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Processo nº 316/97
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Exposição elaborada nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional:
1 - No tribunal judicial da comarca de Sintra, a A., requereu contra B. e mulher C., providência cautelar inominada, peticionando, em síntese,
'(a) a proibição de os requeridos exercerem por si ou por intermédio de outrem, por si designado a exploração e administração do estabelecimento que identifica;
(b) a entrega das chaves do estabelecimento da requerente, ao seu sócio gerente, D., com todos os bens móveis nele existentes, designadamente mercadorias, máquinas e utensílios, bem como da escrita e restante documentação pertencente à Sociedade A. e qualquer bem àquela pertencente.
Os requeridos deduziram oposição (fls. 40 e ss.).
Por despacho de 8 de Março de 1995, (fls. 43 e ss.), a senhora Juíza da comarca, ao abrigo do disposto no artigo 401º, nº 1, do Código de Processo Civil, indeferiu a providência requerida.
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2 - Do assim decidido agravou a requerente para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 16 de Janeiro de 1996, (fls. 71 e ss.), concedeu provimento ao recurso, revogou o despacho agravado e, em consequência, decretou 'a proibição de os requeridos exercerem por si ou por intermédio de outrem a exploração e administração do estabelecimento', devolvendo-lhe esta, com tudo o que lhe pertence ao sócio gerente da sociedade A. requerente.
Inconformados, interpuseram os requeridos recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 28 de Novembro de 1996, (fls.
120 e ss.), apreciando a questão prévia do regime do recurso suscitada pela parte contrária - havia sido fixado o regime de subida imediata nos autos, com efeito suspensivo - decidiu alterar o regime de recurso 'que é de agravo, com subida imediata em separado, efeito devolutivo (art. 758º)'.
Para tanto aduziu-se a fundamentação seguinte:
'Sobem imediatamente nos autos os agravos interpostos de acórdão da Relação que conheça do objecto do agravo - artº 756º do C.P.Civil.
São os chamados agravos continuados (Armindo Ribeiro Mendes, in Direito Processual Civil III-Recursos, 430).
Esses recursos terão consequentemente efeito suspensivo - artº
758º.
Ora prevalecerão aqueles artº 756º e 758º sobre o artº 738º-1-b)?
Este o problema que temos de decidir.
Em termos formais, deveria prevalecer o regime dos artº 756º e
758º.
Trata-se de um agravo continuado, logo são os artº 756º e 758º que
'prima facie' requerem aplicação.
O artº 738º-1-b) aparece em sede de recursos para a 2ª instância.
O julgador não deve porém limitar-se a tão simplista leitura.
O artº 738º-1-b) tem na sua base uma razão substancial, supra referida.
Foi colocado em sede de recurso para a Relação porque se pensou na hipótese normal, de ser a 1ª instância a deferir ou indeferir a providência.
Neste processo o deferimento foi em 1ª mão da Relação.
Impõe-se por isso igual regime para este recurso.
Deve por isso ler-se aquele artº 738º no sentido de prevalecer sobre o artº 756º quando o deferimento é da Relação.
Não faria sentido que se pudesse executar desde logo a decisão de deferimento da 1ª instância e não tivesse igual força a decisão da 2ª instância'.
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3 - Deste acórdão vieram os requeridos pedir a aclaração (fls.
126 e ss.), escrevendo assim, a dado passo:
'X - E não se diga que o Julgador, ao preconizar semelhante entendimento, está a 'limitar-se a tão simplista leitura'. De facto, quer em termos de legalidade quer, inclusive, em termos de constitucionalidade, outra não poderá ser a interpretação a dar à voluntária omissão do legislador.
XI - E a questão da inconstitucionalidade, em face dos arts. 207º,
208º e 210º da Lei Fundamental, aplicada aos recursos das decisões da 2ª instância, é um dos pontos fulcrais da aclaração que se pretende.
Nem é forçado dizer-se que se decidiu contra-legem, uma vez que existe lei expressa a contemplar o caso sub judice.
Ou seja: Cura-se, com o presente requerimento, o esclarecimento de saber se esse Alto Tribunal tomou em linha de conta tal inconstitucionalidade, uma vez que a aplicação do art. 738º às decisões da 1ª instância violou os princípios consignados na Lei Fundamental, nomeadamente nos preditos arts. 207º,
208º e 210º'.
Por acórdão de 20 de Fevereiro de 1997, (fls. 131 e ss.), foi indeferido o pedido de aclaração.
Argumentou-se assim:
'Nos termos do artº 669º a) do C. P. Civil pode qualquer das partes requerer no tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha.
Os requeridos, que aliás nem responderam oportunamente à parte contrária, assustaram-se agora com o efeito devolutivo e vêm tentar convencer o Tribunal de que decidiu mal que afinal se deve aplicar o artº 758º e não o artº
738º-1-b).
Não apontam ao acórdão qualquer obscuridade ou ambiguidade.
Eles entenderam-no bem, não o escondem.
Teremos sim decidido mal, e pior que isso: a interpretação por nós acolhida violaria os artº 207º, 208º e 210º da CR.
A CR aparece no pedido de aclaração como 'Pilatos no Credo'.
Trata-se de táctica bem conhecida, velha e relha.
O artº 207º proíbe a aplicação de normas inconstitucionais.
O artº 208º obriga-nos a fundamentar as nossas decisões.
Os requeridos não nos acusam de termos incorrido nesse pecado.
Simplesmente fundamentamos em termos diferentes dos que eles pretenderiam.
O artº 210º refere-se ao júri, à participação popular e assessoria técnica...
Valerá mesmo tudo quando se trata de protelar a execução das decisões dos Tribunais?
Sempre defendemos o uso moderado do artº 456º do CPC.
Admitimos que por vezes pecaremos por excesso de benevolência'.
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4 - Os requeridos interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional 'por se considerar que a aplicação do artigo 738º do Código de Processo civil às decisões da 1ª instância viola os princípios da Lei Fundamental consagrados nos artigos 207º, 208º e 210º'.
Na sequência deste requerimento, o senhor relator, por despacho de 24 de Março de 1997, (fls. 137), para além de levar os autos à conferência a fim de esta decidir sobre o procedimento previsto no artigo 720º do Código de Processo Civil, e de mandar ouvir as partes 'porque os requeridos procuram entorpecer a acção da justiça (art. 456º do C.P.C.), parece impôr-se a sua condenação como litigantes de má fé', determinou a notificação dos requeridos nos termos e para os efeitos do artigo 75º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
Relativamente a esta específica matéria, a única que aqui importa considerar, a fls. 138, responderam assim:
'O recurso que agora está em causa é interposto com fundamento na alínea b) do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, uma vez que se considera inconstitucional a aplicação da regra contida no art. 738º às decisões dos Tribunais de 2ª instância dado que para estas decisões existe lei expressa sobre a forma e efeitos dos respectivos recursos - os artigos 756º e 758º, sendo os últimos normativos citados, referidos à lei adjectiva civil'.
O recurso foi admitido por despacho de 28 de Abril de 1997,
(fls. 183), remetendo-se os autos a este Tribunal.
Entende porém o ora relator, por força das razões a seguir sumariamente expostas, que não deve tomar-se conhecimento do objecto do recurso.
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5 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro (Lei do Tribunal Constitucional), cabe recurso para este Tribunal das decisões dos tribunais que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
A admissibilidade deste tipo de recurso - aquele a que o recorrente lançou mão - acha-se condicionada, além do mais, pela confluência de dois pressupostos essenciais: a) a inconstitucionalidade da norma deverá ter sido suscitada durante o processo pelo próprio recorrente; b) tal norma haverá de ser utilizada na decisão impugnada como seu suporte normativo.
O legislador constituinte elegeu como conceito identificador do objecto típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização da constitucionalidade (cfr. os artigos 278º, 280º e 281º da Constituição) o conceito de norma jurídica pelo que apenas estas (e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas), podem nesta sede, na qual se incluem os processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de sindicância.
Com efeito, os recursos de constitucionalidade, sendo embora interpostos de decisões dos outros tribunais (decisões de provimento ou de rejeição) não visam impugnar a inconstitucionalidade de tais decisões, mas antes o juízo que nelas se contenha sobre a inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade de normas com interesse para o julgamento da causa.
E assim sendo, impende sobre os recorrentes o ónus de suscitar, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade das normas convocadas e aplicadas pela decisão da causa, havendo de fazê-lo de modo directo, explícito e perceptível através da indicação das disposições legais sobre que se faz recair a suspeita do vício de inconstitucionalidade, em ordem a que os tribunais aquando do respectivo julgamento sejam confrontados com a matéria da inconstitucionalidade e sobre ela possam proferir decisão de provimento ou de rejeição.
É que, como assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, p. 1993, p.
1018, a lógica fundamental da fiscalização concreta de constitucionalidade é 'a de que só há recurso para o TC quando outro tribunal tenha decidido (expressa ou implicitamente) uma questão de constitucionalidade. O recurso tem precisamente por objecto a reapreciação dessa decisão. Não se pode levar ao TC questões que não tenham já sido apreciadas (ou não devam ter sido apreciadas) por um outro tribunal (o tribunal recorrido)'.
E, por outro lado, a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo há-de entender-se não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser invocada até à extinção da instância), mas sim num sentido funcional, isto é, o levantamento da questão que põe em crise, com fundamento em inconstitucionalidade, uma certa e determinada norma jurídica, haverá de ser feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade terá de ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que tal questão respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão (de constitucionalidade) que
é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jursidicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (Sobre esta matéria acha-se estabelecida uma jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal, cfr. por todos, os acórdãos nºs 90/85, 94/88 e 155/95, Diário da República, II série, de, respectivamente,
11 de Julho de 1985, 22 de Agosto de 1988 e 20 de Junho de 1995).
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6 - Ora, à luz destes princípios, logo há-de concluir, que por duas distintas ordens de razões, não se mostram verificados no presente recurso todos os pressupostos indispensáveis à sua admissibilidade.
Com efeito, e desde logo, não foi suscitada, durante o processo, qualquer questão de constitucionalidade, limitando-se os recorrentes a referir a matéria da inconstitucionalidade no pedido de aclaração que formularam relativamente ao acórdão de 28 de Novembro de 1996, no qual foi apreciada a questão prévia do regime do recurso levantada pela recorrida.
Há-de assim considerar-se desatempada tal suscitação, pois que no momento processual próprio para tal efeito - a resposta à questão prévia - nada foi aduzido pelos recorrentes.
Por outro lado, e numa diferente vertente das coisas, não foi, em bom rigor, por eles suscitada a questão de constitucionalidade de uma certa e determinada norma jurídica, nomeadamente, a norma do artigo 738º do Código de Processo Civil, antes se revelando quer no requerimento da aclaração quer na petição de recurso para este Tribunal, o propósito de se questionar a decisão do tribunal a quo e não qualquer norma ali aplicada como seu fundamento normativo.
Decorre do exposto, e por inverificação de pressupostos de admissibilidade do recurso, que não pode tomar-se conhecimento do seu objecto.
Notifiquem-se as partes nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional.
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ACÓRDÃO Nº 543/97 Processo nº 316/97
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade em que figuram como recorrentes B. e mulher C. e como recorrida a A., pelo essencial das razões constantes da exposição do relator de fls. 218 a 228, exposição essa que não foi objecto de qualquer resposta por parte dos recorrentes e da recorrida, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em
4 (quatro) Ucs.
Lisboa, 24 de Setembro de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa