforme o permite o art.º 356.°, n.º 3, al. b), do Código de
Processo Penal.
Produzida a prova, o tribunal era livre de a apreciar. Apreciação que o acórdão
da Relação de 6 de Julho de 2004 diz, correctamente, “não poder ser entendida
como uma operação subjectiva, emocional e, portanto, imotivável”. Mas que “há-de
traduzir-se em valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da
lógica, da razão, das máximas da experiência, e dos conhecimentos científicos,
que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário
para uma efectiva motivação da decisão”.
Não tendo sido violada nenhuma norma ao ser admitida a valoração das declarações
produzidas pelo arguido-recorrente perante o juiz de instrução criminal, nenhuma
censura compete fazer a este Tribunal. (…)»
2. O recorrente veio então interpor o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, com um requerimento em que disse:
«A., Recorrente nos autos acima e à margem identificados, tendo legitimidade
para o efeito (art.º 72.º, n.º 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional),
vem, nos termos do disposto no art.º 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei Orgânica do
Tribunal Constitucional, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do
acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que aplicou norma cuja
inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
Com a interposição do presente recurso, pretende o Recorrente a apreciação da
inconstitucionalidade da norma constante do art.º 127.º do Código de Processo
Penal.
Entende o Recorrente que a norma constante do art.º 127.º do Código Processo
Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal Recorrido, viola o
disposto no art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
A referida inconstitucionalidade foi suscitada pelo Recorrente no âmbito do
recurso interposto do acórdão proferido em primeira instância para o Tribunal da
Relação de Lisboa e no âmbito do recurso interposto do acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça.»
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
3. O presente recurso foi admitido, em decisão que, como se sabe (artigo 76.º,
n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal
Constitucional. Analisados os autos, verifica-se que é de proferir decisão
sumária, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional,
por este Tribunal não poder tomar conhecimento do recurso.
4. Com efeito, para se poder tomar conhecimento de um recurso de
constitucionalidade como o presente, interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, não só que
tenham sido esgotados os recursos ordinários e que a questão de
constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, como também que
seja impugnada a constitucionalidade de uma norma, ou interpretação normativa, e
que esta tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida: isto
é, que tal norma ou interpretação normativa tenha constituído fundamento
decisivo para o tribunal recorrido.
Este último requisito não é, aliás, mais do que expressão da necessária
utilidade da intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso, pois, se
a norma impugnada não foi ratio decidendi – mas antes é apenas mencionada num
obiter dictum –, ou se existe outro fundamento, só por si bastante para se
chegar a decisão idêntica à recorrida, a decisão do Tribunal Constitucional
sobre a sua constitucionalidade, qualquer que ela fosse, sempre seria
insusceptível de alterar o sentido da decisão do tribunal recorrido. Nestas
condições, o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso.
Acresce que, no nosso sistema de fiscalização concentrada e incidental da
constitucionalidade, não cabe ao Tribunal Constitucional, nem controlar o modo
como a matéria de facto foi apurada pelos tribunais recorridos, nem sequer
controlar o mérito da decisão recorrida, em si mesma, ou, sequer, apurar se as
normas nela aplicadas correspondem ou não ao melhor direito. No recurso de
constitucionalidade tal como foi delineado pela Constituição da República e pela
Lei do Tribunal Constitucional, este é apenas um órgão de fiscalização da
constitucionalidade de normas, em si mesmas (isto é, numa interpretação
enunciativa) ou em determinada interpretação particular, aplicada na decisão
recorrida.
5. Ora, no presente caso, o recorrente indica no requerimento de recurso que
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade “da norma
constante do art.º 127.º do Código de Processo Penal”, por considerar que tal
norma, “na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal recorrido, viola o
disposto no art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa”, e que
tal questão da “inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente no âmbito do
recurso interposto do acórdão proferido em primeira instância para o Tribunal da
Relação de Lisboa e no âmbito do recurso interposto do acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça”.
Verifica-se, porém, que o recorrente não indica, com um mínimo de precisão, qual
a interpretação que teria sido dada, e aplicada, pelo tribunal recorrido à norma
do artigo 127.º do Código de Processo Penal, cuja constitucionalidade pretende
ver aferida pelo presente recurso. Seria, pois, necessário proferir um despacho
a convidar o recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento de recurso, no sentido
de enunciar a interpretação ou dimensão normativa que impugna.
Tal convite seria, porém, no presente caso, um acto inútil, pois, consultando os
autos, verifica-se que o recorrente não preencheu o requisito da suscitação,
perante o tribunal recorrido, da inconstitucionalidade de qualquer norma ou
dimensão normativa.
Na verdade, consultando o teor das alegações de recurso para o Tribunal da
Relação de Lisboa (fls. 837 e ss.) e para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
947 e ss.), verifica‑se que apenas nestas últimas (designadamente nas conclusões
11 a 14) fez o recorrente referência ao artigo 127.º do Código de Processo
Penal, em conclusões com o seguinte teor:
«11. “Não obstante ter-se escusado a reapreciar a matéria de facto dada como
provada, o Tribunal da Relação valorou o depoimento prestado pelo arguido em
sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, altura em que a
arguido confirma que há cerca de seis meses (...) apunhalou com um golpe no
abdómen o B. Fê-lo porque desconfiou que ele lhe tinha furtado o seu telemóvel”.
12. A valoração pelo Tribunal da Relação de tais declarações contende com uma
correcta interpretação do princípio da livre apreciação da prova plasmado no
art.º 127.º do C.P.P.
13. Uma correcta interpretação do art.º 127.º do C.P.P. pelo Tribunal da
Relação, implicaria que o julgador tivesse formado a sua convicção sobre os
factos submetidos a julgamento tendo em conta também as declarações prestadas
pelo Recorrente em audiência.
14. Com efeito, o Tribunal da Relação furtou-se num incondicional subjectivismo,
à fundamentação e a comunicação, confundindo a liberdade de que se fala no art.º
127.º do C.P.P. com uma decisão puramente impressionista e emocional ao olvidar
o facto de o interrogatório judicial de arguido ter tido lugar passados quatro
dias de detenção do arguido, em clara violação do disposto no art.º 141.° do
Código de Processo Penal, correndo, inclusivamente inquérito, com vista ao
apuramento da responsabilidade por tal detenção ilegal.
15. Apesar de o Recorrente ter alegado a perturbação da sua capacidade de
avaliação na altura em que foi interrogado pela juíza de instrução, o Tribunal
da Relação fez tábua rasa de tal invocação, omitindo mais uma vez pronúncia
quanto a uma questão que lhe foi colocada pelo Recorrente, em violação do
disposto no art.º 379,º, c), do C.P.P.»
Como se vê, o recorrente não levantou perante o Tribunal recorrido uma
verdadeira questão de constitucionalidade de normas: limitou-se a referir uma
errada interpretação “do princípio da livre apreciação da prova plasmado no
art.º 127.º do C.P.P.” (pois a correcta interpretação “implicaria que o julgador
tivesse formado a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento tendo em
conta também as declarações prestadas pelo Recorrente em audiência”), e imputou
sempre a desconformidade constitucional antes à decisão em si mesma considerada.
Mais precisamente, o recorrente impugnou a valoração judicial em concreto das
provas produzidas, o juízo de relevância da confissão feito pelo tribunal
recorrido, atacando a violação da Constituição pela decisão recorrida, e não por
qualquer norma. Ora, tal matéria, claramente desprovida de natureza “normativa”,
não constitui objecto idóneo do recurso de fiscalização da constitucionalidade.
É esta única questão que o recorrente traz no presente recurso à apreciação do
Tribunal Constitucional (apesar de durante o processo ter suscitado outras
questões, essas de verdadeira constitucionalidade normativa, relativamente ao
artigo 271.º do Código de Processo Penal – a fls. 976 e ss. –, no entanto, tal
questão não foi retomada no recurso para este Tribunal, pelo que não se pode
dela conhecer).
Assim, por o recorrente não ter cumprido o ónus, indispensável para poder fazer
uso do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, de suscitar uma questão de
constitucionalidade normativa durante o processo (cfr. o artigo 72.º, n.º 2, da
Lei do Tribunal Constitucional), antes tendo sempre imputado a
inconstitucionalidade à decisão, não pode, pois, o Tribunal Constitucional tomar
conhecimento do presente recurso.»
2.Diz-se na reclamação apresentada:
«1 – O recorrente suscitou, no decurso do processo, a inconstitucionalidade da
interpretação normativa da disposição legal contida no art.º 271.º do C.P.P.,
aplicada pela decisão recorrida.
2 – O recorrente nunca suscitou no processo a inconstitucionalidade da norma
constante do art.º 127.º do C.P.P., a inconstitucionalidade da interpretação
normativa de tal disposição legal.
3 – Por evidente lapso de escrita decorrente da troca de algarismos, o
recorrente, ao invés de, no requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, invocar a inconstitucionalidade do art.º 271.º do
C.P.P. na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal Recorrido, escreveu art.º
127.º do C.P.P..
4 – Por ser a constitucionalidade da interpretação normativa do art.º 271.º,
aplicado pela decisão recorrida, que o Recorrente pretendeu sindicar é que
referiu no seu requerimento de interposição de recurso que vinha “interpor
recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça que aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada
durante o processo”.
5 – Obviamente que não faria qualquer sentido recorrer para o Tribunal
Constitucional sindicando a constitucionalidade do art.º 127.º do C.P.P.,
relativo à livre apreciação da prova, quando tal norma não foi aplicada pelo
Tribunal Recorrido.
6 – A divergência entre o que foi escrito e aquilo que se queria ter escrito,
que decorre do que demais consta do contexto processual, consubstancia um erro
material.
7 – Em sede de direito substantivo, o art.º 249.º do Código Civil preceitua que
“o simples erro de cálculo ou de escrita revelado no próprio contexto da
declaração, ou através das circunstâncias em que a declaração é feita”, concede
o direito à rectificação desta.
8 – Este regime, previsto para os negócios jurídicos, é igualmente aplicável a
actos jurídicos, nomeadamente a declarações de vontade produzidas no decurso de
um processo judicial, podendo ser objecto de rectificação a todo o tempo.
9 – Por outro lado no plano processual, estipula o art.º 666.º, n.º 2, do
C.P.C., ser lícito ao Juiz rectificar erros materiais, sendo que o erro material
se dá quando o Juiz ou o Advogado escreve coisa diversa do que queria escrever.
10 – Deste modo, deve ser aceite a rectificação do lapso de escrita constante do
requerimento de interposição de recurso.
11 – Sendo assim, no requerimento de interposição de recurso, onde se escreveu
“art.º 127.º do Código de Processo Penal” deve ter-se por escrito “art.º 271.º
do Código de Processo Penal”.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve ser aceite a rectificação
do lapsus linguae contido no requerimento de interposição de recurso e ser
proferido despacho de admissão do recurso interposto, com as demais
consequências legais.»
3.O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
respondeu a esta reclamação nos seguintes termos:
«1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade – e como é óbvio – não é admissível, no âmbito de reclamação para
a conferência, operar uma substancial alteração do objecto do recurso, a
pretexto de ter existido um “lapso” na indicação da norma cuja
constitucionalidade se pretendia ver sindicada pelo Tribunal Constitucional.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.Adianta-se desde já que a presente reclamação é improcedente, por não abalar
os fundamentos em que se baseou a decisão recorrida para se pronunciar no
sentido do não conhecimento do recurso.
Com efeito, e como se disse na decisão sumária reclamada, num recurso, como o
presente, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional, apenas se pode conhecer da inconstitucionalidade de
normas ou de interpretações normativas. E, para que o Tribunal possa conhecer do
objecto do recurso, exige-se que os recorrentes suscitem, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma, ou de um dado sentido normativo, que pretendem
submeter ao julgamento deste Tribunal e que tal norma, ou sentido normativo,
tenha sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a
acusação de inconstitucionalidade.
Acresce que, nos termos do artigo 75.º-A, n.ºs 1 e 2, da Lei do Tribunal
Constitucional, incumbe ainda às partes o ónus de indicarem qual a norma, ou
dimensão normativa, que pretendem submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional, já que, como é sabido, no recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade vigora o princípio do pedido (artigo 79.º-C da Lei do
Tribunal Constitucional): os poderes de cognição do Tribunal Constitucional
estão limitados pelo pedido, na medida em que apenas pode apreciar a
constitucionalidade de normas cuja apreciação haja sido requerida. Logo, cabe ao
recorrente, no requerimento de interposição do recurso, a definição precisa do
seu objecto.
Ora, no caso dos autos, o reclamante, no requerimento de interposição do recurso
para este Tribunal, pediu a apreciação da conformidade constitucional da norma
contida no artigo 127.º do Código de Processo Penal, pela seguinte forma:
«(…) Com a interposição do presente recurso, pretende o Recorrente a apreciação
da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 127.º do Código de Processo
Penal.
Entende o Recorrente que a norma constante do art.º 127.º do Código Processo
Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal Recorrido, viola o
disposto no art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.(…)»
Sendo a indicação do objecto do presente recurso de constitucionalidade
efectuada pela forma transcrita, dúvida alguma poderia suscitar-se de que a
norma submetida ao juízo deste Tribunal não fosse a do artigo 127.º do Código de
Processo Penal, não existindo qualquer indício de erro de escrita “no próprio
contexto da declaração, ou através das circunstâncias em que a declaração é
feita”. A referência ao artigo 127.º do Código de Processo Penal foi feita por
duas vezes no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, e em
parte alguma desse mesmo requerimento o reclamante indicou o artigo 271.º do
Código de Processo Penal. Por esse motivo, não podiam existir dúvidas sobre qual
seria efectivamente a norma a apreciar – a única indicada pelo recorrente, aliás
também referida perante o tribunal recorrido, que era a norma do artigo 127.º do
Código de Processo Penal.
Disse-se a propósito de questão similar no acórdão n.º 635/95 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt),:
«(…) A afirmação tão claramente feita pelos ora requerentes do objecto do
recurso, dispensa o Tribunal de se interrogar se a vontade declarada por aqueles
se coaduna ou não com a sua vontade real, dispensando-o de qualquer actividade
interpretativa mais complexa.
A delimitação deste objecto do recurso, assim claramente estabelecido, vincula o
Tribunal Constitucional.
De facto, nos recursos de constitucionalidade – no âmbito de fiscalização
concreta – o Tribunal Constitucional “só pode julgar inconstitucional ou ilegal
a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja
recusado aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou
princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi
invocada” (art.º 79.º-C da Lei do Tribunal Constitucional).
Vigora, assim, na jurisdição constitucional o princípio do pedido. Como refere
Cardoso da Costa, “já seria óbvio que não pode o Tribunal alargar a sua
apreciação a normas diversas da aplicada ou desaplicada pelo Tribunal a quo,
ainda que eventualmente também aplicáveis à hipótese sub judice; mas pode julgar
aquela inconstitucional com fundamento em violação de normas ou princípios da
Constituição diferentes dos invocados (art.º 79.º-C LTC)” (A Jurisdição
Constitucional em Portugal, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra, 1992,
pág. 53).
5. Acresce que os n.ºs 1 e 2 do art.º 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional –
disposição aditada pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro – impõem aos recorrentes
o ónus de delimitação rigorosa do objecto do recurso e de indicação da espécie
de recurso interposto, garantias da plena observância do princípio do
pedido.(…)»
Ainda que nos presentes autos não estejamos perante uma situação idêntica à que
estava em causa no transcrito acórdão – pois agora o reclamante pretende a
alteração do objecto do recurso para uma norma também aplicada pela decisão
recorrida, a do artigo 271.º do Código de Processo Penal –, as razões nele
invocadas para não se proceder à alteração do objecto do recurso são igualmente
válidas no presente caso. Depois de ter pedido no requerimento de recurso, única
e exclusivamente, a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo
127.º do Código de Processo Penal, não pode o reclamante pretender agora,
mediante o argumento de que teria existido um lapsus calami não revelado na
própria declaração, a alteração do objecto do recurso, para apreciação de norma
diversa.
Há, assim, que indeferir a pretensão do reclamante e, consequentemente,
confirmar a decisão sumária reclamada, uma vez que não se encontram verificados
os requisitos para se poder tomar conhecimento do recurso interposto da norma
constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, desde logo, por não ter
sido suscitada durante o processo, em relação a ela, uma verdadeira questão de
constitucionalidade normativa.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e
confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso de
constitucionalidade interposto.
Custas pelo reclamante, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 6 de Dezembro de
2005
Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos