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Processo n.º 783/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 7 de Novembro de 2005, que decidiu,
no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, não conhecer do
objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), do despacho do Vice‑Presidente do Tribunal da Relação do Porto, de 4 de
Julho de 2005, que indeferiu reclamação por ela deduzida contra o despacho do
Juiz da 3.ª Vara Cível do Porto, de 10 de Março de 2005, que determinara que o
recurso de agravo interposto de despacho que anulara todo o processado
posterior à realização do arrolamento só subiria quando o procedimento cautelar
estivesse findo e tivesse efeito meramente devolutivo (artigos 738.º, n.º 1,
alínea c), parte final, e 740.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo
Civil (CPC)).
Nos termos do requerimento de interposição de recurso, a recorrente
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade «das normas
dos artigos 734.º, n.º 2, e 740.º, n.º 3, do CPC, que, salvo o devido respeito,
no entendimento do despacho recorrido e da decisão da 1.ª instância, que
manteve, é violador das garantias de autodefesa e de recurso, tuteladas pelo
artigo 20.º, n.º 1, da CRP», questão de inconstitucionalidade que teria sido
suscitada na reclamação que originou a decisão ora recorrida.
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Vice‑Presidente
do Tribunal da Relação do Porto, decisão que, como é sabido, não vincula o
Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, de facto, entende‑se
que, no caso, o recurso é inadmissível, o que permite a prolação de decisão
sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões
de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no
caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. Recordados estes critérios, torna‑se patente que o presente
recurso é inadmissível.
Na verdade, na peça indicada como sendo o local onde a questão de
inconstitucionalidade foi suscitada (a reclamação para o Presidente do
Tribunal da Relação do Porto contra o despacho de retenção do agravo), a
recorrente aduziu:
«Tendo sido notificada do douto despacho de fl. 592, que determinou
que o recurso subisse apenas quando o procedimento cautelar estivesse findo e
com efeito meramente devolutivo, e com ele não se conformando, apresenta
reclamação, nos termos do artigo 688.° do CPC, nos seguintes termos:
1.° – Como resulta do douto despacho recorrido de fls. 533 a 535, a citação foi
anulada porque o senhor juiz a quo teve dúvidas de que a reclamante tivesse
entendido o significado da citação.
2.° – Os relatórios dos exames médicos revelam que a reclamante sofre de
demência senil na forma simples e que se trata de todo um processo de declínio
gradual das capacidades.
3.º – A dúvida do senhor juiz a quo nunca mais será eliminada, por não haver
melhores elementos para apreciar a situação e porque o estado de saúde tende a
agravar‑se.
4.° – Ou seja: é inevitável que, a haver lugar a nova citação, se o despacho
recorrido se mantiver, terá de ser feita em curador especial, ad litem, nos
termos dos artigos 10.° e 11.º do CPC.
5.° – O recurso de agravo é pois a última oportunidade que a reclamante tem de
se defender a si própria, sem o suprimento da curadoria.
6.º – Não se trata, pois, de uma mera situação de anulação de actos inúteis sem
perda de eficácia do recurso, como pondera o douto despacho reclamado: O
próprio agravo perde a razão de ser, pois a reclamante deixará de ter a
possibilidade de se autodefender, dada a perda progressiva das suas faculdades.
Será totalmente inútil e ineficaz, na prática, em caso de procedência.
7.° – O entendimento adoptado, pelo douto despacho reclamado, das normas dos
artigos 734.°, n.° 2, e 740.°, n.° 3, do CPC, é, salvo melhor opinião, violador
das garantias de autodefesa e de recurso tuteladas pelo artigo 20.°, n.º 1, da
CRP.
8.º – Por isso, o recurso de agravo deve subir imediatamente, nos próprios
autos e com efeito suspensivo, sob pena de ser absolutamente inútil.
Nestes termos,
Deve a reclamação ser atendida e o agravo admitido com subida imediata nos
próprios autos e com efeito suspensivo.»
Como é patente, esta não é uma forma adequada de suscitar uma
questão de inconstitucionalidade normativa, pois a recorrente não identifica,
em termos minimamente precisos e claros, a interpretação normativa que reputa
inconstitucional, de modo a habilitar o Tribunal Constitucional, na hipótese de
o recurso lograr obter provimento, a apresentar a sua decisão em termos de
«tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem
a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado, por, deste modo, violar a Constituição».
Por outro lado, os termos em que a questão de constitucionalidade é
suscitada ligam‑na indissociavelmente às especificidades (irrepetíveis) do caso
concreto em análise, pelo que, em rigor, o que a recorrente questiona é a
eventual violação das «garantias de autodefesa e de recurso» decorrente
directamente da operação de subsunção jurídica efectuada pelo despacho
impugnado. Isto é: o que se questiona é a constitucionalidade da decisão
judicial (de não considerar que, no caso sujeito, a retenção do agravo o torna
absolutamente inútil), em si mesma considerada, e não a de um critério
normativo, dotado de generalidade e abstracção. Ora – repete‑se –, só as
questões de inconstitucionalidade normativa, e já não as questões de
inconstitucionalidade de decisões judiciais, constituem objecto idóneo de
recurso de constitucionalidade.
4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do disposto no artigo
78.º‑A, n.º 1, da LTC, não conhecer do objecto do recurso.”
1.2. A reclamação da recorrente apresenta a seguinte
fundamentação:
“A decisão sumária considerou que não devia conhecer do recurso por
entender não estar em causa uma inconstitucionalidade normativa, que a
recorrente não teria enquadrado, mas a inconstitucionalidade da decisão
concreta, de recurso inadmissível.
Salvo o devido respeito, consideramos que a decisão não é correcta.
Não existe uma fórmula sacramental para suscitar as questões de
inconstitucionalidade normativa nem o Tribunal Constitucional pode agarrar‑se a
construções herméticas para declinar o conhecimento de recursos.
Salvo melhor opinião, parece‑nos que o problema foi devidamente
enquadrado nas várias peças em que se suscitou a questão trazida a este
tribunal.
A 1.ª instância, ao reter o agravo, num caso de interdição com perda
progressiva das capacidades da recorrente, com apelo às normas dos artigos
734.º, n.º 2, e 740.º, n.º 3, do CPC, adoptou uma concepção destas normas que se
advoga ser violadora das garantias de autodefesa e de recurso tuteladas pelo
artigo 20.º, n.º 1, da CRP, porquanto, em caso de procedência, o recurso será
totalmente inútil e ineficaz, porque a recorrente deixa de ter a possibilidade
de se autodefender (passa a haver o suprimento da curadoria).
A tese da 1.ª instância não foi expressa, mas resulta implícita da
posição assumida.
Mais do que uma posição concreta e individual, dirigida ao caso
concreto, traduz uma tese susceptível de se voltar a repetir (e deverá ser a
maioria dos casos de processos do mesmo género), pelo que deve ser fixada
jurisprudência no sentido de se dissiparem as dúvidas quanto à aplicação das
normas em causa.
Efectivamente, consideramos que a retenção do recurso com base
naquelas disposições, em situações deste género, traduz uma violação das
garantias constitucionais de autodefesa e do próprio recurso.
Termos em que deve a reclamação ser atendida e ser proferido acórdão
que admita o recurso e mandar prosseguir o processo para decisão de fundo.”
1.3. Notificada desta reclamação, a recorrida apresentou
a seguinte resposta:
“Segundo a recorrente/reclamante, o recurso/reclamação em apreço visa a
apreciação das normas dos artigos 734.º, n.º 2, e 740.º, n.º 3, do CPC, que, no
entendimento, v. g., do despacho ora reclamado, «é violador das garantias de
autodefesa e de recurso tuteladas pelo artigo 20.º da CRP».
Antes de mais, dir‑se‑á que, nos termos do disposto nos n.ºs 1, 2, 6 e 7 do
artigo 75.º‑A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a recorrente não identifica
inequivocamente qual a interpretação normativa que, em seu entender, a decisão
recorrida deu às normas em apreço – o que se invoca para todos os efeitos
legais.
Por outro lado,
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o
fundamento invocado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da supracitada lei,
tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas –
tomadas estas no seu todo, em dado segmento ou segundo uma certa dimensão
interpretativa – mas não de decisões propriamente ditas.
Ora, a discordância manifestada pela recorrente/recorrida é
claramente orientada para a decisão em si, como bem observa o Ex.mo Conselheiro
Relator, na aliás douta decisão sumária, que sabiamente proferiu e com a qual
totalmente se sufraga e adere.
Acresce que,
O recurso ali previsto (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional) pressupõe, além do mais, que a recorrente tenha
suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma
jurídica, ou de uma interpretação normativa, e que, não obstante, a decisão
recorrida a tenha aplicado no julgamento do caso.
Ora, constitui jurisprudência maioritária desse Venerando Tribunal –
cf. Acórdãos n.ºs 62/85, 90/85 e 450/87 – in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 5.º vol., págs. 497 e 663, e 10.º vol., pág. 573,
respectivamente – que «a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se
suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido a
poder decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver –
o que se exige que a questão seja suscitada antes de esgotado o poder
jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade
respeita – ou seja, antes da prolação da sentença».
Destarte, como também é entendimento desse Venerando Tribunal, não
constitui meio idóneo para suscitar a questão de inconstitucionalidade o
requerimento de arguição de nulidades da decisão, o pedido de aclaração ou a
reclamação.
Assim,
De acordo com a jurisprudência atrás citada, tal «reclamação» não
constituiria já um meio idóneo e tempestivo para suscitar a questão da
inconstitucionalidade!
Pelo que, não tendo sido suscitada a questão da
inconstitucionalidade durante o processo – nos moldes em que se tem vindo a
defender –, conforme exige o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), tal obstará, por si
só, à possibilidade de conhecer do seu objecto, nos termos do n.º 1 do artigo
78.º‑A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro – o que se requer seja decidido!
Por outro lado, defende a recorrente/reclamante que «a 1.ª
instância, ao reter o agravo, num caso de interdição com perda progressiva das
capacidades da recorrente, com apelo às normas dos artigos 734.º, n.º 2, e
740.º, n.º 3, do CPC, adoptou uma concepção destas normas que se advoga ser
violadora das garantias de autodefesa e de recurso tuteladas pelo artigo 20.º,
n.º 1, da CRP, porquanto a recorrente deixa de ter a possibilidade de se
autodefender (passa a haver o suprimento da curadoria )» – sic.
Ora, salvo o devido respeito – que é muito -, nada mais errado!
Porquanto, por um lado, as suas garantias de defesa encontrar‑se‑ão
sempre acauteladas e asseguradas, v. g., por força do disposto no artigo 11.º,
n.º 4, e 14.º, ambos do CPC;
Por outro, não se mostra tão‑pouco demonstrada a necessidade de
fixação de jurisprudência sobre a questão suscitada, na medida em que, v. g.,
nenhuma «jurisprudência» é citada pela recorrente/reclamante;
Nem, ademais, a questão revela uma complexidade que o justifique –
o que se alega para todos os efeitos legais.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão sumária ora reclamada decidiu não conhecer
de recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, por a
recorrente não ter suscitado, perante o tribunal recorrido, em termos
processualmente adequados, uma questão de inconstitucionalidade normativa, por
uma dupla ordem de razões: (i) falta de identificação, em termos minimamente
precisos e claros, da interpretação normativa que reputava inconstitucional, de
modo a habilitar o Tribunal Constitucional, na hipótese de o recurso lograr
obter provimento, a apresentar a sua decisão em termos de «tanto os
destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber,
sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser
aplicado, por, deste modo, violar a Constituição»; e (ii) imputação da violação
da Constituição directamente à decisão judicial recorrida, em si mesma
considerada, indissociavelmente ligada às especificidades irrepetíveis do caso
concreto em análise, o que não constitui objecto idóneo de recurso de
constitucionalidade.
A ora reclamante nada argumenta contra o referido
primeiro fundamento e continua, mesmo na presente reclamação, a não identificar,
com um mínimo de clareza, qual a interpretação normativa que teria sido
adoptada, como critério decisório, pela decisão recorrida e que pretende venha
a ser objecto de um juízo de inconstitucionalidade por parte do Tribunal
Constitucional.
Quanto ao segundo fundamento, aduz que não existem
fórmulas sacramentais para suscitar a questão de constitucionalidade e que a
situação em causa é susceptível de se repetir. No entanto, o que se entende
necessário é que, atentas as apontadas características do sistema português de
fiscalização da constitucionalidade (que incide sobre normas e não sobre
decisões judiciais, em si mesmas consideradas), os recorrentes imputem a normas
ou a interpretações normativas a violação da Constituição, sem se exigir o uso
de fórmulas sacramentais, e não que questionem a conformidade constitucional da
operação judicial de subsunção jurídica da situação concreta. A eventualidade de
no futuro virem a surgir situações similares à da reclamante é, de todo,
irrelevante, quer pela inoperância, em Portugal, da regra do precedente, quer
porque a mera repetição de casos similares objecto de decisões com o mesmo
sentido não transforma as decisões concretas que os decidiram, ainda que de modo
coincidente, em critério normativo vinculativo, dotado de abstracção e de
generalidade.
Impõe‑se, assim, a confirmação da decisão sumária
impugnada.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2005.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos